terça-feira, 4 de dezembro de 2018

O desastre de Borba mostra que a governança marcha em roda livre


As reportagens sucedem-se e mostram que os desastres estavam e estão à espera de acontecer.
Sobre o tema Ricardo J. Rodrigues publicou no DN, de 2 dezembro 2018, uma reportagem com um texto bem elucidativo e com imagens de poderosa força que fazem estarrecer.
Com efeito, o deslizamento de terras em Borba foi um acontecimento tão dramático que o país não teve como desviar o olhar. Foram 5 os mortos, dos quais 3 ficaram engolidos pelo talude e 2 sepultados por ele. Só que a tragédia começou antes. A ruína destes 80 metros de estrada é a culminação duma “história de ganância, desleixo e submissão” ou “de como o ouro branco se tornou simultaneamente triunfo e perdição para uma das regiões mais esquecidas do país”.
Como assinala o Expresso, do passado dia 1, a páginas 20 e 21 (mencionando testemunhos de populares e de Luís Lopes, do departamento de Geociências da Universidade de Évora), “a lei não proíbe o uso de explosivos na lavra das pedreiras, mas impõe apertadas restrições de segurança” por daí poderem advir “danos estruturais no maciço”, que é “muito mais frágil do que o granito”, não havendo “controlo sobre a propagação das fraturas provocadas pelas explosões”, que “podem causar dano em todo o maciço”. Por isso, o uso de explosivos nas pedreiras só pode ser feito com autorização da PSP sob parecer favorável da DGEC (Direção-Geral de Energia e Geologia). E a PSP confirmou que junto do local do aluimento “se encontram autorizadas a empregar explosivos várias empresas durante o ano em curso”.
Pelos vistos, segundo o IPMA (Instituto Português do Mar e da Atmosfera), na antevéspera da derrocada de Borba, registou-se um sismo de magnitude 2,1 em Arraiolos (a 50 Km do sítio da derrocada); na manhã do acidente, houve segundo testemunhos de populares, duas detonações, que a PSP ignora (a autorização costuma ser dada ano a ano). Assim, com os solos (já de si barrentos) infiltrados pela chuva (levou as pedreiras a encherem-se de água) e as estruturas abaladas pelo sismo (aquela zona é segunda do Continente de maior risco sísmico), as explosões terão sido a gota de água.
Havendo 271 pedreiras nesta região, 24 delas ilegais. E só 70 estão a funcionar, estando as restantes ao abandono sem ter sido apresentado plano de desativação em segurança.
De acordo com o texto do Expresso, em março de 2017, a DGEG deu parecer favorável à utilização de pólvora na pedreira Olival Grande São Sebastião, contígua à antiga EN 255 e em laboração a menos de 10 metros da berma. Mas já em 2014, no anexo ao memorando da DRE (Direção Regional de Economia) do Alentejo que alertou para o risco de colapso da estrada, se chama a atenção para a sensibilidade da zona a tremores de terra. Mais: em 2009, houve a derrocada de uma estrada municipal na região, contígua a uma pedreira, que foi precedida de sismo e que só não causou vítimas por ter ocorrido de madrugada. Por isso, nem o Governo anterior nem o atual, bem como os autarcas podem alegar falta de conhecimento. Aliás, é conhecido o facto de o autarca-mor de Borba ter dado conta do perigo em declarações à Rádio Campanário e o da reunião de empresários e técnicos como ele em que foi proposta uma reunião extraordinária da Assembleia Municipal, que não se realizou, sendo que os transportes escolares, da responsabilidade do município continuaram a fazer-se por ali. Das duas, uma: ou não sabiam e é grave, supino e negligente o défice de informação entre os departamentos estatais (as autarquias também são Estado), a nível central, regional e local; ou sabiam e desvalorizaram, o que é inadmissível; ou ainda, sabiam e foram ineptos na tomada de decisão eficaz. Pelo menos deveriam ter mandado proceder ao corte de estrada para prevenir acidentes de que resultassem vítimas.
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Ricardo J. Rodrigues diz que, naquela zona, “toda a gente por ali, dos donos das pedreiras ao povo que as trabalha, temia acidentes como o desabamento da estrada 255” – “uma história com mais de 80 anos”, pois “nunca houve um plano de ordenamento, cada um escavou por onde quis, há poucos técnicos e muita desorganização”. “Nos dias de sol a temperatura chega a 50.º C; nos de chuva trabalha-se com água pelo tornozelo e, às vezes, pelo joelho” – dizem. No tempo seco, ainda é pior: “o pó infiltra-se nos olhos e nos pulmões”. Todos os dias se vê a mesma nesga de céu, das 8 da manhã às 5 da tarde. E tiravam pedra mesmo a 15 metros do talude, não havendo dia em que alguém não perguntasse se a parede vinha abaixo. Era de pertinho do muro que segurava a estrada que se tiravam os blocos mais inteiros de mármore. Uma pedreira, com o dobro da profundidade e ali mesmo ao lado, tinha encerrado há ano e meio. Seguiam a escavação uns metros adiante, não havendo modo de não saberem que estavam em perigo. Mas quem sabia responde com a resignação de quem mora por ali nas redondezas: ou se morre debaixo das pedras ou se morre de fome, sendo que das pedreiras pode haver a sorte de escapar com vida.
Diz o repórter que, do alto da escombreira da Vigária (Vila Viçosa), se divisa o vale com mais de 40 pedreiras, estando a maioria ao abandono e uma dezena a laborar. Rúben Martins, engenheiro geológico e coordenador do departamento de geociências da Universidade de Évora, vinca:
Daqui podemos observar como as coisas foram sempre mal geridas. […] A cada 20 ou 30 metros abriu-se uma pedreira nova. São tantas e estão tão concentradas que raramente se consegue ir a mais de cem metros de profundidade, não têm diâmetro para ir mais fundo.”.
Segundo a DGEG, o anticlinal de Estremoz (nome científico do veio de mármore de 27 Km2 que se estende por Estremoz, Borba e Vila Viçosa) tem 271 cavidades, 24 delas absolutamente ilegais. Apenas 70 são exploradas. Tem 150 metros o poço mais fundo, mas pelos estudos, percebe-se que há mármore até aos 430. Nunca se fez plano de ordenamento para a zona, cada um escavou por onde quis. E apenas um técnico fiscaliza as 400 pedreiras do Alentejo, garante Rúben Martins, que aponta:
Os proprietários foram abrindo pedreiras avulso, umas ao lado das outras. Se trabalhassem em conjunto, abriam um grande poço em vez de 20.”.
Se houvesse plano de ordenamento e trabalhassem em conjunto, poderiam ir mais fundo e deitar abaixo as dezenas de taludes que ocupam a região. Assim, reduzir-se-ia exponencialmente o risco de derrocadas e os lucros tornar-se-iam mais duradouros e avultados. O problema dos grandes paredões é geológico. Embora o mármore seja extraído em blocos de 3 metros de comprimento por 1,7 de altura e 1,5 de espessura, os veios não são uniformes. Diz o mencionado engenheiro:
Uma das caraterísticas das nossas rochas é serem extremamente fraturadas. Por causa da origem calcária os espaços vazios são ocupados por terra rossa, que no tempo seco funciona como cimento mas com a chuva torna-se manteiga. […] Se 2016 e 2017 não tivessem sido anos de seca, é bem provável que aquela parede já tivesse ruído. Aqui não há inocentes, toda a gente sabia o que ia acontecer. Era uma questão de tempo.”.
Segundo Luís Brito da Luz, administrador da Marmoz, uma das empresas mais antigas do anticlinal, escavou-se até onde se pôde, em contradição com a badalada ideia de que só era possível escavar até 30 metros duma estrada como a que ruiu. Tem a empresa 9 pedreiras, mas só lavra em duas. Há 30 anos tiveram de encher uma por haver risco de derrocada do cemitério de Estremoz. Hoje a empresa tem só 16 funcionários contra os 137 que chegou a ter. São muitas as pedreiras, mas o diâmetro não permite ir mais fundo. Segundo aquele administrador, os empresários do mármore nunca se souberam organizar: “cada um explorou o seu quintal” e agora estão a pagar a fatura. Ainda há 5 anos, havia 230 companhias a explorar mármore no anticlinal, ao passo que hoje não passam de 40.  
Referiram ao repórter que a pedreira do Plácido, que rebentou com a estrada, fechara por isso. Nos anos 1990 era um ícone da saúde do setor. O então Presidente da República, Jorge Sampaio, na sua visita a 3 de fevereiro de 1997, desceu o paredão num elevador que avariou a meio do percurso. E, do poço, que era metade do que é hoje, retirou-se mármore branco (quase todo para a Arábia Saudita), o que então estava na moda. É por obedecer a modas que as pedreiras permanecem vazias. Durante décadas, só retiravam o mármore que vendia melhor e jogavam o outro fora. Agora estão muitos aterros cheios de ouro branco desperdiçado. Vieram os fundos comunitários quase na viragem do milénio, que deviam ser usados no reaproveitamento das escombreiras, mas num mercado em que funcionou sempre cada um por si, ninguém o fez. E, apesar da lei em contrário, as pedreiras desativadas não são tapadas, por serem incomportáveis os custos e, se no futuro o mercado quiser aquele mármore, será uma pedreira entretanto desativada que o dará. Por outro lado, apenas 10% do que é retirado das pedreiras tem aproveitamento: ao lado dos fossos há montanhas de entulho, blocos sobre blocos, misturados com pedregulhos soltos (o símbolo maior da ganância dos empresários) – muitas das quais excedem em altura os marcos geodésicos da região.
Quando, em 1982 o Papa São João Paulo II visitou Vila Viçosa, a autarquia mandou terraplanar uma vasta extensão de terrenos em redor para construir parques de estacionamento. Até então o que existia na zona eram pedreiras, mas o alisamento das terras permitiu que o desenvolvimento duma grande uma indústria de transformação como a que estava localizada em Pero Pinheiro (Sintra), referida no romance “Memorial do Convento”, de José Saramago. Diz Carlos Filipe, historiador, professor da Universidade de Lisboa e investigador no Centro de Estudos de Património e História da Indústria dos Mármores:
Essa década foi o período de ouro da exploração de mármore na região. Por causa da existência de um mercado diferenciado, a região conseguiu resistir às fugas migratórias que caraterizam quase todo o Alentejo. Aqui havia desemprego zero.”.
É bimilenária a história do mármore na região, mas só em 1927 o setor se tornou o centro da vida de Borba, Estremoz e Vila Viçosa, graças ao movimento arquitetónico art déco no centro da Europa, que fez aportar no Alentejo industriais belgas que fundaram companhias para explorar a pedra trazendo a nova tecnologia do fio helicoidal, que permite cortar a pedra a velocidade muito maior. Se hoje basta meia dúzia de homens para trabalhar uma pedreira, então eram precisos 40 a 50. Portugal tinha saído da I Guerra Mundial e vivia-se a fome. De súbito, há mais trabalho do que gente. Era duro e perigoso o ofício (a pedra carregava-se ao lombo e não havia semana em que um monte de pedras não rolasse escarpa abaixo), mas ganhava-se mais do que na agricultura a atravessar uma das piores secas sempre. No início da II Guerra Mundial, Vila Viçosa era a terra com mais veículos de duas rodas. Mas, até 1966, a indústria tinha o problema da retirada as pedras dos poços, que foi resolvido a construção da Ponte sobre o Tejo: as gruas foram despachadas para o interior alentejano e o processo acelerou. Depois, a eletrificação das pedreiras e o aparecimento do fio de diamante, nos anos 1980, deram o impulso que faltava.
Da venda do mármore para toda a Europa passa-se para o mundo árabe. Mas a primeira Guerra do Golfo fez a primeira quebra de mercado; o 11 de Setembro, a segunda; e a da troika deu o golpe de misericórdia. O desemprego sobe e os terrenos (que serviam para a agricultura e pecuária) estão apinhados de pedreiras. E há quem lembre os abusos cometidos sobre os trabalhadores da pedra; os castigos para os homens, que ficavam doentes; os trabalhos pesados para as grávidas, a ver se abortavam; e a pressão dos capatazes a que se cortasse mais longe e, caso os cortadores se atrasassem, não os deixarem tomar o almoço. A ninguém deixa saudades a pedra, mas “aquelas catedrais que os homens escavaram são monumentos impressionantes”. Os concelhos da região organizaram um curso de visitas às pedreiras para técnicos de turismo dos municípios – é a rota do mármore. E a estrada 255 era um dos lugares simbólicos da peregrinação. Para algumas das pedreiras abandonadas a solução passará por construir anfiteatros, salas de espetáculo, jardins. Embora naquelas covas fundas e paredes assombrosas esteja contraditoriamente a ruína e a salvação dum povo, a paisagem pode disfarçar as rugas e o sofrimento e mostrar um novo rosto.
***
Apesar, de como foi dito, não haver inocentes entre os diversos operadores e responsáveis, duvido de que o Ministério Público consiga deduzir acusação sustentada contra alguém. O tempo passa, a incúria esbate-se e a culpa morre solteira e virgínea. A DRE do Alentejo alertou por e-mail Marta Alves, chefe de Gabinete de Artur Trindade, Secretário de Estado da Energia (1/12/2014). O governante não sabia de nada, mas “encarregou” a chefe de gabinete de remeter à DGEG o texto, o que ela fez no âmbito da delegação de competências. A DRE seria extinta, mas ainda tinha poderes e obrigações, ao invés da recém-criada DGEG, que ainda não podia agir. E ficamos nisto, até porque o memorando da DRE não indicava ação imediata, antes recomendava a constituição dum grupo de trabalho. Algum dia a iminência de um perigo se resolve por este meio?
Porém os juristas dividem-se na apreciação das responsabilidades. Paulo Otero, professor catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa (direito administrativo e direito constitucional…), diz que o delegado (a chefe de gabinete) tem o dever de informar o delegante (Secretário de Estado), pelo que os dois podem ser responsabilizados criminalmente por conduta omissiva, uma vez que foram alertados. Também eu penso que não se delegam responsabilidades, mas apenas competências! Por seu turno, Pedro Costa Gonçalves, professor associado da Faculdade de Direito de Coimbra e especialista em direito administrativo, entende que a chefe de gabinete fez o que devia ao mandar o texto para os serviços; e o conhecimento por parte do Secretário de Estado de pouco valeria, a não ser como reforço da premência dos serviços. Mas o especialista pensa que os serviços deveriam, dado o teor autoexplicativo do texto, urgir a atuação operacional imediata.
E Paulo Otero, segundo o que se lê no Expresso, “é lapidar na apreciação deste caso, que é muito grave”, mais grave que o de Pedrógão (Pedrógão não foi previsível; e Borba foi-o pelos muitos sinais vermelhos: colapso, deslizamento, queda parcial do talude, queda de pedras, insegurança da estrada, risco de vida de passageiros e trabalhadores, arrastamento de parte da estrada, casos ocorridos perto… a exigir a interdição imediata da estrada). Para este especialista, há “uma pluralidade de responsáveis: o Estado, o município e os proprietários privados”.
Qual das linhas de apreciação jurídica seguirá o Ministério Público e, depois, os tribunais? Olhando para o caso de Entre-os-Rios, em 2001, devo citar o Correio da Manhã, de 21 de outubro de 2016, onde se pôde ler:
Acabaram em nada os seis meses de julgamento do processo do colapso da Ponte Hintze Ribeiro. Os seis engenheiros, quatro da ex-JAE e dois de uma empresa projetista do Porto, foram absolvidos da prática de crime de violação das regras técnicas.”.
E assim se quebram as estruturas, assim se morre, assim se investiga, assim se julga. Mas ironicamente deve continuar a confiar-se na justiça humana enformada pela governança medíocre de que dispomos!
2018.12.04 – Louro de Carvalho

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