As reportagens
sucedem-se e mostram que os desastres estavam e estão à espera de acontecer.
Sobre o tema Ricardo J. Rodrigues
publicou no DN, de 2 dezembro 2018, uma reportagem com um
texto bem elucidativo e com imagens de poderosa força que fazem estarrecer.
Com efeito, o deslizamento de terras em Borba foi um
acontecimento tão dramático que o país não teve como desviar o olhar. Foram 5 os
mortos, dos quais 3 ficaram engolidos pelo talude e 2 sepultados por ele. Só
que a tragédia começou antes. A ruína destes 80 metros de estrada é a
culminação duma “história de ganância,
desleixo e submissão” ou “de como o ouro branco se tornou
simultaneamente triunfo e perdição para uma das regiões mais esquecidas do país”.
Como
assinala o Expresso, do passado dia
1, a páginas 20 e 21 (mencionando testemunhos de populares e de Luís Lopes,
do departamento de Geociências da Universidade de Évora), “a lei não proíbe o uso de explosivos na lavra das
pedreiras, mas impõe apertadas restrições de segurança” por daí poderem advir
“danos estruturais no maciço”, que é “muito mais frágil do que o granito”, não
havendo “controlo sobre a propagação das fraturas provocadas pelas explosões”,
que “podem causar dano em todo o maciço”. Por isso, o uso de explosivos nas
pedreiras só pode ser feito com autorização da PSP sob parecer favorável da
DGEC (Direção-Geral
de Energia e Geologia). E a PSP
confirmou que junto do local do aluimento “se encontram autorizadas a empregar
explosivos várias empresas durante o ano em curso”.
Pelos
vistos, segundo o IPMA (Instituto Português do Mar e da Atmosfera), na antevéspera da derrocada de Borba, registou-se
um sismo de magnitude 2,1 em Arraiolos (a 50 Km do sítio da derrocada); na manhã do acidente, houve segundo testemunhos de
populares, duas detonações, que a PSP ignora (a autorização costuma ser dada ano a
ano). Assim, com os solos (já de si
barrentos) infiltrados pela chuva (levou as
pedreiras a encherem-se de água) e as
estruturas abaladas pelo sismo (aquela zona é segunda do Continente de maior risco
sísmico), as explosões terão sido a gota de
água.
Havendo 271
pedreiras nesta região, 24 delas ilegais. E só 70 estão a
funcionar, estando as restantes ao abandono sem ter sido apresentado plano
de desativação em segurança.
De acordo
com o texto do Expresso, em março de
2017, a DGEG deu parecer favorável
à utilização de pólvora na pedreira Olival Grande São Sebastião, contígua
à antiga EN 255 e em laboração a menos de 10 metros da berma. Mas já em 2014,
no anexo ao memorando da DRE (Direção Regional de Economia) do Alentejo que
alertou para o risco de colapso da estrada, se chama a atenção para a
sensibilidade da zona a tremores de terra. Mais: em 2009, houve a derrocada de
uma estrada municipal na região, contígua a uma pedreira, que foi precedida de
sismo e que só não causou vítimas por ter ocorrido de madrugada. Por isso, nem
o Governo anterior nem o atual, bem como os autarcas podem alegar falta de
conhecimento. Aliás, é conhecido o facto de o autarca-mor de Borba ter dado
conta do perigo em declarações à Rádio Campanário e o da reunião de empresários
e técnicos como ele em que foi proposta uma reunião extraordinária da
Assembleia Municipal, que não se realizou, sendo que os transportes escolares,
da responsabilidade do município continuaram a fazer-se por ali. Das duas, uma:
ou não sabiam e é grave, supino e negligente o défice de informação entre os
departamentos estatais (as autarquias também são Estado), a nível central, regional e local; ou sabiam e
desvalorizaram, o que é inadmissível; ou ainda, sabiam e foram ineptos na
tomada de decisão eficaz. Pelo menos deveriam ter mandado proceder ao corte de
estrada para prevenir acidentes de que resultassem vítimas.
***
Ricardo J. Rodrigues diz que, naquela zona, “toda a gente por ali, dos donos das pedreiras
ao povo que as trabalha, temia acidentes como o desabamento da estrada 255” – “uma
história com mais de 80 anos”, pois “nunca houve um plano de ordenamento, cada
um escavou por onde quis, há poucos técnicos e muita desorganização”. “Nos dias de sol a temperatura
chega a 50.º C; nos de chuva trabalha-se com água pelo tornozelo e, às vezes,
pelo joelho” – dizem. No tempo seco, ainda é pior: “o pó infiltra-se nos olhos
e nos pulmões”. Todos os dias se vê a mesma nesga de céu, das 8 da manhã às 5
da tarde. E tiravam pedra mesmo a 15
metros do talude, não havendo dia em que alguém não perguntasse se a parede
vinha abaixo. Era de pertinho
do muro que segurava a estrada que se tiravam os blocos mais inteiros de
mármore. Uma pedreira, com o dobro da profundidade e ali mesmo ao lado, tinha
encerrado há ano e meio. Seguiam a escavação uns metros adiante, não havendo
modo de não saberem que estavam em perigo. Mas quem sabia responde com a resignação
de quem mora por ali nas redondezas: ou
se morre debaixo das pedras ou se morre de fome, sendo que das pedreiras pode
haver a sorte de escapar com vida.
Diz o repórter que, do alto da escombreira da Vigária (Vila Viçosa), se divisa o vale com mais de 40 pedreiras, estando a maioria ao abandono
e uma dezena a laborar. Rúben
Martins, engenheiro geológico e coordenador do departamento de geociências da
Universidade de Évora, vinca:
“Daqui podemos observar como as coisas foram sempre mal geridas. […] A cada 20 ou 30 metros
abriu-se uma pedreira nova. São tantas e estão tão concentradas que raramente
se consegue ir a mais de cem metros de profundidade, não têm diâmetro para ir
mais fundo.”.
Segundo a DGEG, o anticlinal de Estremoz (nome
científico do veio de mármore de 27 Km2 que se estende por Estremoz, Borba e
Vila Viçosa) tem 271 cavidades, 24 delas
absolutamente ilegais. Apenas 70 são exploradas. Tem 150 metros o poço
mais fundo, mas pelos estudos, percebe-se que há mármore até aos 430. Nunca se fez plano de ordenamento para a zona,
cada um escavou por onde quis. E apenas um técnico fiscaliza as 400
pedreiras do Alentejo, garante Rúben Martins, que aponta:
“Os proprietários foram abrindo pedreiras avulso, umas ao lado das
outras. Se trabalhassem em conjunto, abriam um grande poço em vez de 20.”.
Se houvesse plano de ordenamento e trabalhassem em conjunto, poderiam ir
mais fundo e deitar abaixo as dezenas de taludes que ocupam a região. Assim,
reduzir-se-ia exponencialmente o risco de derrocadas e os lucros tornar-se-iam
mais duradouros e avultados. O problema dos
grandes paredões é geológico. Embora o mármore seja extraído em blocos de 3
metros de comprimento por 1,7 de altura e 1,5 de espessura, os veios não são
uniformes. Diz o mencionado engenheiro:
“Uma das caraterísticas das nossas rochas é
serem extremamente fraturadas. Por
causa da origem calcária os espaços vazios são ocupados por terra rossa,
que no tempo seco funciona como cimento mas com a chuva torna-se manteiga.
[…] Se 2016 e 2017 não tivessem sido
anos de seca, é bem provável que aquela parede já tivesse ruído. Aqui não há inocentes, toda a gente sabia o
que ia acontecer. Era uma questão de tempo.”.
Segundo Luís Brito da Luz, administrador da Marmoz, uma
das empresas mais antigas do anticlinal, escavou-se até onde se pôde, em
contradição com a badalada ideia de que só era possível escavar até 30 metros
duma estrada como a que ruiu. Tem a empresa 9 pedreiras, mas só lavra em duas.
Há 30 anos
tiveram de encher uma por haver risco de derrocada do cemitério de Estremoz.
Hoje a empresa tem só 16 funcionários contra os 137 que chegou a ter. São
muitas as pedreiras, mas o diâmetro
não permite ir mais fundo. Segundo aquele administrador, os empresários do mármore nunca se souberam
organizar: “cada um explorou o seu quintal” e agora estão a pagar a fatura.
Ainda há 5 anos, havia 230 companhias a explorar mármore no anticlinal, ao
passo que hoje não passam de 40.
Referiram ao repórter que a pedreira do Plácido, que rebentou com a
estrada, fechara por isso. Nos anos 1990 era um ícone da saúde do setor. O
então Presidente da República, Jorge
Sampaio, na sua visita a 3 de fevereiro de 1997, desceu o paredão num elevador
que avariou a meio do percurso. E, do poço, que era metade do que é
hoje, retirou-se mármore branco (quase todo para
a Arábia Saudita), o que então estava na moda. É por obedecer
a modas que as pedreiras permanecem vazias. Durante décadas, só retiravam o
mármore que vendia melhor e jogavam o outro fora. Agora estão muitos aterros
cheios de ouro branco desperdiçado. Vieram os fundos comunitários quase na
viragem do milénio, que deviam ser usados no reaproveitamento das escombreiras,
mas num mercado em que funcionou sempre cada um por si, ninguém o fez. E,
apesar da lei em contrário, as pedreiras desativadas não são tapadas, por serem
incomportáveis os custos e, se no futuro o mercado quiser aquele mármore, será
uma pedreira entretanto desativada que o dará. Por outro lado, apenas 10% do que é retirado das pedreiras tem
aproveitamento: ao lado dos fossos há montanhas de entulho, blocos sobre
blocos, misturados com pedregulhos soltos (o símbolo maior da ganância dos empresários) – muitas das quais excedem em altura os
marcos geodésicos da região.
Quando, em 1982 o Papa São João
Paulo II visitou Vila Viçosa, a autarquia mandou terraplanar uma vasta
extensão de terrenos em redor para construir parques de estacionamento. Até
então o que existia na zona eram pedreiras, mas o alisamento das terras
permitiu que o desenvolvimento duma grande uma indústria de transformação como
a que estava localizada em Pero Pinheiro (Sintra), referida no romance “Memorial
do Convento”, de José Saramago. Diz Carlos Filipe, historiador, professor da
Universidade de Lisboa e investigador no Centro de Estudos de Património e
História da Indústria dos Mármores:
“Essa década foi o período de ouro da exploração
de mármore na região. Por causa da existência de um mercado diferenciado, a
região conseguiu resistir às fugas migratórias que caraterizam quase todo o
Alentejo. Aqui havia desemprego
zero.”.
É bimilenária a história do mármore na região, mas só em 1927 o setor se
tornou o centro da vida de Borba, Estremoz e Vila Viçosa, graças ao movimento arquitetónico art déco no
centro da Europa, que fez aportar no Alentejo industriais belgas que fundaram
companhias para explorar a pedra trazendo a nova tecnologia do fio helicoidal,
que permite cortar a pedra a velocidade muito maior. Se hoje basta meia dúzia de homens para
trabalhar uma pedreira, então eram precisos 40 a 50. Portugal tinha saído da I Guerra Mundial e vivia-se a fome. De
súbito, há mais trabalho do que gente. Era duro e perigoso o ofício
(a pedra carregava-se ao lombo e não havia semana em que um monte de pedras
não rolasse escarpa abaixo), mas ganhava-se mais do que na agricultura a atravessar uma das piores
secas sempre. No início da II Guerra Mundial, Vila Viçosa era a terra com mais veículos
de duas rodas. Mas, até 1966, a indústria tinha o problema da retirada as pedras dos
poços, que foi resolvido a construção da Ponte sobre o Tejo: as gruas foram
despachadas para o interior alentejano e o processo acelerou. Depois, a eletrificação das pedreiras e o aparecimento do
fio de diamante, nos anos 1980, deram o impulso que faltava.
Da venda do mármore para toda a Europa passa-se para o mundo árabe. Mas a
primeira Guerra do Golfo fez a primeira quebra de mercado; o 11 de Setembro, a
segunda; e a da troika deu o golpe de misericórdia. O
desemprego sobe e os terrenos (que serviam para a agricultura e pecuária)
estão apinhados de pedreiras. E há quem lembre os abusos cometidos sobre
os trabalhadores da pedra; os castigos para os homens, que ficavam doentes; os
trabalhos pesados para as grávidas, a ver se abortavam; e a pressão dos capatazes a que se cortasse mais longe e, caso os
cortadores se atrasassem, não os deixarem tomar o almoço. A ninguém deixa
saudades a pedra, mas “aquelas catedrais que os homens escavaram são monumentos
impressionantes”. Os concelhos da região organizaram um curso de visitas às
pedreiras para técnicos de turismo dos municípios – é a rota do mármore. E a estrada 255 era um dos lugares simbólicos
da peregrinação. Para algumas das pedreiras abandonadas a solução
passará por construir anfiteatros, salas de espetáculo, jardins. Embora
naquelas covas fundas e paredes assombrosas esteja contraditoriamente a ruína e
a salvação dum povo, a paisagem pode disfarçar as rugas e o sofrimento e
mostrar um novo rosto.
***
Apesar, de como foi dito, não haver inocentes entre os diversos operadores
e responsáveis, duvido de que o Ministério Público consiga deduzir acusação
sustentada contra alguém. O tempo passa, a incúria esbate-se e a culpa morre
solteira e virgínea. A DRE do Alentejo alertou por e-mail Marta Alves, chefe de Gabinete de Artur Trindade, Secretário
de Estado da Energia (1/12/2014). O governante não sabia de nada,
mas “encarregou” a chefe de gabinete de remeter à DGEG o texto, o que ela fez
no âmbito da delegação de competências. A DRE seria extinta, mas ainda tinha
poderes e obrigações, ao invés da recém-criada DGEG, que ainda não podia agir. E
ficamos nisto, até porque o memorando da DRE não indicava ação imediata, antes recomendava
a constituição dum grupo de trabalho. Algum dia a iminência de um perigo se
resolve por este meio?
Porém os
juristas dividem-se na apreciação das responsabilidades. Paulo Otero, professor
catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa (direito administrativo
e direito constitucional…),
diz que o delegado (a chefe de gabinete) tem o dever de informar o
delegante (Secretário de Estado), pelo que os dois podem ser
responsabilizados criminalmente por conduta omissiva, uma vez que foram
alertados. Também eu penso que não se delegam responsabilidades, mas apenas competências!
Por seu turno, Pedro Costa Gonçalves, professor associado da Faculdade de Direito
de Coimbra e especialista em direito administrativo, entende que a chefe de
gabinete fez o que devia ao mandar o texto para os serviços; e o conhecimento por
parte do Secretário de
Estado de pouco valeria,
a não ser como reforço da premência dos serviços. Mas o especialista pensa que
os serviços deveriam, dado o teor autoexplicativo do texto, urgir a atuação
operacional imediata.
E Paulo
Otero, segundo o que se lê no Expresso,
“é lapidar na apreciação deste caso, que é muito grave”, mais grave que o de
Pedrógão (Pedrógão não foi previsível; e Borba foi-o pelos
muitos sinais vermelhos: colapso, deslizamento, queda parcial do talude, queda
de pedras, insegurança da estrada, risco de vida de passageiros e trabalhadores,
arrastamento de parte da estrada, casos ocorridos perto… a exigir a interdição imediata
da estrada). Para este
especialista, há “uma pluralidade de responsáveis: o Estado, o município e os
proprietários privados”.
Qual das
linhas de apreciação jurídica seguirá o Ministério Público e, depois, os
tribunais? Olhando para o caso de Entre-os-Rios, em 2001, devo citar o Correio da Manhã, de 21 de outubro de
2016, onde se pôde ler:
“Acabaram em nada os
seis meses de julgamento do processo do colapso da Ponte Hintze Ribeiro. Os
seis engenheiros, quatro da ex-JAE e dois de uma empresa projetista do Porto,
foram absolvidos da prática de crime de violação das regras técnicas.”.
E assim se quebram as estruturas, assim se morre, assim se
investiga, assim se julga. Mas ironicamente deve continuar a confiar-se na
justiça humana enformada pela governança medíocre de que dispomos!
2018.12.04
– Louro de Carvalho
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