Na
caminhada espiritual e pastoral do Advento/Natal do Senhor, a liturgia católica
surpreende a Igreja crente, orante, discípula e apóstola com a Solenidade da
Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria. Esta surpreendente festividade, surgida
na História da Igreja em termos do Santoral, colocou-se antes do Natal de modo
que o Nascimento ou Natividade de Maria pudesse celebrar-se em tempo de
colheitas dos frutos semeados na primavera e das sementeiras outonais para as
colheitas primaveris.
No
entanto, esta solenidade mariana da pureza virginal de maria ab initio torna-se cristológica e
eclesiológica se atendermos à pedagogia de Gabriel e de Isabel e ao conteúdo das
mensagens.
Antes de
mais, Gabriel chega a Nazaré enviado por Deus e saúda a donzela Maria como a Cheia de Graça, Aquela com quem o Senhor
está – um elogio ou um piropo gracioso pelo facto de a donzela de Nazaré
possuir o Senhor e Ele a possuir porque Ela achou graça no Senhor e Ele se revê
nela. E, depois, solicitando-Lhe que não tema, anuncia que Ela conceberá e dará
à luz o Santo de Deus, Aquele a quem ela porá o nome de Jesus, o Filho do
Altíssimo, que libertará o povo dos pecados. É a lógica graciosa de Deus:
parte-se de Maria cheia de graça em todo o tempo e lugar por obra de Deus, para
nos ser dado o Filho do Altíssimo tornado também filho de Maria, o Deus
humanado. Nesta lógica, que Maria aceitou, porque escutou bem e guarda no
coração, Maria voluntaria-se para serva do Senhor, deixando que em Si e por Si
se cumprisse a Palavra de Deus. E, como a Palavra de Deus é o próprio Filho de
Deus, que em Maria Se tornou carne humana, Ela é simultaneamente a morada da
Palavra, a serva da Palavra e a oferente quase sempre silenciosa da Palavra ao
Mundo. (cf
Lc 1,26-38; Jo 1,1-14).
E
Isabel, reconhecendo em Maria a mãe do Senhor, por Ela ter acreditado em tudo
quanto Lhe foi dito da parte de Deus, bendi-la a Ela e ao fruto do Seu ventre (cf
Lc 1,39-45). A mesma
lógica de Deus assumida por Isabel: de Maria, a Mãe, para Jesus, o Filho. Nada
acaba em Maria, porque também nada começa em Maria. Ela é cheia de graça porque
Deus está com Ela e a cumulou da graça divina, a mesma graça que Jesus trouxe
ao mundo dos homens. Por isso, o centro da graça visível no mundo é Jesus, que
nos faz caminhar Consigo, no Espírito Santo, para o Pai. A missão de Maria é cristípeta: encaminha-nos para o Cristo
de Deus.
***
Porém,
como é de entender, Maria não está sozinha com Jesus nem O fechou no seu mundo,
como alguns querem fazer. Ela é lugar e testemunha do mistério da Encarnação e
colabora na construção da economia da Redenção. E, depois, junta-se em oração e
atividade ao núcleo dos apóstolos a quem incumbe implantar a Igreja no mundo
como instrumento, espaço e encontro de salvação. E hoje continua a acompanhar a
Igreja como seu protótipo, como sua mãe, como sua irmã, visto que os membros da
Igreja são irmãos, filhos no Filho, a cabeça deste corpo orgânico. Por isso, os
Padres da Igreja aplicam a Maria aquilo que das Escrituras se aplica à Igreja e
vice-versa. Por tudo a mariologia integra a eclesiologia
Na
verdade, como nova Eva, Maria pertence à descendência da mulher que esmagará a
cabeça da Serpente (cf Gn 3,15) – descendência protagonizada e presidida por
Jesus, que tudo o mereceu, mas que agrega a Si todos os crentes constituídos em
Igreja e em sementeira do Reino de Deus.
Com
efeito, Maria deu ao mundo o Autor da vida e Luz do mundo. Como diz o
evangelista Lucas, “Maria deu à luz o Seu Filho primogénito, envolveu-O em
panos e reclinou-O numa manjedoura”. Eis o primeiro altar da contemplação e da
adoração familiares, mas logo aberto à contemplação adorante dos anjos e dos
pastores. Como Maria, também a Igreja e, nela, todos os seus membros têm o
condão e o dever de contemplar Jesus, adorá-Lo e mostrá-Lo ao mundo dos homens
e encaminhá-los para Ele, patenteando as portas da libertação e da liberdade.
É, pois, eclesiológica a missão de Maria, como é mariana, em certa medida, a
missão da Igreja.
***
Nos alvores da pregação do Reino,
a Virgem surge como a humilde serva do Senhor, mas a quem a luz divina que lhe
brilha no olhar virgíneo e maternal faz entoar o cântico do louvor e da imensa misericórdia,
que testemunha que Deus tem predileção pelos simples e humildes:
“A minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu
Salvador.
Porque pôs os olhos na humildade da sua serva. De hoje em diante, todas as gerações
chamar-me-ão bem-aventurada.
O Todo-poderoso fez maravilhas em mim.
Santo é o seu nome. A sua misericórdia se estende de geração em geração sobre
aqueles que o temem… Acolheu a Israel, seu servo, lembrado da sua misericórdia,
como tinha prometido a nossos pais, a Abraão e à sua descendência, para sempre.” (Lc 1,46-55).
É a assunção
da alegria da Filha de Sião como enuncia o profeta Isaías:
“Exulto de alegria no Senhor e o meu
espírito exulta no meu Deus, porque me revestiu com as vestes da salvação e me
envolveu num manto de triunfo. Como um noivo que cinge a fronte com o diadema
e como uma noiva que se adorna com as suas joias. Porque, assim como a terra
faz nascer as plantas e o jardim faz brotar as sementes, assim o Senhor Deus
faz germinar a justiça e o louvor diante de todas as nações.” (Is,
61,10-11).
E esta
alegria e esta beleza da Filha de Sião ou da Jerusalém predileta do Senhor –
Maria e a Igreja – inundam a Terra como proclama o convite do Senhor pela voz
do Profeta:
“Levanta-te e resplandece, Jerusalém, que está a chegar a tua luz! A glória do Senhor amanhece sobre ti! Olha: as trevas cobrem a terra, e a escuridão, os povos, mas sobre ti
amanhecerá o Senhor. A sua glória vai aparecer sobre ti. As nações caminharão
à tua luz, e os reis ao esplendor da tua aurora. Levanta os olhos e vê à tua volta: todos esses se reuniram para vir ao teu encontro. Os teus filhos chegam
de longe, e as tuas filhas são transportadas nos braços. Quando vires isto,
ficarás radiante de alegria; o teu coração palpitará e se dilatará, porque
para ti afluirão as riquezas do mar, e a ti virão os tesouros das nações.” (Is 60,1-5).
Obviamente,
Maria ou a Igreja não seriam a luz. A Luz é o Senhor. Ele o diz (Eu
sou a luz do mundo – Jo 8,12),
mas quem O segue torna-se luzeiro e luz (quem me segue não anda
nas trevas, mas terá a luz da vida – Jo 8,12; vós sois a luz do mundo – Mt 5,14). Por isso, na linha da
profecia, as nações caminharão à luz da Filha de Sião, porque a glória do
Senhor se espargiu sobre ela. Maria deu ao mundo a Luz e a Igreja tem a missão
iluminar o mundo com a luz de Cristo.
A mesma
mulher – Maria e a Igreja – surge nos tempos apocalípticos como o grande sinal
a brilhar no Céu:
“Uma Mulher vestida de Sol, com a Lua
debaixo dos pés e com uma coroa de doze estrelas na cabeça. Estava grávida
e gritava com as dores de parto e o tormento de dar à luz. […] Ela deu à luz um
filho varão. Ele é que há de governar todas as nações com cetro de ferro. Mas o
filho foi-lhe arrebatado para junto de Deus e do seu trono. E a Mulher fugiu
para o deserto onde Deus lhe preparou um lugar, de modo a não lhe faltar aí o
alimento durante mil duzentos e sessenta dias. Travou-se uma batalha no céu:
Miguel e seus anjos declararam guerra ao Dragão. O Dragão e os seus anjos
combateram, mas não resistiram. O grande
Dragão, a Serpente antiga – a que chamam também Diabo e Satanás – o sedutor de
toda a humanidade, foi lançado à terra; e, com ele, foram lançados também os
seus anjos. Então ouvi uma voz forte no céu que aclamava: Eis que chegou o
tempo da salvação, da força e da realeza do nosso Deus e do poder do seu
Cristo!” (Ap 12,1-2.5-7.8.9-10).
A Cheia
de Graça, revestida da beleza de Deus – mas cujo coração foi trespassado por
uma espada de dor, como profetizou o velho Simeão (cf
Lc 2,35) – surge perto
do Natal, na tradição eclesial, como Senhora do Ó ou Senhora da Expectação (que
o povo justifica como sendo a Senhora grávida – e também o é), unida ao Povo de Deus (e
dele emergente em lugar de relevo)
que espera o Messias desejado e reza, de 17 a 24 de dezembro, invocando-O pelos
seus títulos messiânicos antes do Evangelho da Missa e como antífona do “Magnificat” em Vésperas: Ó Sabedoria do
Altíssimo (dia 17),
Ó Chefe da Casa de Israel (dia
18), Ó Rebento da Raiz de Jessé (dia
19), Ó Chave da Casa de David (dia
20), Ó Sol Nascente, esplendor da luz eterna e
sol de justiça (dia 21), Ó Rei das
Nações e Pedra angular da Igreja (dia 22), Ó Emanuel, nosso rei e legislador (dia 23). E leem-se as seguintes
passagens do Evangelho: dia 17, Genealogia
de Jesus (Mt 1,1-17);
dia 18, Modo como Jesus nascerá de Maria
(Mt
1,18-25); dia 19, Anúncio do nascimento do Precursor (Lc
1,5-25); dia 20, Anúncio do nascimento de Jesus (Lc
1,26-38); dia 21, Visita de Maria a Isabel (Lc
1,39-45); dia 22, Magnificat, cântico de Maria (Lc
1,45-26),
semelhante, na evocação do poder do Senhor, ao cântico de Ana (1Sm
2,1-10); dia 23, Nascimento do Precursor; e dia 24, Benedictus, cântico de Zacarias.
***
Não é,
pois, descabido o facto de G. M. Behler, no seu livro “Alabanza Biblica de la Virgen” (Narcea, SA de
Ediciones, Madrid: 1972),
baseado em referências bíblicas, textos litúrgicos e patrísticos, doutrina do
magistério eclesial e escritos dos santos, chamar a Maria e, consequentemente à
Igreja, a Cidade de Deus, na dupla
dimensão: a cidade mãe e a cidade refúgio. Com efeito, Aquela que
surge como a aurora do tempo novo e que emerge de forma especial no Advento e
Natal em função de Cristo, e da Igreja qual fruto seu, fica alvorada no
Calvário em mãe de todos os povos e não por uma maternidade limitada aos
contornos da carne, mas com a largueza, amplidão e profundidade do Espírito – a
mãe universal, a mãe espiritual. Por outro lado, a mulher fiel que escutava e tudo
guardava em seu coração (cf Lc 2,19.51) é a nova Jerusalém,
resplendente de luz e beleza feita baluarte inexpugnável de Deus e baluarte
indestrutível do Reino. Por isso, nós rezamos “Sub tuum praesidium confugimos Sancta Dei Genitrix…”.
Mas
essas prerrogativas altamente nobilitantes também as têm a Igreja no seu ser e
missão e, com ela, todos os filhos de Maria (filii
Mariae) e filhos
da Igreja (filii
Ecclesiae – fregueses).
É esta a nossa alegria, é esta a nossa responsabilidade. Para tanto, como a
Virgem Maria, teremos de estar abertos à graça e disponíveis para a missão! E,
se Maria pôde entoar “Magnificat anima
mea Dominum…”, nós como Igreja e como crentes, podemos cantar:
Deus é o meu Salvador,
Tenho confiança e nada temo.
O Senhor é a minha força e o meu louvor.
Ele é a minha salvação.
Convidarmo-nos
reciprocamente:
Povo do Senhor, exulta e
canta de alegria.
Povo do Senhor, exulta e
canta de alegria.
E, por fim,
Santa Mãe do Redentor, Porta
do Céu, Estrela do Mar,
Socorre o povo cristão que
procura levantar-se do abismo da culpa.
Alegrai-Vos, ó Virgem gloriosa,
a mais bela entre todas as mulheres,
Santa Mãe de Deus, intercedei
por nós diante do vosso Filho.
***
Vem aí o Natal. É imperativo não fechar a
porta a Deus nem ao Homem. Chamam: é preciso responder. Batem: é preciso abrir
e permitir a entrada no nosso mundo para que se transforme.
2018.12.08
– Louro de Carvalho
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