domingo, 30 de dezembro de 2018

Festa da Sagrada Família em 2018 (Ano C), um programa para a família


Os textos bíblicos tomados para esta festa complementam-se apresentando as duas coordenadas a partir das quais constrói a família cristã: o amor a Deus e o amor ao próximo, sobretudo a quem está mais perto de nós – os membros da família.
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O Evangelho (Lc 2,41-52) acentua a dimensão do amor a Deus: o projeto de Deus tem de ser a prioridade do cristão, a exigência fundamental, a que todas as outras se devem subordinar. Na verdade, a família cristã constrói-se no respeito pelo projeto que Deus tem para cada um.
A 2.ª leitura (Cl 12-21) evidencia a dimensão do amor que deve brotar dos gestos dos que vivem em Cristo e aceitam ser “Homem Novo” – amor que deve atingir, de forma particular, os que partilham connosco o espaço familiar e que deve traduzir-se em atitudes de compreensão, bondade, respeito, partilha, serviço. Este texto pertence à 2.ª parte da Carta aos Colossenses. Depois de constatar a supremacia de Cristo na criação e na redenção, Paulo avisa os Colossenses de que a união com Cristo traz consequências a nível da vivência prática: renunciar ao “homem velho” do egoísmo e do pecado e “revestir-se do homem novo”.
O apóstolo estava na prisão (possivelmente em Roma, anos 61/63). Algum tempo antes, recebera notícias pouco animadoras sobre a comunidade de Colossos: alguns doutores locais ensinavam doutrinas erróneas que afastavam da verdade do Evangelho e misturavam práticas legalistas e ascéticas, bem como especulações sobre os anjos, ensinando que esta mistura devia completar a fé em Cristo e comunicar aos crentes um conhecimento superior dos mistérios cristãos e uma vida religiosa mais autêntica. Ora, Paulo afirma a absoluta suficiência de Cristo e assinala o seu lugar proeminente na criação e na redenção dos homens.
Viver como “homem novo” implica o cultivo dum conjunto de virtudes resultantes da união do cristão com Cristo: misericórdia, bondade, humildade, paciência, mansidão e, em especial, o perdão das ofensas do próximo, como Cristo fez sempre – virtudes que são exigências e manifestações da caridade, o mandamento fundamental. O que é novo em relação aos catálogos de virtudes da ética grega é a fundamentação na íntima relação do cristão com Cristo, que implica viver no amor total, no serviço, na disponibilidade e no dom da vida.
Depois, o apóstolo aplica tudo isto à vida familiar. Às mulheres, recomenda o respeito para com os maridos; aos maridos, o amor às esposas, evitando o domínio tirânico sobre elas; aos filhos, a obediência aos pais; aos pais, com intuição pedagógica, não serem excessivamente severos para com os filhos, para não tolherem o normal desenvolvimento das suas capacidades. E, desta forma, no espaço familiar, manifesta-se o Homem Novo, o homem que vive em Cristo.
E, se facultativamente for tomada a 1.ª carta de João (1Jo 3,1-2.21-24), fica evidenciado que este amor fraterno deriva do facto de nós sermos efetivamente filhos de Deus, mercê do Seu grande amor para connosco, muito embora não se tenha manifestado “ainda o que havemos de ser”, pois “o que sabemos é que, quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos tal como Ele é” (cf v 2). E é pela plena confiança em Deus que recebemos Dele tudo o que pedirmos, porque guardamos os Seus mandamentos e fazemos o que Lhe é agradável. Com efeito, o Seu mandamento é que “acreditemos no nome de Seu Filho, Jesus Cristo e que nos amemos uns aos outros, conforme o mandamento que Ele nos deu”, pois “aquele que guarda os Seus mandamentos permanece em Deus e Deus Nele; e é por isto que reconhecemos que Ele permanece em nós, graças ao Espírito que nos deu” (cf vv 21-24).
O Pai celeste oferece-nos o dom da vida e torna-nos participantes da Sua própria vida. Enche-nos do Seu amor e da Sua graça, sendo que a fidelidade aos mandamentos nos garante a Sua presença. Depois, ficamos a saber que a família, como espaço em que se pode realizar a representação da vida comunitária divina, é lugar privilegiado, tal como a comunidade eclesial, onde se descobre a vontade de Deus e as maravilhosas perspetivas que oferece a cada um.  
A 1.ª leitura (Sir 3,3-7.14-17a) apresenta, de forma muito prática, algumas atitudes que os filhos devem ter para com os pais. É uma forma de concretizar esse amor de que fala a segunda leitura.
Na verdade, honrar pai e mãe deveria ser algo de espontâneo. No entanto, Deus dotou esta obrigação de uma marca religiosa ao inscrevê-la no decálogo, tornando-a um requisito da Aliança. Por outro lado, ficamos a saber que a honra que tributamos aos pais remonta a Deus, que lhes deu o poder, o gosto e a responsabilidade de transmitir a vida de que Deus é a fonte.
O texto apresenta indicações práticas que os filhos devem ter em conta nas relações com os pais, sobressaindo o verbo “honrar”, que nos leva ao decálogo do Sinai (cf Ex 20,12), onde aparece no sentido de “dar glória”. Ora, “dar glória” a uma pessoa é dar-lhe toda a sua importância. Assim, “dar glória aos pais” é reconhecer a sua importância como instrumentos de Deus. E reconhecer os pais como a fonte pela qual Deus nos dá a vida, conduz à gratidão e ao amor, que tem consequências a nível prático: ampará-los na velhice e não os desprezar nem abandonar; assisti-los materialmente (sem inventar desculpas) quando já não podem trabalhar (cf Mc 7,10-11); não fazer nada que os desgoste; escutá-los, tendo em conta as suas orientações; e ser indulgente para com as limitações que a idade traz. Dado o contexto epocal do Ben-Sira, pode haver, por trás destas indicações, a preocupação com o manter bem vivos os valores que os mais antigos preservam e que passam aos jovens. E, como recompensa desta atitude de “honrar” os pais, Jesus Ben-Sirah promete o perdão dos pecados, a alegria, a vida longa e a atenção de Deus.
E, se facultativamente for tomada a passagem do 1.º livro de Samuel (1Sm 1,20-22. 24-28), fica evidenciada a maternidade como dom de Deus naturalmente concedido à mulher matrimoniada com o marido, mas sobretudo a maternidade concedida a quem, tendo a cooperação e a compreensão do marido, não conseguia alcançar esse dom tido por natural. Foi então que o recurso à oração insistente conseguiu de Deus a maternidade como dom extraordinário. Ana teve um filho, que agradeceu ao Senhor, lho ofereceu, juntamente com o sacrifício em consonância com as suas abundantes posses, e o destinou ao serviço quotidiano do Templo. Ficou mais evidente que a maternidade/paternidade é mesmo dom de Deus. Em certa medida se vislumbram aqui as figuras de João Batista, por um lado (serviço no Templo e pregação no deserto até à prisão sob Herodes), e Jesus, pelo outro (estar na casa do Pai e pregar até à cruz).        
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Fixemo-nos agora na passagem do Evangelho acima referenciado. É o final do “Evangelho da infância” segundo Lucas. Não se trata duma reportagem sobre os primeiros anos da vida de Jesus, mas duma catequese sobre Jesus, em que se diz quem é Jesus e se apresentam algumas coordenadas teológicas que serão desenvolvidas no resto do Evangelho.
A Lei pedia aos homens de Israel que fossem três vezes por ano a Jerusalém, por alturas das três grandes festas de peregrinação (Páscoa, Pentecostes e Festa das Tendas – cf Ex 23,17-17). Embora os rabinos não considerassem obrigatório o cumprimento desta lei até aos 13 anos, muitos pais levavam os filhos antes. Jesus tem 12 anos e, de acordo com Lucas, foi com Maria e José a Jerusalém celebrar a Páscoa.
A chave do episódio está nas palavras de Jesus quando, finalmente, se encontra com Maria e José: “Porque me procuráveis? Não sabíeis que Eu devia estar na casa de meu Pai?”.
O significado catequético da resposta à pergunta de Maria é que Deus é o verdadeiro Pai de Jesus. Daqui se deduz que as exigências de Deus são, para Jesus, a prioridade fundamental, que ultrapassa qualquer outra. A missão que o Pai Lhe confia vai obrigá-Lo a romper os laços com a própria família (cf Mc 3,31-35).
O episódio pode ler-se em chave psicológica, vendo aí a ânsia dos pais chamados a aceitar as escolhas dos filhos, a ver os filhos a tomarem livremente os seus próprios rumos e a afastarem-se de casa e do olhar vigilante de quem constantemente os seguiu. Este aspeto é legível na narração, mas uma análise mais atenta revela-nos outros dados do pensamento do evangelista.
O evangelista narra a infância do Salvador à luz dos acontecimentos da Páscoa. E o quadro da perda e encontro de Jesus apresenta antecipadamente o mistério da morte e da ressurreição de Jesus. Maria e José representam a comunidade cristã que perdeu de repente o mestre, mas, após três dias de espera e procura, consegue encontrá-Lo ressuscitado na glória do Pai.
Posto como final dos dois primeiros capítulos, o episódio tem valor profético e projeta-se para o futuro. A primeira pergunta de Jesus (“Porque me procuráveis?”) lança nova luz sobre tudo o que foi dito até aqui sobre o filho-servo e fornece a chave de leitura de todo o Evangelho. As perguntas “Porque me procuráveis? Não sabíeis que devia estar nas (coisas) de meu Pai?”, dada como resposta a quem O procurou e encontrou ao 3.º dia, manifesta o modo filial como Jesus se empenhou na história dos homens. Numa submissão absoluta ao Pai, Jesus introduz-nos no coração do mistério da Sua pessoa, que escapa à nossa compreensão: Mas “Eles não compreenderam” (v 50). O evangelista, ao longo do seu Evangelho, retomará mais 18 vezes este sentido de necessidade imperiosa de realizar o projeto do Pai.
A narração começa com o ato de obediência de Jesus à Lei e termina com o gesto de submissão aos pais. O menino tornara-se um homem: livremente “desceu com eles, voltou a Nazaré e era-lhes submisso” (v 51). Ora, esta obediência é algo mais profundo que o respeito ou a reverência que um judeu devia ter para com os seus pais.
Chegada à maioridade religiosa, normalmente à idade de 13 anos, o menino hebreu tornava-se “bar mitzvah”, ou seja, “filho do preceito”. Doravante devia observar as prescrições da Lei, em especial no atinente às 3 festas principais (Páscoa, Pentecostes, Tendas) com uma peregrinação a Jerusalém. Lucas apresenta esta subida de Jesus a Jerusalém aos 12 anos, inspirando-se na figura de Samuel que foi apresentado no templo de Silo, na festa da Páscoa, aos 12 anos.
A escolha do Templo como lugar de manifestação do Filho é tipicamente lucana: nele tem início o evangelho (1,8-9); Simeão reconhece a salvação esperada por Israel (2,29-32); e é com uma referência ao Templo que termina o evangelho (24,53). Por outro lado, a insistência lucana na sabedoria de Jesus não pode passar despercebida. No v. 47, o menino que interroga os peritos no conhecimento da Torah (Lei) é apresentado como um mestre que responde às suas perguntas. Surge a maravilha, tão comum em Lucas, diante daquele que se apresenta como a Palavra de graça e à luz do qual o Antigo Testamento irá ter sentido. Por isso, Jesus ressuscitado interpreta as Escrituras aos discípulos de Emaús e abre aos discípulos reunidos a mente para que as entendessem (24,45). É a sabedoria do Filho que vive na intimidade do Pai e em quem confia. Por isso, a oração confiante ao Pai no monte das Oliveiras ou a sua última palavra antes de morrer: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”. Também Jesus ressuscitado, antes de deixar os seus, lhes indicará o Espírito como “a promessa do Pai” (24,49).
Com a resposta a Maria e a José, Jesus começa a distanciar-se dos seus. A Páscoa em que se situa o texto é prefiguração da Páscoa de Jesus em que, três dias depois, as mulheres e os discípulos, não encontrando o corpo de Jesus, se rendem à evidência: Jesus está junto do Pai. E as duas testemunhas, no túmulo, recordarão às mulheres a palavra de Jesus: “é necessário que seja entregue…” (24,7).
O final do texto apresenta uma espécie de refrão muito caro a Lucas “Sua mãe guardava todas estas coisas no seu coração”, na esperança de que um dia perceba o que sucedeu. Esta rutura anuncia a última em que perderá o Filho para, três dias depois, O reencontrar para sempre na fé.
E desceu com eles, voltou para Nazaré e era-lhes submisso”. Parece-nos que, a partir daqui, Jesus nunca mais desobedeceu aos pais e passou a ser bem comportado. Mas Lucas quer algo de diferente e mais profundo: o mandamento “honra teu pai e tua mãe” tornou-se realidade visível na pessoa de Jesus. Este mandamento significa acolher todos os ensinamentos transmitidos pelos pais (Dt 6,20-25) e imitar a sua fidelidade a Deus na linha da tradição dos antepassados. Assim, os pais de Jesus sentiram-se “honrados” no filho que aprendeu a fé dos pais e o amor à palavra de Deus, referência fundamental da Sua vida, que iria cumprir e levar à plenitude.
Jesus viveu em família, o que significa que a salvação não é estranha à vida comum dos homens. De facto, em Nazaré não há milagres, pregações, ajuntamentos de multidões. A família de Jesus era uma família comum, mas exemplar: amavam-se, mesmo nas incompreensões e correções, como nos apresenta este episódio. Porém, nesta família há uma profundidade que é revelada pelo evangelho: a centralidade de Jesus. É este o segredo desta família. Não será por acaso que o nome Nazaré significa “aquela que guarda”, representando toda a vida do discípulo que acolhe, guarda, cuida e faz crescer o Senhor no seu coração e na sua vida.
A frase final estabelece mais uma vez a comparação com o profeta Samuel (cf 1Sm 2,26: “o menino Samuel desenvolvia-se em altura e beleza, diante do Senhor e dos homens”).
Em suma, este episódio como os factos da morte/ressurreição situam-se, como se disse, em contexto pascal; em ambas as situações Jesus é abandonado – aqui por Maria e José; mais tarde, pelos discípulos – pessoas que não compreendem que a prioridade é o projeto do Pai; em ambas as situações, Jesus é procurado (cf Lc 24,5) e frisa que a finalidade da sua vida é cumprir o que o Pai definiu (cf Lc 24,7.25-27.45-46). Lucas apresenta aqui a chave para entender toda a vida de Jesus: veio ao mundo por mandato do Pai com um projeto de salvação/libertação. Àqueles que se perguntam porque deve o Messias percorrer determinada via, Lucas responde: porque é a vontade do Pai, foi para a cumprir que veio ao nosso encontro e entrou na nossa história.
Atente-se, ainda, em duas questões que podem servir para nossa reflexão e edificação: o entusiasmo que Jesus tem pela Palavra de Deus e pelas questões que ela levanta; e a “declaração de independência” de Jesus, que pode ajudar-nos a compreender que a família não é o lugar fechado, onde cada pessoa cresce em horizontes limitados e fechados, mas o lugar onde nos abrimos ao mundo e aos outros, onde nos armamos para a conquista do mundo que nos rodeia.
(http://www.agencia.ecclesia.pt/portal/ano-c-festa-da-sagrada-familia-de-jesus-maria-e-jose/; http://www.dehonianos.org/portal/festa-da-sagrada-familia-ano-c/; http://www.diocese-aveiro.pt/v2/?p=17559); http://geral.paroquiademangualde.pt/index.php/component/content/article/2136-homilia-da-festa-da-sagrada-familia-ano-c.htmlMissal Quotidiano – dominical e ferial, 5.ª ed. Paulus: 2016).

Que a família de Nazaré nos inspire, nos sirva de exemplo e nos ajude!
2018.12.30 – Louro de Carvalho

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