Os textos bíblicos tomados para esta festa complementam-se
apresentando as duas coordenadas a partir das quais constrói a família cristã:
o amor a Deus e o amor ao próximo, sobretudo a quem está mais perto de nós – os
membros da família.
***
O Evangelho (Lc 2,41-52) acentua a dimensão do amor a Deus: o projeto de Deus
tem de ser a prioridade do cristão, a exigência fundamental, a que todas as
outras se devem subordinar. Na verdade, a família cristã constrói-se no
respeito pelo projeto que Deus tem para cada um.
A 2.ª leitura (Cl 12-21) evidencia a dimensão do amor que deve brotar dos
gestos dos que vivem em Cristo e aceitam ser “Homem Novo” – amor que deve
atingir, de forma particular, os que partilham connosco o espaço familiar e que
deve traduzir-se em atitudes de compreensão, bondade, respeito, partilha, serviço.
Este texto pertence à 2.ª parte da Carta aos Colossenses. Depois de constatar a
supremacia de Cristo na criação e na redenção, Paulo avisa os Colossenses de
que a união com Cristo traz consequências a nível da vivência prática: renunciar
ao “homem velho” do egoísmo e do pecado e “revestir-se do homem novo”.
O apóstolo estava na prisão (possivelmente em Roma, anos 61/63). Algum tempo antes, recebera notícias pouco
animadoras sobre a comunidade de Colossos: alguns doutores locais ensinavam
doutrinas erróneas que afastavam da verdade do Evangelho e misturavam práticas
legalistas e ascéticas, bem como especulações sobre os anjos, ensinando que
esta mistura devia completar a fé em Cristo e comunicar aos crentes um
conhecimento superior dos mistérios cristãos e uma vida religiosa mais
autêntica. Ora, Paulo afirma a absoluta suficiência de Cristo e assinala o seu
lugar proeminente na criação e na redenção dos homens.
Viver como “homem novo” implica o cultivo dum conjunto
de virtudes resultantes da união do cristão com Cristo: misericórdia, bondade,
humildade, paciência, mansidão e, em especial, o perdão das ofensas do próximo,
como Cristo fez sempre – virtudes que são exigências e manifestações da
caridade, o mandamento fundamental. O que é novo em relação aos catálogos de
virtudes da ética grega é a fundamentação na íntima relação do cristão com Cristo,
que implica viver no amor total, no serviço, na disponibilidade e no dom da
vida.
Depois, o apóstolo aplica tudo isto à vida familiar.
Às mulheres, recomenda o respeito para com os maridos; aos maridos, o amor às
esposas, evitando o domínio tirânico sobre elas; aos filhos, a obediência aos
pais; aos pais, com intuição pedagógica, não serem excessivamente severos para
com os filhos, para não tolherem o normal desenvolvimento das suas capacidades.
E, desta forma, no espaço familiar, manifesta-se o Homem Novo, o homem que vive
em Cristo.
E, se facultativamente for tomada a 1.ª carta de João
(1Jo 3,1-2.21-24), fica evidenciado que este amor fraterno deriva do
facto de nós sermos efetivamente filhos de Deus, mercê do Seu grande amor para
connosco, muito embora não se tenha manifestado “ainda o que havemos de ser”, pois “o
que sabemos é que, quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O
veremos tal como Ele é” (cf v 2). E é pela
plena confiança em
Deus que recebemos Dele tudo o que pedirmos, porque guardamos os Seus
mandamentos e fazemos o que Lhe é agradável. Com efeito, o Seu mandamento é que
“acreditemos no nome de Seu Filho, Jesus Cristo e que nos amemos uns aos
outros, conforme o mandamento que Ele nos deu”, pois “aquele que guarda os Seus
mandamentos permanece em Deus e Deus Nele; e é por isto que reconhecemos que
Ele permanece em nós, graças ao Espírito que nos deu” (cf
vv 21-24).
O Pai celeste oferece-nos o dom da vida e torna-nos
participantes da Sua própria vida. Enche-nos do Seu amor e da Sua graça, sendo
que a fidelidade aos mandamentos nos garante a Sua presença. Depois, ficamos a
saber que a família, como espaço em que se pode realizar a representação da
vida comunitária divina, é lugar privilegiado, tal como a comunidade eclesial,
onde se descobre a vontade de Deus e as maravilhosas perspetivas que oferece a
cada um.
A 1.ª leitura (Sir
3,3-7.14-17a) apresenta,
de forma muito prática, algumas atitudes que os filhos devem ter para com os
pais. É uma forma de concretizar esse amor de que fala a segunda leitura.
Na verdade, honrar pai e mãe deveria ser algo de
espontâneo. No entanto, Deus dotou esta obrigação de uma marca religiosa ao
inscrevê-la no decálogo, tornando-a um requisito da Aliança. Por outro lado,
ficamos a saber que a honra que tributamos aos pais remonta a Deus, que lhes
deu o poder, o gosto e a responsabilidade de transmitir a vida de que Deus é a
fonte.
O texto apresenta indicações práticas que os filhos
devem ter em conta nas relações com os pais, sobressaindo o verbo “honrar”, que
nos leva ao decálogo do Sinai (cf Ex 20,12), onde
aparece no sentido de “dar glória”. Ora, “dar glória” a uma pessoa é dar-lhe
toda a sua importância. Assim, “dar glória aos pais” é reconhecer a sua importância
como instrumentos de Deus. E reconhecer os pais como a fonte pela qual Deus nos
dá a vida, conduz à gratidão e ao amor, que tem consequências a nível prático:
ampará-los na velhice e não os desprezar nem abandonar; assisti-los
materialmente (sem inventar desculpas) quando já
não podem trabalhar (cf Mc 7,10-11); não fazer
nada que os desgoste; escutá-los, tendo em conta as suas orientações; e ser
indulgente para com as limitações que a idade traz. Dado o contexto epocal do
Ben-Sira, pode haver, por trás destas indicações, a preocupação com o manter
bem vivos os valores que os mais antigos preservam e que passam aos jovens. E,
como recompensa desta atitude de “honrar” os pais, Jesus Ben-Sirah promete o
perdão dos pecados, a alegria, a vida longa e a atenção de Deus.
E, se
facultativamente for tomada a passagem do 1.º livro de Samuel (1Sm 1,20-22. 24-28), fica evidenciada a maternidade como dom de Deus naturalmente concedido à
mulher matrimoniada com o marido, mas sobretudo a maternidade concedida a quem,
tendo a cooperação e a compreensão do marido, não conseguia alcançar esse dom
tido por natural. Foi então que o recurso à oração insistente conseguiu de Deus
a maternidade como dom extraordinário. Ana teve um filho, que agradeceu ao
Senhor, lho ofereceu, juntamente com o sacrifício em consonância com as suas
abundantes posses, e o destinou ao serviço quotidiano do Templo. Ficou mais
evidente que a maternidade/paternidade é mesmo dom de Deus. Em certa medida se
vislumbram aqui as figuras de João Batista, por um lado (serviço no
Templo e pregação no deserto até à prisão sob Herodes), e Jesus, pelo outro (estar na casa do Pai e pregar até à
cruz).
***
Fixemo-nos agora na passagem do Evangelho acima
referenciado. É o final do “Evangelho da infância” segundo Lucas. Não se trata duma
reportagem sobre os primeiros anos da vida de Jesus, mas duma catequese sobre
Jesus, em que se diz quem é Jesus e se apresentam algumas coordenadas
teológicas que serão desenvolvidas no resto do Evangelho.
A Lei pedia aos homens de Israel que fossem três vezes
por ano a Jerusalém, por alturas das três grandes festas de peregrinação (Páscoa,
Pentecostes e Festa das Tendas – cf Ex 23,17-17). Embora os rabinos não considerassem obrigatório o cumprimento desta lei
até aos 13 anos, muitos pais levavam os filhos antes. Jesus tem 12 anos e, de
acordo com Lucas, foi com Maria e José a Jerusalém celebrar a Páscoa.
A chave do episódio está nas palavras de Jesus quando,
finalmente, se encontra com Maria e José: “Porque
me procuráveis? Não sabíeis que Eu devia estar na casa de meu Pai?”.
O significado catequético da resposta à pergunta de
Maria é que Deus é o verdadeiro Pai de Jesus. Daqui se deduz que as exigências
de Deus são, para Jesus, a prioridade fundamental, que ultrapassa qualquer
outra. A missão que o Pai Lhe confia vai obrigá-Lo a romper os laços com a
própria família (cf Mc 3,31-35).
O episódio pode ler-se em chave
psicológica, vendo aí a ânsia dos
pais chamados a aceitar as escolhas dos filhos, a ver os filhos a tomarem livremente
os seus próprios rumos e a afastarem-se de casa e do olhar vigilante de quem
constantemente os seguiu. Este aspeto é legível na narração, mas uma análise
mais atenta revela-nos outros dados do pensamento do evangelista.
O evangelista narra a infância do Salvador à luz dos
acontecimentos da Páscoa. E o quadro da perda e encontro de Jesus apresenta
antecipadamente o mistério da morte e da ressurreição de Jesus. Maria e José
representam a comunidade cristã que perdeu de repente o mestre, mas, após três
dias de espera e procura, consegue encontrá-Lo ressuscitado na glória do Pai.
Posto como final dos dois primeiros capítulos, o episódio tem
valor profético e projeta-se para o futuro. A primeira pergunta de Jesus (“Porque me procuráveis?”) lança nova luz sobre tudo o que foi
dito até aqui sobre o filho-servo e fornece a chave de leitura de todo o Evangelho.
As perguntas “Porque me procuráveis? Não sabíeis que devia estar nas (coisas) de meu Pai?”, dada como resposta a quem O procurou e
encontrou ao 3.º dia, manifesta o modo filial como Jesus se empenhou na história
dos homens. Numa submissão absoluta ao Pai, Jesus introduz-nos no coração do
mistério da Sua pessoa, que escapa à nossa compreensão: Mas “Eles não compreenderam” (v 50).
O evangelista, ao longo do seu Evangelho, retomará mais 18 vezes este sentido
de necessidade imperiosa de realizar o projeto do
Pai.
A narração começa com o ato de obediência de Jesus à Lei e
termina com o gesto de submissão aos pais. O menino tornara-se um homem:
livremente “desceu com eles, voltou a Nazaré e era-lhes submisso” (v 51). Ora, esta obediência é algo mais profundo que o respeito
ou a reverência que um judeu devia ter para com os seus pais.
Chegada à maioridade religiosa, normalmente à idade de 13 anos,
o menino hebreu tornava-se “bar mitzvah”,
ou seja, “filho do preceito”. Doravante
devia observar as prescrições da Lei, em especial no atinente às 3 festas
principais (Páscoa, Pentecostes,
Tendas) com uma peregrinação
a Jerusalém. Lucas apresenta esta subida de Jesus a Jerusalém aos 12 anos, inspirando-se
na figura de Samuel que foi apresentado no templo de Silo, na festa da Páscoa,
aos 12 anos.
A escolha do Templo como lugar de manifestação do Filho é
tipicamente lucana: nele tem início o evangelho (1,8-9); Simeão reconhece a salvação esperada por Israel (2,29-32); e é com uma referência ao Templo que termina o
evangelho (24,53). Por outro lado, a insistência
lucana na sabedoria de Jesus não pode passar despercebida. No v. 47, o menino
que interroga os peritos no conhecimento da Torah
(Lei) é apresentado como um mestre que
responde às suas perguntas. Surge a maravilha, tão comum em Lucas, diante
daquele que se apresenta como a Palavra de graça e à luz do qual o Antigo
Testamento irá ter sentido. Por isso, Jesus ressuscitado interpreta as
Escrituras aos discípulos de Emaús e abre aos discípulos reunidos a mente para
que as entendessem (24,45). É a sabedoria do Filho que vive na
intimidade do Pai e em quem confia. Por isso, a oração confiante ao Pai no
monte das Oliveiras ou a sua última palavra antes de morrer: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”.
Também Jesus ressuscitado, antes de deixar os seus, lhes indicará o Espírito
como “a promessa do Pai” (24,49).
Com a resposta a Maria e a José, Jesus começa a distanciar-se
dos seus. A Páscoa em que se situa o texto é prefiguração da Páscoa de Jesus em
que, três dias depois, as mulheres e os discípulos, não encontrando o corpo de
Jesus, se rendem à evidência: Jesus está
junto do Pai. E as duas testemunhas, no túmulo, recordarão às mulheres a
palavra de Jesus: “é necessário que seja entregue…” (24,7).
O final do texto apresenta uma espécie de refrão muito caro a
Lucas “Sua mãe guardava todas estas
coisas no seu coração”, na esperança de que um dia perceba o que sucedeu.
Esta rutura anuncia a última em que perderá o Filho para, três dias depois, O
reencontrar para sempre na fé.
“E desceu com eles,
voltou para Nazaré e era-lhes submisso”. Parece-nos que, a partir daqui,
Jesus nunca mais desobedeceu aos pais e passou a ser bem comportado. Mas Lucas
quer algo de diferente e mais profundo: o mandamento “honra teu pai e tua mãe”
tornou-se realidade visível na pessoa de Jesus. Este mandamento significa
acolher todos os ensinamentos transmitidos pelos pais (Dt 6,20-25) e imitar a sua fidelidade a Deus na
linha da tradição dos antepassados. Assim, os pais de Jesus sentiram-se “honrados”
no filho que aprendeu a fé dos pais e o amor à palavra de Deus, referência fundamental
da Sua vida, que iria cumprir e levar à plenitude.
Jesus viveu em família, o que significa que a salvação não é
estranha à vida comum dos homens. De facto, em Nazaré não há milagres,
pregações, ajuntamentos de multidões. A família de Jesus era uma família comum,
mas exemplar: amavam-se, mesmo nas incompreensões e correções, como nos
apresenta este episódio. Porém, nesta família há uma profundidade que é
revelada pelo evangelho: a centralidade
de Jesus. É este o segredo desta família. Não será por acaso que o nome
Nazaré significa “aquela que guarda”,
representando toda a vida do discípulo que acolhe, guarda, cuida e faz crescer
o Senhor no seu coração e na sua vida.
A frase final estabelece mais uma vez a comparação com o
profeta Samuel (cf 1Sm
2,26: “o menino Samuel desenvolvia-se em altura e beleza, diante do Senhor e
dos homens”).
Em suma, este episódio como os factos da
morte/ressurreição situam-se, como se disse, em contexto pascal; em ambas as
situações Jesus é abandonado – aqui por Maria e José; mais tarde, pelos
discípulos – pessoas que não compreendem que a prioridade é o projeto do Pai;
em ambas as situações, Jesus é procurado (cf Lc 24,5) e frisa que a finalidade da sua vida é cumprir o que
o Pai definiu (cf Lc 24,7.25-27.45-46). Lucas
apresenta aqui a chave para entender toda a vida de Jesus: veio ao mundo por
mandato do Pai com um projeto de salvação/libertação. Àqueles que se perguntam
porque deve o Messias percorrer determinada via, Lucas responde: porque é a
vontade do Pai, foi para a cumprir que veio ao nosso encontro e entrou na nossa
história.
Atente-se, ainda, em duas questões que podem servir
para nossa reflexão e edificação: o entusiasmo que Jesus tem pela Palavra de
Deus e pelas questões que ela levanta; e a “declaração de independência” de
Jesus, que pode ajudar-nos a compreender que a família não é o lugar fechado,
onde cada pessoa cresce em horizontes limitados e fechados, mas o lugar onde
nos abrimos ao mundo e aos outros, onde nos armamos para a conquista do mundo
que nos rodeia.
(http://www.agencia.ecclesia.pt/portal/ano-c-festa-da-sagrada-familia-de-jesus-maria-e-jose/; http://www.dehonianos.org/portal/festa-da-sagrada-familia-ano-c/; http://www.diocese-aveiro.pt/v2/?p=17559); http://geral.paroquiademangualde.pt/index.php/component/content/article/2136-homilia-da-festa-da-sagrada-familia-ano-c.htmlMissal Quotidiano – dominical e ferial,
5.ª ed. Paulus: 2016).
Que a
família de Nazaré nos inspire, nos sirva de exemplo e nos ajude!
2018.12.30 – Louro de Carvalho
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