A grande
França, como outros países, debate-se com a carestia de vida, a magreza de
salários, a dificuldade de vida nos subúrbios e a degradação das condições de
vida no meio rural. Por outro lado, em vez de dar lições sobre direitos
humanos, foi sucumbindo à onda de negação dos direitos do trabalho e do
trabalhador, passando o trabalho a ser o espaço da indignidade e o trabalhador
a ser o simples colaborador descartável quando não útil. Isto, a par da
atração, alegadamente irresistível, do capital pelos paraísos fiscais,
deixando-o sem rosto, mas a atuar, sem dó nem piedade, na degradação das
relações económicas e no equilíbrio social, em nome da austeridade como receita necessária e infalível para os
males socioeconómicos.
Ademais,
vêm os acordos internacionais a atrapalhar a governança, destacando-se o Acordo de Paris, que pretende a redução
drástica e cega, sem contrapartidas, da emissão de gases para a atmosfera para
evitar o sobreaquecimento global e a subida do nível das águas oceânicas.
No meio
de tudo isto, o Governo de Emmanuel Macron aboliu as taxas sobre as grandes
fortunas sob o pretexto de travar a saída de capitais e anunciou a subida do imposto
sobre os combustíveis a contribuir para a execução nacional do Acordo de Paris, o que veio pôr mais a
nu a dificuldades socioeconómicas acima elencadas, emergindo uma classe média
baixa, que vem empreendendo um protesto inorgânico à margem das estruturas
sindicais (a que o poder e a sociedade foram subtraindo
relevância) com
experiência reivindicativa organizada e habitualmente sem grande deriva
violenta e vandalizante.
***
Perante este
cenário, o Presidente francês – que se apresentara com um projeto pessoal
reformista; outros dizem que, perante o descrédito dos partidos políticos
moderados, foi um produto fabricado “ad hoc” – está fragilizado, como diz
Susana Salvador no DN de hoje, e longe
de ser o Júpiter capitolino que almejava ser ou o Zeus dialis do Olimpo, mas terá de “quebrar o silêncio nesta
semana, depois do quarto sábado consecutivo de protestos e de novas cenas de
violência em Paris”.
Com efeito, a seguir ao
“hiperpresidente” Nicolas Sarkozy, que prendia ter mão em tudo, e ao
“presidente normal” François Hollande, a pretensa antítese do antecessor, Macron
procurava ser um presidente “jupiteriano”, evocando o romano Júpiter (ou o Zeus
grego), o pai dos deuses e dos homens na
mitologia greco-romana, mas aqui alegadamente acima das politiquices (pois a
rejeição dos partidos tradicionais o impulsionou para a vitória e para uma
maioria absoluta na Assembleia Nacional), e
empreender reformas ambiciosas, sem cedência à pressão das ruas.
Todavia, ano
e meio após a sua ascensão ao Eliseu, desceu à terra, atordoado pelos protestos
dos coletes amarelos a pretexto do fim do aumento dos combustíveis, mas que
foram mais além. Macron é o “presidente dos ricos”, por ter acabado com o imposto
sobre as grandes fortunas, feito a reforma do sistema de pensões e cortado nos
gastos públicos. Os protestos não se ficam só no compromisso governamental com
o não aumento das taxas sobre os combustíveis: querem também melhores salários
e menos precariedade no emprego. Com efeito, salários como os comummente
praticados não dão para um indivíduo viver decentemente e suportar a subsistência
da família; e a precariedade e as más condições no trabalho atentam contra
dignidade humana. Assim, as ruas de Paris e doutras cidades francesas voltaram,
no dia 8, a ser palco de confrontos entre a polícia e os manifestantes de
coletes amarelos – os que é obrigatório ter nos carros para usar em caso de
avaria ou acidente. E, graças às cenas de vandalismo do dia 2, que deixaram
marcas no Arco do Triunfo e prejudicaram a imagem de França (vários países,
como Portugal, apelaram a evitar deslocações desnecessárias a Paris), a capital foi blindada. Segundo os números oficiais, cerca de 125 mil pessoas (136.000,
segundo outros) manifestaram-se
no dia 8 em França, das quais 8.000 em Paris. Eram tantas como os polícias
deslocados para a capital (89 mil em todo o país) para fazer face ao “Ato IV” dos protestos (o “Ato I” foi a 17 de novembro e
reuniu 300 mil manifestantes). Desta
feita, a polícia usou canhões de água e gás lacrimogéneo a travar os atos de
vandalismo (carros incendiados e vidros das montras de lojas e restaurantes partidos –
dizem que tal aconteceu quando os jovens dos subúrbios irromperam) e dispersar os manifestantes. Até ao início da
noite, já tinham sido detidas 1385 pessoas (920 em Paris) e havia 118 feridos. Houve confrontos na capital e
em Lyon, Marselha e Toulouse. E receava-se que a situação piorasse com o avanço
da noite.
Em
conformidade com a indicação do Ministério do Interior francês neste domingo, foram
identificadas em França, no dia 8, perto de 2.000 pessoas no âmbito dos
protestos dos “coletes amarelos” que levaram às ruas cerca de 136.000
manifestantes. As interpelações deram origem a mais de 1.700 detenções, segundo
o balanço definitivo do quarto grande dia de manifestações daquele movimento,
que começou há algumas semanas em protesto contra o aumento do preço dos combustíveis
e que ampliou, depois, as reivindicações à recuperação do poder de compra e vem
pedindo a demissão de Macron. Os dados divulgados antes pelo Ministério davam
conta de 1.723 pessoas identificadas no território francês e 1.200 detidos. Só
em Paris registaram-se 1.082 detenções, como informou à agência espanhola Efe fonte da polícia da capital
francesa.
No sábado,
dia 8, o Ministro do Interior anunciou que 135 pessoas ficaram feridas durante
os protestos, 17 das quais polícias. E fonte policial disse à Efe que 96 daquelas pessoas, incluindo
10 dos polícias, foram feridas em Paris. “Globalmente” a violência foi menor do
que no fim de semana passado e “o nível de tensão baixou”, mas a situação “não
é satisfatória”, como declarou o porta-voz do Governo francês Benjamin Griveaux
à emissora Europe 1. A participação
dos “coletes amarelos” nas manifestações em todo o país, segundo os cálculos do
Ministério do Interior, foi sensivelmente a mesma da do passado dia 1. Mas os
distúrbios deste sábado em Paris foram menos graves que os de há uma semana
devido, em boa medida, ao impressionante dispositivo de segurança (8.000
agentes, quase o dobro do dia 1, apoiados inclusive por blindados) e a uma ação muito mais reativa perante qualquer
incidente. Ainda assim, repetiram-se as cenas de carros queimados, de montras
partidas, de lojas saqueadas e de barricadas nas ruas.
***
Apesar da
sua promessa de nunca ceder, Macron teve de o fazer na semana que passou, cancelando
o aumento na taxa sobre os combustíveis, prevista para 2019 como uma das
medidas do plano ecológico. Não obstante, os protestos continuaram e surgiu a
divisão entre os manifestantes, vindo o grupo autointitulado “coletes amarelos
livres” a pretender a interrupção dos protestos para dar lugar ao diálogo. A pari, outro grupo apressou-se a
acrescentar à lista reivindicativa novos itens, evidenciando que, há muito, as
manifestações não se devem apenas ao preço dos combustíveis: expressam também o
descontentamento crescente dos franceses – mormente da França rural – com a
política presidencial, exigindo a demissão do Presidente.
Por isso, Richard
Ferrand, líder da Assembleia Nacional, anunciou que Macron quebrará o silêncio
para falar no início desta semana, ignorando-se o momento (talvez dia
10) e o formato, e que o Presidente
não quisera falar antes do dia 8, para não lançar mais achas na fogueira e tornar
mais complicada a situação. E um membro da sua equipa disse ao Le
Parisien, sob anonimato que “Ele considera que não é o momento” e “quer
controlar o timing das suas intervenções”, mantendo “o efeito
surpresa”. Contudo, fica sem se perceber se o que disser e o modo como o fizer
evitarão novos protestos, no próximo sábado, dia 15. Fonte do Eliseu disse
àquele jornal:
“Para ele, este não é um episódio como outro qualquer. É uma crise com
raízes profundas, devido ao grau de mal-estar expresso. É também uma crise
moral. É uma loucura ter de apelar à calma, quando isso devia ter sido um
reflexo democrático da parte de todos os partidos.”.
Do meu ponto de vista, pode chamar-se loucura o apelo presidencial à
calma atirando para os partidos o ónus dessa atitude, quando os partidos estão
sem autoridade pela ineficácia e descrédito dos grupos políticos até agora
dominantes e pelo ceticismo, populismo e radicalismo dos ora emergentes, que
almejam. Dizer que se trata de crise moral é verdade, mas tem de se refletir
sobre o sítio onde ela se origina e quem o protagoniza. Serão os cidadãos
comuns os responsáveis maiores por ela? Porque não os avaros detentores do
capital, que mascaram de altruísmo esquemas de corrupção e evasão fiscal, a par
da emigração de capitais? Porque não os poderes políticos, que não têm mostrado
força para fazer intervir o Estado na regulação, usam o poder em próprio
proveito ao invés do zelo pelo bem comum e não conseguem administrar a justiça
com eficácia e celeridade? Porque não os empresários, que emagrecem os
salários, precarizam o emprego e aviltam o trabalhador com a degradação das
condições de trabalho?
***
Se Macron fizer mais
cedências, ficará mais fragilizado e à mercê dos próximos que saiam à rua; e,
se mantiver a posição de força, reiterando a necessidade de dialogar, poderá
forçar maior divisão entre os coletes amarelos (que nunca foram um grupo homogéneo). Só que,
do outro lado, o governo não tem interlocutor válido e com rosto convencional,
pois o movimento nasceu e cresceu inorganicamente nas redes sociais, sem
líderes claros, e escapou das mãos dos que lançaram os primeiros apelos ao
protesto, com denúncias de infiltrações por parte de membros da extrema-direita
e da extrema-esquerda, mais interessados em acabar com o sistema e derrubar o
governo. A este respeito, Christophe Castaner, Ministro do Interior disse, no
dia 7, que o movimento “criou um monstro”.
Macron parece
acalentar a expectativa de que os protestos que duram há quase um mês percam
força, começando a esmorecer na opinião pública o apoio aos coletes amarelos à
medida que se repitam os atos de violência e vandalismo, o que é arriscado,
pois 66% dos franceses inquiridos numa sondagem Ifop para a Sud Radio, ainda na última semana,
disseram apoiar o movimento, ao passo que a popularidade do Presidente está no
valor mais baixo de sempre (18%.).
Embora a palavra de ordem nas ruas seja
“Macron, demissão”, quem poderá cair é o Primeiro-Ministro, Édouard Philippe,
cuja popularidade é ligeiramente superior (21%) à do Presidente após terem surgido sinais de divisões entre ambos. O
chefe do Governo defendia a suspensão do aumento da taxa, mas foi desautorizado
depois por Macron, que anunciou o cancelamento.
Para
Philippe, o tempo da suspensão de 6 meses do aumento da taxa seria usado para
refletir numa forma mais equitativa de introduzir essa taxa (visando
igualar o preço do gasóleo ao da gasolina), sendo
que, se tal não fosse possível, não seria restabelecido o imposto. Mas o ocupante do Eliseu anulou o aumento da taxa. Nos estúdios da BFM-TV, o Ministro da Transição
Ecológica, François de Rugy, explicou:
“Assim, não há trafulhice. O Presidente – estive a falar com ele há
poucos minutos ao telefone – disse-me: ‘As pessoas tiveram a impressão de que
havia uma trafulhice, que lhes dizíamos que era uma suspensão, mas que voltaria
depois’.”
Por isso, há
quem já fale mal-estar entre Presidente e Primeiro-Ministro, que poderá levar
ao afastamento do ocupante do Palácio do Matignon, que o nega, ao declarar à TF1:
“A missão é alcançar os objetivos que foram fixados pelo presidente da
República. Faço-o com o apoio da maioria e com a confiança do Presidente. E é o
que me importa.”.
E o Eliseu garantiu
à AFP que existe “harmonia perfeita”
entre ambos.
***
As 5 confederações sindicais representativas e as três
organizações patronais são recebidas no dia 10 pelo Presidente Emmanuel Macron,
no Eliseu, segundo fontes sindicais, que referem:
“O Presidente da República pretende reunir o
conjunto das forças políticas, territoriais, económicas e sociais neste momento
grave que a Nação atravessa, para ouvir (…) as suas propostas e com o objetivo
de as mobilizar para agir”.
Assim, o Chefe
de Estado encontrar-se-á com os parceiros sociais após um fim de semana marcado
por mais protestos do movimento dos “coletes amarelos”, que juntaram nas ruas
de França cerca de 136.000 manifestantes. Isto, depois de terem sido recebidos,
a 30 de novembro, pelo Primeiro-Ministro, a quem pediram medidas rápidas e
concretas.
No passado
dia 7, realizou-se uma primeira mesa-redonda no Ministério do Trabalho, no
quadro de encontros regulares com vista a permitir a Governo e parceiros
sociais uma reflexão conjunta duas vezes por semana sobre 5 temas: transportes,
habitação, poder de compra, acessibilidade aos serviços públicos e fiscalidade.
***
É de
esperar que a situação se resolva, mas duvida-se da lucidez e vontade políticas,
que sucumbem facilmente às garras da economia estrangulada pela especulação capitalista-financeira
– a dita realidade. É necessário desmentir as vozes que asseguram que a França
não sabe fazer reformas, mas sabe ir até ao fundo produzindo revoluções e que
já apresentam o espectro de 1789 e o do Maio de 68. Só que as revoluções, mesmo
que necessárias, costumam fazer as suas vítimas, até entre os seus corifeus e,
tantas vezes, fazem voltar tudo à estaca anterior com um rosto ou mais aliviado
ou mais carrancudo.
Porém,
se o movimento contestatário e inorgânico alastrar pela Europa, grupos sôfregos
do poder, ora emergentes, tomarão conta da sua dinâmica reivindicativa e
imporão, por via populista e securitária, as suas opções; e o projeto europeu merecerá
o côngruo “De profundis”. Basta que o
Parlamento Europeu e/ou o Conselho tenham uma maioria de antieuropeístas e
eurocéticos. E os EUA, A China e a Rússia verão essa derrocada com belos e bons
olhos. Ainda não demos conta de que a China pretende o controlo dos principais pontos
geoestratégicos no mundo e impor-lhes a sua marca pela via do investimento, da
compra de dívida e da posição dominante em empresas e pela via sociocultural?
É tempo
de o Velho Continente se ter nas pernas e prosseguir a sua rota de afirmação e de
diálogo com o mundo.
2018.12.09 –
Louro de Carvalho
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