quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Currículo menos teórico, menos extenso e mais equilibrado


O último relatório do “Estado da Educação”, produzido pelo CNE (Conselho Nacional de Educação) e editado no passado mês de novembro, refere-se ao ano de 2016/17 e, no decurso da análise da realidade educativa, aponta vários caminhos. Dirigentes no sistema educativo, diretores escolares e ex-ministros refletem sobre os dados, recomendações, alertas, e defendem um plano curricular mais prático e mais próximo dos novos conhecimentos e das novas tecnologias, bem como um pacto em nome da estabilidade.

As conclusões do CNE materializam-se no seguinte:
- Está consagrada na lei, nos recursos de aprendizagem, a institucionalização do empréstimo de manuais escolares, em conformidade com o Parecer n.º 8/2011 (do CNE) e que é recorrente em muitos países europeus, mas o equipamento informático está envelhecido e tem vindo a aumentar o número médio de alunos por computador nos últimos três anos (vd capítulo 6.3).
- É de recomendar um estudo rigoroso da situação de apetrechamento tecnológico da escola, da ligação à internet e das necessidades quer de equipamento, quer de formação e apoios técnicos.
- Considerando o envelhecimento da população docente e a redução na procura dos cursos de formação de professores, urge fazer e divulgar um estudo da necessidade de novos professores para os diversos grupos de recrutamento, bem como o estudo e planeamento para técnicos e outro pessoal não docente das escolas; e, tendo em conta as elevadas percentagens de professores do quadro, importa perceber as razões da mobilidade docente (vd cap. 6.1).
- É de repensar a organização do ensino básico, designadamente a velha questão do 2.º ciclo (um ano para entrar outro para sair), dadas as dificuldades assinaladas nos anos de transição;
- Urge institucionalizar um corpo de profissionais de desenvolvimento curricular que procedam a revisões regulares, periódicas e sistemáticas dos programas de todos os níveis e disciplinas, para melhor adequação dos programas aos destinatários e aos avanços da ciência.
- Ao invés da ideia veiculada por alguns, as mudanças introduzidas no sistema educativo retomam uma evolução positiva anterior, procuram maior adequação do sistema aos públicos heterogéneos que o frequentam e maior flexibilidade capaz de suscitar novas formas educativas mais adequadas às necessidades do presente. E, enquanto a sociedade digital pede ao sistema formação profissional avançada nas áreas tecnológicas, a situação política mundial (com crescentes conflitos, divisões e recuos civilizacionais) postula mais e melhor à educação: aprendizagens profundas, duradouras, significativas e sábias que coloquem o ser humano e o bem comum no centro da sua atuação.
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A este respeito, Sara R. Oliveira, no “educare.pt” fez, a 10 de dezembro, sucinta referência ao relatório sublinhando pontos relevantes como: a continuidade da concentração do insucesso nos filhos de famílias mais carenciadas e com menos formação; a possibilidade de acabar com o 2.º Ciclo do Ensino Básico; a criação duma estrutura que trate da avaliação e revisão dos programas de todas as disciplinas de forma sistemática; e a verificação do envelhecimento dos docentes.
Depois, dá voz aos diretores escolares desta última análise feita pelo CNE.
Assim, diz que a ANDAEP (Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas) defende, há muitos anos, um pacto na Educação relativamente a, pelo menos dois setores: o plano curricular, para que perdure, pelo menos, duas legislaturas completas, por ser fundamental para alunos e professores saber o que se ensina; e a avaliação externa dos alunos, para que se mantenha, pelo menos, 8 anos sem sofrer alterações, pois a experiência mostra um governo de esquerda a priorizar as provas de aferição e um governo de direita a privilegiar os exames.
A isto, Filinto Lima, presidente da ANDAEP, professor e diretor escolar, recorda a vontade e os benefícios do pacto, nomeadamente ao nível da estabilidade, e insiste na necessidade dum forte investimento nesta área, referindo:
O Orçamento do Estado 2018 traduziu-se num autêntico balde de água fria e num rude golpe desferido na Educação, e este corre o risco de ir pelo mesmo caminho. […] Critiquei veementemente o modo como a Educação e os seus profissionais foram (mal)tratados, num documento orçamental que arrasou a dignidade docente, vilipendiando o sacrifício, por congelamento da progressão na carreira de 9 anos, 4 meses e 2 dias, tempo exercido em docência, com a pretensão de que, passando-lhe a borracha, não tivesse existido. Atentando nos discursos políticos reiteradamente proferidos, não se prognosticava tal crueldade.”. 
O CNE revela que 2,5 milhões de portugueses só têm o 4.º ano de escolaridade e que cerca de 5% são de analfabetos – números que nos envergonham e impõem medidas para diminuir tais valores escandalosos no século XXI. E a ANDAEP insiste na necessidade da aposta na educação de adultos. O CNE dá nota de que há menos computadores nas escolas, tendo em conta o número de alunos, e que as condições da docência são precárias, sustentando:
As escolas necessitam de renovar o seu parque informático, já obsoleto, e ser dotadas de rede wifi fiável pois a atual obriga à preparação pelos professores de dois planos para a mesma aula: plano A com recurso à internet, usando computadores ou outros instrumentos tecnológicos; e o plano B, aula ‘tradicional’ não planeada em primeira instância pelo professor”. 
Quanto ao envelhecimento da classe docente, aumento dos atestados médicos e aumento de 88% do número de docentes a recorrer à mobilidade por doença, Filinto Lima, falando numa profissão de desgaste rápido e que, por isso, poderia haver a possibilidade de, a partir dos 60 anos e até à reforma/aposentação, os professores terem a hipótese de optar pelo exercício de funções não letivas, diz:
Ao nível do pessoal docente tratou-se de um ano em que, muito provavelmente, o número de baixas médicas por depressão (efeito do implacável burnout) foi dos mais elevados, ao ponto de, no início do ano, os visados ainda não se encontrarem aptos para regressar ao serviço, aguardando a convocação para Junta Médica”. 
E, frisando que a escola é cada vez mais o elevador social, sobretudo das classes desfavorecidas e que “ainda há um longo caminho a percorrer, para atenuar tamanha disparidade”, Filinto, que tem vindo a defender a revisão do modelo de acesso ao Ensino Superior e que seja feito um debate sério e criterioso em torno do assunto, recorda que o diretor para a Educação da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) referiu que o atual modelo está refém dos exames nacionais realizados num ciclo de estudos “sem identidade própria”.
Também não desagrada à ANDE (Associação Nacional de Dirigentes Escolares) a possibilidade de acabar com o 2.º Ciclo. Mas tal mudança implicará uma revisão profunda da LBSE (Lei de Bases do Sistema Educativo), o que poderá não ser muito fácil neste momento. Diz Manuel Pereira, presidente da ANDE:
De facto e não alterando a atual estrutura dos outros ciclos, a existência de um 1.º Ciclo com 6 anos é um modelo experimentado com sucesso em boa parte dos países europeus e pode ser resposta a um dos problemas fulcrais usualmente identificados por professores e encarregados de educação, como é o problema da dificuldade de transição, aos 9/10 anos de um modelo em que há um só professor titular, para um modelo em que lecionam vários professores”.
Na opinião deste dirigente, que subscrevo e já foi tentada, essa mudança será mais tranquila por volta dos 12 anos, período de maior maturidade intelectual e física, mas talvez provocasse alguns problemas em termos de adaptação da classe docente, obrigando, em contrapartida, a um processo de adaptação proativo que poderia resultar muito positivamente. Porém, muitos dos professores que lecionam o 2.º Ciclo são já, em termos de formação inicial, professores de educação básica “com variantes diversas”.
Preconiza o CNE a criação duma instituição, órgão ou departamento que se dedique a tempo inteiro ao desenvolvimento curricular em nome da fulcralidade da estabilidade. Ora, para a ANDE, a revisão regular de algumas áreas dos programas de várias disciplinas é atitude acertada, útil e necessária para adaptar os currículos aos novos conhecimentos e às novas tecnologias, para acabar com a repetição de conhecimentos redundantes que se cruzam ao longo da escolaridade nas mais diversas áreas disciplinares, independentemente de muitos desses conhecimentos estarem também desfasados dos “grupos etários dos alunos a que se destinam”. É, pois, urgente redimensionar as cargas curriculares, torná-las mais apetecíveis, racionais e adaptadas às idades dos alunos; e é fundamental tornar os currículos mais práticos, mais experimentais, menos teóricos (sem esquecer as humanidades) e menos extensos de modo a garantir o tempo necessário para os apreender, assimilar e compreender. E Manuel Pereira realça:
A criação de uma instituição que se responsabilizasse por essas áreas talvez pudesse contribuir para uma maior racionalização e modernização do sistema educativo”. 
Além disso, o Presidente da ANDE, salientando a responsabilidade e a relevância das famílias pelos comportamentos sociais dos seus educandos, adverte:
A escola que temos continua a reproduzir socialmente os seus alunos. É incontornável. De facto e não obstante o grande esforço dos diversos atores educativos, continua a haver uma enorme incapacidade de intervenção a montante. As famílias continuam a ser as principais responsáveis pelos diversos comportamentos sociais dos seus educandos, seja em termos de aprendizagem, seja em termos de expectativas ou em termos de definição de horizontes; e, por muito que a escola faça, é sempre preciso encontrar outras soluções junto de algumas famílias que podem passar por apoios sociais, criação de emprego ou acompanhamento técnico das mesmas.”. 
Apesar dos esforços, tem sido difícil diluir as diferenças e garantir a igualdade e a equidade que a Constituição exige. Muito se conseguiu, mas muito há a fazer. E Manuel Pereira sustenta:
Continuamos, contudo, a ser testemunhas de crianças que chegam à escola pouco cuidadas, mal alimentadas ou mal vestidas. Continuamos a assistir, nas escolas, à proverbial redução de meios humanos ou outros e, sem dúvida, percebemos que esta situação, infelizmente, se irá manter por muitos anos.”.  
Registando que a Ação Social Escolar tem sido importante apoio na redução das desigualdades, este dirigente associativo alerta:
Temos consciência de que muito resta a fazer até chegar o dia em que a proveniência social das crianças deixe de ser o elemento mais marcante no processo de aprendizagem e concomitante sucesso educativo dos mesmos. […] As escolas precisam de mais recursos humanos e técnicos. Precisam de mais meios efetivos de forma a poder acompanhar os alunos também junto das famílias. Precisam de ser mais valorizadas e socialmente mais acreditadas. É pela Educação que vamos!”. 
Finalmente, Manuel Pereira alerta para o grande problema que a escola atravessa: a distância de idades entre alunos e professores. A idade média dos educadores de infância aproxima-se dos 55 anos e a dos docentes do 1.º Ciclo ultrapassa os 50. E o Presidente da ANDE discorre:
Esta décalage afasta uns e outros nomeadamente em termos psicológicos e em termos de relacionamento imediato. […] De facto, neste momento, os alunos da educação pré-escolar e do 1.º Ciclo, genericamente, olham os respetivos professores como estando, em termos etários, próximos dos seus avós com toda a carga psicológica que tal acarreta nomeadamente em termos comportamentais.”. 
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Os ex-ministros da Educação David Justino e Maria de Lurdes Rodrigues defenderam em Viseu, no passado dia 6, como refere o “educare.pt” no dia 7, a continuidade da formação ao longo da vida, com a ex-governante socialista a valorizar os diplomas escolares e o socialdemocrata a valorização social e pessoal.
O ex-ministro socialdemocrata vincou:
Hoje as pessoas estão mais abertas, mais interessadas em recorrer à educação, mas fundamentalmente à formação ao longo da vida, precisamente porque começam a perceber que essa formação ao longo da vida, em vida adulta, é importante para a sua valorização pessoal e social e para a sua capacidade de se adaptar aos novos tempos”.
E, enaltecendo os “passos importantes” dados nesta matéria, disse que o desafio de agora é o de “preparar pessoas para cenários de desenvolvimento que não eram os de há 10, 15 anos”. Neste sentido, defendeu a valorização de um “conjunto de qualificações que tem a ver com a capacidade de adaptação, com a capacidade de resolver problemas, tem a ver com a capacidade de poder encontrar soluções para problemas não previstos” havendo, como acrescentou, “um conjunto de novos desafios que vão colocar também novas questões a este mundo”. E, considerando estes desafios, lançou um desafio no decorrer do painel “Aprendizagem ao longo da vida: Balanço de uma estratégia”, na conferência sobre o tema organizada pelo CES (Conselho Económico e Social), em Viseu. E desafiou:
Vamos traçar um conjunto de três, quatro cenários fundamentais e vamo-nos entender sobre as necessidades de apostar em determinados domínios, nomeadamente na educação e formação e, em torno desses cenários, com parceiros sociais, com partidos políticos, com outros atores definir: É isto que nós queremos? Então daqui a cinco, dez anos é para aqui que queremos ir.”.
O ex-governante socialdemocrata lembrou o que ele próprio também fez, mas que não assume:
Se houver convergência e esse compromisso torna-se mais fácil, mas, caso não haja, vai continuar a assistir-se eternamente a esta ideia de que vem um novo governo e deita tudo abaixo, faz tudo ao contrário do anterior, e isso é que não pode continuar”.
Os domínios de educação em que se deve apostar estão bem definidos para a também ex-ministra da Educação do Partido Socialista, que no mesmo painel defendeu a necessidade dos diplomas escolares na aprendizagem ao longo da vida, declarando:
Os diplomas que têm de facto valor no mercado são os escolares. Ter o ensino básico, o secundário, uma licenciatura, um mestrado, um doutoramento. Os diplomas profissionais que não conferem grau são muito importantes, mas têm um valor menor no mercado.”.
Lurdes Rodrigues defendeu que, se o objetivo a aprendizagem ao longo da vida, tem de se resolver o problema básico da existência de milhares de portugueses que não têm um diploma escolar”, não têm o 9.º ano, não têm o 12.º ano, não têm ainda uma licenciatura. E disse:
É neste campo que penso que se deve trabalhar, na articulação com o sistema de ensino profissional não esquecendo nunca que a aprendizagem ao longo da vida não pode ser apenas uma aprendizagem profissional tem que ter em atenção a certificação e a habilitação escolar de todos os cidadãos”.
Um problema que na opinião da ex-governante não se coloca nas gerações mais novas, “porque já incorporaram a ideia da recorrência, a ideia de que o processo de formação é inacabado e, por isso, voltam à universidade” para mestrados e pós-graduações, pelo que importa “apostar nas gerações mais velhas e incentivá-las a voltar a estudar”. E vincou:
Para isso, o discurso é muito importante, o discurso político valorizador da aquisição de competências e da formação. Há muitas outras ações como a acessibilidade, permitir o acesso gratuito, dar possibilidades no local de trabalho para que as pessoas possam estudar e, nesse sentido, a articulação com os parceiros sociais, com os empregadores é muito importante.”.
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O que propõe o CNE, interpretado e assumido por Filinto Lima e Manuel Pereira, implicará uma reforma profunda no sistema, que não sei se o poder político é capaz de conseguir. Reformar a LBSE, reorganizar o sistema educativo, rever periodicamente currículo e programas, repensar o mecanismo do ingresso no ensino superior são ditames que têm como inimigos a inércia, o eleitoralismo e os interesses instalados. Surja um reformador corajoso. Estabeleça-se o pacto de estabilidade, mas não se hesite em mudar pontualmente o que estiver mal.
2018.12.12 – Louro de Carvalho

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