domingo, 23 de dezembro de 2018

A visita de Maria a Isabel, um modelo de caminhada catequética


Confesso que nunca tinha pensado nisto para o episódio evangélico narrado na liturgia da Missa do IV domingo do Advento, no Ano C (Lc 1,39-45). Porém, a homilia do Bispo de Santarém na Missa a que presidiu na catedral daquela cidade episcopal, transmitida pela Rádio Renascença, fez-me pensar.
Dom José Traquina, como era de esperar, referiu a proximidade da Solenidade do Natal do Senhor, feito menino nascido na humildade do presépio belemita. E sublinhou que até a escolha dessa cidade, pequeníssima e sem valor político e social, a não ser o de possuir título de cidade de David, era sinal de opção de Deus pela simplicidade e pela pobreza.  
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Na verdade, o profeta Miqueias (vd Mq 5,1-4a), no século VIII a. C., chama a atenção para a pequenez da cidade de Belém, onde irá nascer o Salvador, falando-nos de humildade também através do local que escolheu para nascer: “De ti, Belém-Efratá, pequena entre as cidades de Judá, de ti sairá aquele que há de reinar sobre Israel.
A tradição judaica (cf Rt 4,11; 1 Sm 16,1-13; 17,12; e o Talmud: Pesahim 51,1; Nedarim 39,2) e a cristã (cf Mt 2, 4-6; Jo 7,40-42) consideram esta profecia referida ao lugar do nascimento de Cristo. Beth-léhem significa casa do pão; e Efratá (fecunda) distingue-a da homónima Belém, na Galileia.
A propósito de Miqueias considerar Belém “pequena entre as cidades…” (superlativo hebraico, a significar a mais pequena das cidades),  Mateus (Mt 2,4-6) cita o texto fazendo uma leitura atualizada para mostrar que em Jesus se cumpre esta profecia. Para isso recorre ao deraxe (recurso de atualização próprio da hermenêutica judaica, o chamado al-tiqrey: “não leias”), que tem em conta que em hebraico não se escreviam as vogais. Assim, a palavra hebraica com que se diz “as cidades de” (alfey) é lida com outras vogais de modo a significar “as principais (ou príncipes) de” (al-lufey). Nestes termos, pode Mateus dizer, não falseando o texto, mas interpretando-o: “Não és de modo nenhum a menor entre as principais cidades de Judá”.
Segundo Miqueias, Aquele que há de reinar em Israel é anterior ao tempo (“as suas origens remontam aos tempos de outrora, aos dias mais antigos”), portanto, eterno e divino. Isaías diz de outro modo a mesma realidade:  
Um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado; tem a soberania sobre os seus om­­bros, e o seu nome é: Conselheiro-Admirável, Deus he­rói, Pai-Eterno, Príncipe da paz” (Is 9,5).
É o que Miqueias conclui no v. 4: Ele será a Paz” – o que parece ser citado em Ef 2,14.
E este profeta fala dum abandono provisório desta cidade e, em certa medida, dos tempos de outrora até chegar o tempo daquela “que há de ser mãe”. Assim, este tempo, plasmado na profecia de Isaías (Is 7,14:a jovem está grávida e vai dar à luz um filho, e há de pôr-lhe o nome de Emanuel”) vem realizar-se em Maria:
Hás de conceber no teu seio e dar à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus. Será grande e vai chamar-se Filho do Altíssimo (Lc 1,31-32). […] Completaram-se os dias de ela dar à luz e teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria (Lc 2,6-7).”.
O nascimento do Messias em Belém não acontece por acaso. Nascerá em Belém e não numa grande cidade como Jerusalém, porque, se fora o orgulho a causa da cegueira dos nossos primeiros pais, de tantos dirigentes do povo de Israel e dos demais povos, Ele vem, desde logo, ensinar o caminho oposto, o único verdadeiro, o da humildade, mesmo desconcertante. Esta é uma virtude fundamental, que, desde a Sua entrada neste mundo, a todos Ele quer manifestar. O reino que vem implantar não vai ser um reino imposto pelas armas, pelo poder, mas pela humildade – um reino de serviço, de Amor, de Verdade, de Justiça, de Vida e que só os audazes arrebatam, porque os seus critérios são desconcertantes em relação aos do mundo.
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Na passagem do Evangelho desta dominga (Lc 1,39-45), vislumbra-se uma série de ressonâncias veterotestamentárias, próprias do estilo do hagiógrafo e sobretudo consonantes com a sua intenção teológica de mostrar como em Maria, Mãe de Jesus, se corporizam e cumprem as figuras do AT (Antigo Testamento). Na verdade, Maria torna-se a nova e verdadeira Arca da Aliança (cf Lc 1,43 com 2 Sm 6, 9 e Lc 1,56 com 2 Sm 6,11) e a verdadeira salvadora do povo, qual nova Judite (cf Lc 1,42 com Jdt 13,18-19) e qual nova Ester (cf Lc 1,52 e Est 1–2).
A tradição diz que a cidade de Judá para onde Maria se dirigia apressada em demanda do estado de Isabel é Ain-Karin, uma bela povoação a 6 Km a Oeste da cidade nova de Jerusalém. Ficaria a 4 ou 5 dias de viagem de Nazaré (uns 150 Km). Maria empreende a viagem movida pela caridade solidária e espírito de serviço: não se fica a olhar para si própria embevecida pela mercê que lhe foi concedida, mas, recordada do que lhe dissera o anjo, vai contar o que se passou consigo, partilhar o dom recebido e comungar o dom com que Deus presenteou a sua prima, de idade provecta e até agora considerada estéril, porque a Deus nada é impossível.
Isabel apercebeu-se logo de que estava presente a “Mãe do meu Senhor (v 43), que não ficara em casa à espera de que os Anjos e os homens fossem servir a sua rainha. Antes, ela mesma, que se chama serva do Senhor (v 38) ou a sua humilde serva (v 48), apressa-se em se tornar a serviçal da sua prima e de acudir em sua ajuda. Ali permanece, provavelmente, até depois do nascimento de João, uma vez que Lucas nos diz que “ficou junto de Isabel cerca de três meses”. É certo que, antes de relatar o nascimento de João, Lucas diz que “regressou a sua casa”, mas isso deve-se à técnica de composição literária chamada “eliminação” (concluir um assunto de vez antes de passar a outro, independentemente da sucessão real dos factos), muito ao gosto lucano (vd Lc 1,80; 2,7; 3,20-21; 22,15-18; 22,19-20).
Este episódio apresenta com simplicidade o encontro de duas importantes mulheres, ambas grávidas, na expectativa do nascimento dos respetivos filhos, realçando a gratidão ao Senhor pela obra nelas operada. Isabel, idosa, simboliza Israel que espera o Messias, ao passo que a jovem Maria traz em si o cumprimento desta expectativa, em prol de toda a humanidade.
Na Anunciação o anjo Gabriel tinha falado a Maria da gravidez de Isabel (cf Lc 1,36) como prova do poder de Deus. A esterilidade, não obstante a provecta idade de Isabel, transformara-se em fertilidade. E Isabel, acolhendo Maria, reconhece que nela se realiza a promessa de Deus à humanidade e exclama: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre” (v 42). São palavras que aparecem no AT (embora não na totalidade como se verá adiante), por exemplo no Cântico de Débora (cf Jz 5,24) para celebrar Jael, mulher que, apesar da sua fragilidade, foi o instrumento de Deus para libertar o Povo das mãos de Sísera, cruel comandante do exército que tencionava decepar os Israelitas. O mesmo se diga de Judite e cântico de Uzias (cf Jdt 13,17-20).
Algo incomum para mulheres, olhando os contextos epocais.  Com isto, observa-se que Deus pode usar de instrumentos frágeis para operar maravilhas. Aplicando a Maria, pode-se também constatar que Deus uma vez mais usa instrumentos simples para realizar a obra de salvação.  Por Maria Ele realizou um marcante acontecimento histórico: deu à humanidade o seu próprio Filho. Através do anjo Gabriel Deus dirige-se a Maria e escolhe-a para gerar o Salvador do mundo. Por outro lado, a manifestação de alegria de João Batista no seio de sua mãe Isabel é o sinal do cumprimento da expectativa: Deus está para visitar o seu povo. Isabel interpreta este movimento que experimenta como um sinal divino e como saudação de seu filho ao filho de Maria.  Em sua alegria, Isabel ainda ressalta a posição privilegiada de sua parenta dizendo: “…e bendito é o fruto do teu ventre” (v 42).  Ao fruto do ventre de Maria, Isabel chama de Kyrios mou: “Meu Senhor” (v 43).  No uso do título Kyrios reconhece Jesus como Deus e como o seu Deus. E Maria é apresentada como a mulher de fé (v 45), porque acreditou na veracidade e na fidelidade da promessa de Deus.
A vista por Isabel como “A Mãe do meu Senhor” é bendita entre as mulheres” (superlativo hebraico, a significar: a mais bendita de todas as mulheres). Mas Isabel não esquece o destino último do louvor: “Bendito o fruto do teu ventre” – expressão que não está contida no cântico de Débora, mas está no de Uzias, dirigida ao “Senhor Deus, que criou os céus e a terra”.
As palavras de Isabel aparecem como proféticas, fruto duma luz sobrenatural que faz ver que o mexer-se do menino no ventre (v 41) não foi casual, mas que ele “exultou de alegria para saudar o Messias e sua Mãe. É natural que esta reflexão de fé já circulasse nas fontes familiares dos Evangelhos da Infância.
E Isabel, na sua profecia elogiosa, acrescentou: “Bem-aventurada aquela que acreditou no cumprimento de tudo quanto lhe foi dito da parte do Senhor”. Ora, Maria acreditou porque é humilde e disponível para aceitar a vontade de Deus e servir. E o Senhor “olhou para a humildade de Sua Serva”. É a humildade e a disponibilidade que a levam a colocar-se ao serviço de sua prima Isabel. E será esta a grande lição de Jesus “Eu venho, ó Deus, para fazer a Tua vontade” (Sl 40,8; Heb 10,7) – a que se associa Maria com o seu “Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38).
Humildade, espírito de serviço, amor, são virtudes vividas por Maria e que verdadeiramente importa imitar. Com elas viveremos com autenticidade e alegria a Festa de Natal. Na medida em que cultivarmos estas virtudes essenciais, teremos a possibilidade de, através da luz da fé, “ver” o rosto humilde, terno, cheio de encanto e de amor de Jesus Menino que a todos vem salvar.  
No texto evangélico temos o espanto de Isabel: “Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar?” (v 43).  Também David pronunciara frase semelhante: “Como pode estar a Arca do Senhor em minha casa?” (2Sm 6,9). Ora, a Arca continha as tábuas da Lei, o maná e a vara de Aarão (cf Heb 9,4), pelo que era o sinal da presença de Deus no meio do povo. João Batista, ainda para nascer, exulta de alegria diante de Maria, a nova Arca da nova Aliança, que traz no seio Jesus, o Filho de Deus feito homem.
Outro detalhe põe em paralelo a visita de Maria e a Arca da Aliança.  Maria, bem como a Arca, permanecem durante três meses numa casa da Judeia. A Arca é recebida com danças, gritos de alegria, hinos festivos e é portadora de bênçãos para a família que a recebe (cf 2Sm 6,10-11); e Maria, ao entrar na casa de Zacarias, faz pular de alegria João, o menino que está no seio de Isabel e representa o povo do AT, que espera o Messias. Com isto, fica evidente que Maria é a nova Arca da Aliança, como entoamos na Ladainha Lauretana de Nossa Senhora.
O episódio da Visitação expressa também que Jesus é o Deus que vem ao encontro da humanidade com uma mensagem de salvação que dá concretização às promessas feitas pelo Senhor aos antigos; logo, a presença de Jesus provoca a alegria para todos aqueles que esperam a realização das promessas de Deus na vinda de Jesus, com a concretização das promessas de um mundo de justiça, amor, paz e felicidade para todos. Por isto, dirá o anjo aos pastores: “Anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias Senhor” (Lc 2,10-11). E o coro dos anjos cantou: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por ele amados” (Lc 2,14). Na verdade, através de Jesus, Deus oferece a paz e a salvação a todos. E isso gera alegria em todos aqueles que anseiam pela concretização das suas promessas.
E temos a resposta de Maria: “A minha alma engrandece o Senhor”. A resposta de Maria retoma o Cântico de Ana (cf 1Sm 2,1-10), que é um poema de louvor a Deus, uma oração de gratidão a Deus pelo nascimento de Samuel, seu filho; o Salmo 34, um salmo de ação de destinado a dar graças ao Senhor porque protege os humildes e os salva, apesar da prepotência dos opressores, um salmo de esperança e de confiança, que exalta a preocupação de Deus para com os pobres, vítimas da injustiça e da opressão; e o Salmo 113, um hino à misericórdia de Deus, com o qual se inicia o designado grupo do “Hallel” (Salmos 113-118), recitado pelos judeus nas grandes solenidades de peregrinação e na festa da Páscoa.
Sugere-se, claramente, que a presença de Jesus, através de Maria, mulher simples e frágil, é um sinal do amor de Deus, preocupado em trazer a salvação a todos os que são vítimas da injustiça. Com Jesus, chegou esse novo tempo de paz e de felicidade anunciado pelos profetas.
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O Bispo mencionado no início vê na visita de Maria o protótipo da caminhada catequética e missionária do crente. Na verdade, a Virgem cheia de Graça, consciente de que o Senhor está com ela, como lhe fizera saber o anjo, e, estando já possuída do mistério da encarnação que se estava a realizar em seu ventre, deixou-se mover pela fé em caridade e em disponibilidade para o serviço a Deus também através da ajuda ao próximo. Ela, como crente que encontrou o Senhor na intimidade, tinha a necessidade da confirmação na fé no mistério. E o anjo acendera-lhe a luz: “Também a tua parente Isabel concebeu um filho na sua velhice e já está no sexto mês, ela, a quem chamavam estéril, porque nada é impossível a Deus” (Lc 1,36-37). E Maria confirmou in loco a palavra do anjo, sentiu o conteúdo profético das palavras de Isabel e soube da reação exultante do filho de Isabel ainda no ventre materno.
Por outro lado, Maria, como o verdadeiro crente, não pode ficar quieta no seu cantinho: a condição de discípulo catapulta-a consequentemente para a tarefa missionária, que se torna efetiva quando consubstanciada no testemunho pela palavra e pelo serviço da proximidade na caridade. Ora, Maria não era de muitas palavras, mas perante Isabel entoou o Magnificat, que diz tudo o que então era de dizer.
Finalmente, a entoação o hino orante tem toda a força quando é proclamado entre membros da comunidade em sintonia de fé e gratidão. Veja-se: Isabel proclama “Bendita és entre as mulheres e bendito o fruto do teu ventre”; e Maria “Engrandece a minha alma o Senhor que fez em mim maravilhas…”.
Mas o motivo de tanto louvor exultação é Jesus que vem aí e que importa receber e comunicar.
Temos, pois, de nos decidir a ir ao seu encontro, já não no presépio de Belém, mas no presépio dos corações e das comunidades. Na verdade, não podemos esquecer que Maria, aquando da visita a Isabel, já era portadora de Jesus. Ora, também os catequizados, quando em missão, em apostolado têm de ser portadores e testemunhas de Jesus e oferecê-lo ao mundo.
2018.12.23 – Louro de Carvalho

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