Confesso que nunca tinha
pensado nisto para o episódio evangélico narrado na liturgia da Missa do IV
domingo do Advento, no Ano C (Lc 1,39-45). Porém, a homilia do Bispo
de Santarém na Missa a que presidiu na catedral daquela cidade episcopal,
transmitida pela Rádio Renascença,
fez-me pensar.
Dom José Traquina, como era
de esperar, referiu a proximidade da Solenidade do Natal do Senhor, feito
menino nascido na humildade do presépio belemita. E sublinhou que até a escolha
dessa cidade, pequeníssima e sem valor político e social, a não ser o de
possuir título de cidade de David, era sinal de opção de Deus pela simplicidade
e pela pobreza.
***
Na verdade, o profeta Miqueias (vd Mq
5,1-4a), no século VIII a. C., chama a atenção para a pequenez da cidade de Belém,
onde irá nascer o Salvador, falando-nos de humildade também através do local
que escolheu para nascer: “De
ti, Belém-Efratá, pequena entre as cidades de Judá, de ti sairá aquele que há
de reinar sobre Israel”.
A tradição judaica (cf Rt 4,11;
1 Sm 16,1-13;
17,12; e o Talmud: Pesahim 51,1; Nedarim 39,2) e a cristã (cf Mt 2,
4-6; Jo 7,40-42) consideram esta profecia referida
ao lugar do nascimento de Cristo. Beth-léhem significa
casa do pão; e Efratá (fecunda) distingue-a da homónima Belém,
na Galileia.
A propósito de
Miqueias considerar Belém “pequena entre as cidades…” (superlativo hebraico, a significar a mais pequena das cidades), Mateus (Mt 2,4-6) cita o texto fazendo uma leitura
atualizada para mostrar que em Jesus se cumpre esta profecia. Para isso recorre
ao deraxe (recurso
de atualização próprio da hermenêutica judaica, o chamado al-tiqrey: “não leias”), que tem em conta que em hebraico
não se escreviam as vogais. Assim, a palavra hebraica com que se diz “as
cidades de” (alfey) é lida
com outras vogais de modo a significar “as principais (ou príncipes) de” (al-lufey). Nestes termos, pode Mateus dizer,
não falseando o texto, mas interpretando-o: “Não és de modo nenhum a menor entre
as principais cidades de Judá”.
Segundo Miqueias,
Aquele que há de reinar em Israel é anterior ao tempo (“as suas origens remontam
aos tempos de outrora, aos dias mais antigos”), portanto, eterno e divino. Isaías diz de outro modo a mesma
realidade:
“Um menino nasceu para
nós, um filho nos foi dado; tem a soberania sobre os seus ombros, e o seu
nome é: Conselheiro-Admirável, Deus herói, Pai-Eterno, Príncipe da paz” (Is 9,5).
É o que Miqueias
conclui no v. 4: “Ele
será a Paz” – o que parece ser citado em Ef
2,14.
E este profeta fala dum abandono provisório desta
cidade e, em certa medida, dos tempos de outrora até chegar o tempo daquela “que há de ser mãe”. Assim, este tempo, plasmado na
profecia de Isaías (Is 7,14: “a jovem está grávida e vai dar à luz um filho, e há de
pôr-lhe o nome de Emanuel”) vem realizar-se em Maria:
“Hás de
conceber no teu seio e dar à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus. Será
grande e vai chamar-se Filho do Altíssimo (Lc 1,31-32). […] Completaram-se os
dias de ela dar à luz e teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e
recostou numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria (Lc
2,6-7).”.
O nascimento do Messias em Belém não
acontece por acaso. Nascerá em Belém e não numa grande cidade como Jerusalém,
porque, se fora o orgulho a causa da cegueira dos nossos primeiros pais, de
tantos dirigentes do povo de Israel e dos demais povos, Ele vem, desde logo,
ensinar o caminho oposto, o único verdadeiro, o da humildade, mesmo desconcertante.
Esta é uma virtude fundamental, que, desde a Sua entrada neste mundo, a todos
Ele quer manifestar. O reino que vem implantar não vai ser um reino imposto pelas
armas, pelo poder, mas pela humildade – um reino de serviço, de Amor, de
Verdade, de Justiça, de Vida e que só os audazes arrebatam, porque os seus critérios
são desconcertantes em relação aos do mundo.
***
Na passagem do Evangelho
desta dominga (Lc 1,39-45), vislumbra-se uma série de ressonâncias
veterotestamentárias, próprias do estilo do hagiógrafo e sobretudo consonantes
com a sua intenção teológica de mostrar como em Maria, Mãe de Jesus, se corporizam
e cumprem as figuras do AT (Antigo Testamento). Na verdade, Maria torna-se a nova
e verdadeira Arca da Aliança (cf Lc 1,43 com 2 Sm 6, 9 e Lc 1,56 com
2 Sm 6,11) e a verdadeira salvadora do povo,
qual nova Judite (cf Lc 1,42
com Jdt 13,18-19) e qual nova Ester (cf Lc 1,52 e Est 1–2).
A tradição diz que a cidade de Judá para onde Maria se dirigia
apressada em demanda do estado de Isabel é Ain-Karin, uma bela povoação a 6 Km
a Oeste da cidade nova de Jerusalém. Ficaria a 4 ou 5 dias de viagem de Nazaré
(uns 150 Km). Maria empreende a viagem movida
pela caridade solidária e espírito de serviço: não se fica a olhar para si
própria embevecida pela mercê que lhe foi concedida, mas, recordada do que lhe
dissera o anjo, vai contar o que se passou consigo, partilhar o dom recebido e
comungar o dom com que Deus presenteou a sua prima, de idade provecta e até
agora considerada estéril, porque a Deus nada é impossível.
Isabel apercebeu-se logo de que estava presente a “Mãe do meu Senhor” (v 43), que não
ficara em casa à espera de que os Anjos e os homens fossem servir a sua rainha.
Antes, ela mesma, que se chama serva do
Senhor (v 38) ou a sua
humilde serva (v 48), apressa-se
em se tornar a serviçal da sua prima e de
acudir em sua ajuda. Ali permanece, provavelmente, até depois do nascimento de
João, uma vez que Lucas nos diz que “ficou junto de Isabel cerca de
três meses”.
É certo que, antes de relatar o nascimento de João, Lucas diz que
“regressou a sua casa”, mas isso deve-se à técnica de composição literária
chamada “eliminação” (concluir
um assunto de vez antes de passar a outro, independentemente da sucessão real
dos factos), muito ao
gosto lucano (vd Lc 1,80;
2,7; 3,20-21; 22,15-18; 22,19-20).
Este episódio apresenta com simplicidade o encontro de
duas importantes mulheres, ambas grávidas, na expectativa do nascimento dos
respetivos filhos, realçando a gratidão ao Senhor pela obra nelas operada.
Isabel, idosa, simboliza Israel que espera o Messias, ao passo que a jovem
Maria traz em si o cumprimento desta expectativa, em prol de toda a humanidade.
Na Anunciação o anjo Gabriel tinha falado a Maria da
gravidez de Isabel (cf Lc 1,36) como prova
do poder de Deus. A esterilidade, não obstante a provecta idade de Isabel,
transformara-se em fertilidade. E Isabel, acolhendo Maria, reconhece que nela se
realiza a promessa de Deus à humanidade e exclama: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre”
(v 42). São palavras que aparecem no AT (embora não
na totalidade como se verá adiante), por
exemplo no Cântico de Débora (cf Jz 5,24) para
celebrar Jael, mulher que, apesar da sua fragilidade, foi o instrumento de Deus
para libertar o Povo das mãos de Sísera, cruel comandante do exército que
tencionava decepar os Israelitas. O mesmo se diga de Judite e cântico de Uzias
(cf Jdt
13,17-20).
Algo incomum para mulheres, olhando os contextos epocais.
Com isto, observa-se que Deus pode usar de instrumentos frágeis para
operar maravilhas. Aplicando a Maria, pode-se também constatar que Deus uma vez
mais usa instrumentos simples para realizar a obra de salvação. Por Maria
Ele realizou um marcante acontecimento histórico: deu à humanidade o seu próprio
Filho. Através do anjo Gabriel Deus dirige-se a Maria e escolhe-a para gerar o
Salvador do mundo. Por outro lado, a manifestação de alegria de João Batista no
seio de sua mãe Isabel é o sinal do cumprimento da expectativa: Deus está para
visitar o seu povo. Isabel interpreta este movimento que experimenta como um
sinal divino e como saudação de seu filho ao filho de Maria. Em sua
alegria, Isabel ainda ressalta a posição privilegiada de sua parenta dizendo:
“…e bendito é o fruto do teu ventre” (v 42). Ao fruto do ventre de Maria, Isabel chama de Kyrios mou: “Meu Senhor” (v 43). No uso do título Kyrios reconhece
Jesus como Deus e como o seu Deus. E Maria é apresentada como a mulher de fé (v 45), porque acreditou na veracidade e na fidelidade da
promessa de Deus.
A vista por Isabel
como “A Mãe
do meu Senhor” é “bendita entre as mulheres” (superlativo
hebraico, a significar: a mais bendita de
todas as mulheres).
Mas Isabel não esquece o destino último do louvor: “Bendito o fruto do teu ventre” – expressão que não está contida no
cântico de Débora, mas está no de Uzias, dirigida ao “Senhor Deus, que criou os
céus e a terra”.
As palavras de Isabel aparecem como proféticas, fruto duma
luz sobrenatural que faz ver que o mexer-se do menino no ventre (v 41) não foi casual, mas que ele “exultou de alegria” para
saudar o Messias e sua Mãe. É natural que esta reflexão de fé já circulasse nas
fontes familiares dos Evangelhos da Infância.
E Isabel, na sua profecia elogiosa, acrescentou: “Bem-aventurada aquela
que acreditou no cumprimento de tudo quanto lhe foi dito da parte do Senhor”. Ora, Maria acreditou porque é
humilde e disponível para aceitar a vontade de Deus e servir. E o Senhor “olhou
para a humildade de Sua Serva”. É a humildade e a disponibilidade que a levam a
colocar-se ao serviço de sua prima Isabel. E será esta a grande lição de Jesus “Eu venho, ó Deus, para fazer a Tua vontade”
(Sl 40,8; Heb 10,7) – a que se associa Maria com o seu “Eis a serva
do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38).
Humildade, espírito de serviço, amor, são virtudes vividas
por Maria e que verdadeiramente importa imitar. Com elas viveremos com
autenticidade e alegria a Festa de Natal. Na medida em que cultivarmos estas
virtudes essenciais, teremos a possibilidade de, através da luz da fé, “ver” o
rosto humilde, terno, cheio de encanto e de amor de Jesus Menino que a todos
vem salvar.
No texto evangélico temos o espanto de Isabel: “Como posso merecer que a mãe do meu Senhor
me venha visitar?” (v 43). Também
David pronunciara frase semelhante: “Como pode estar a Arca do Senhor em minha
casa?” (2Sm 6,9). Ora, a Arca continha as tábuas da Lei, o maná e a
vara de Aarão (cf Heb 9,4), pelo que era
o sinal da presença de Deus no meio do povo. João Batista, ainda para nascer,
exulta de alegria diante de Maria, a nova Arca da nova Aliança, que traz no
seio Jesus, o Filho de Deus feito homem.
Outro detalhe põe em paralelo a visita de Maria e a
Arca da Aliança. Maria, bem como a Arca, permanecem durante três meses numa
casa da Judeia. A Arca é recebida com danças, gritos de alegria, hinos
festivos e é portadora de bênçãos para a família que a recebe (cf 2Sm
6,10-11); e Maria, ao entrar na casa de
Zacarias, faz pular de alegria João, o menino que está no seio de Isabel e
representa o povo do AT, que espera o Messias. Com isto, fica evidente que
Maria é a nova Arca da Aliança, como entoamos na Ladainha Lauretana de Nossa
Senhora.
O episódio da Visitação expressa também que Jesus é o
Deus que vem ao encontro da humanidade com uma mensagem de salvação que dá
concretização às promessas feitas pelo Senhor aos antigos; logo, a presença de
Jesus provoca a alegria para todos aqueles que esperam a realização das
promessas de Deus na vinda de Jesus, com a concretização das promessas de um
mundo de justiça, amor, paz e felicidade para todos. Por isto, dirá o anjo aos
pastores: “Anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um
Salvador, que é o Messias Senhor” (Lc 2,10-11). E o coro dos
anjos cantou: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por ele amados”
(Lc 2,14). Na verdade, através de Jesus, Deus oferece a paz e
a salvação a todos. E isso gera alegria em todos aqueles que anseiam pela
concretização das suas promessas.
E temos a resposta de Maria: “A minha alma engrandece o Senhor”. A resposta de Maria retoma o
Cântico de Ana (cf 1Sm 2,1-10), que é um
poema de louvor a Deus, uma oração de gratidão a Deus pelo nascimento de
Samuel, seu filho; o Salmo 34, um salmo de
ação de destinado a dar graças ao Senhor porque protege os humildes e os salva,
apesar da prepotência dos opressores, um salmo de esperança e de confiança, que
exalta a preocupação de Deus para com os pobres, vítimas da injustiça e da
opressão; e o Salmo 113, um hino à misericórdia de Deus, com o qual se inicia o
designado grupo do “Hallel” (Salmos 113-118), recitado
pelos judeus nas grandes solenidades de peregrinação e na festa da Páscoa.
Sugere-se, claramente, que a presença de Jesus, através
de Maria, mulher simples e frágil, é um sinal do amor de Deus, preocupado em
trazer a salvação a todos os que são vítimas da injustiça. Com Jesus, chegou
esse novo tempo de paz e de felicidade anunciado pelos profetas.
***
O Bispo mencionado no início vê na visita de Maria o
protótipo da caminhada catequética e missionária do crente. Na verdade, a
Virgem cheia de Graça, consciente de que o Senhor está com ela, como lhe fizera
saber o anjo, e, estando já possuída do mistério da encarnação que se estava a
realizar em seu ventre, deixou-se mover pela fé em caridade e em
disponibilidade para o serviço a Deus também através da ajuda ao próximo. Ela,
como crente que encontrou o Senhor na intimidade, tinha a necessidade da
confirmação na fé no mistério. E o anjo acendera-lhe a luz: “Também a tua
parente Isabel concebeu um filho na sua velhice e já está no sexto mês, ela, a
quem chamavam estéril, porque nada é impossível a Deus” (Lc 1,36-37). E Maria confirmou in loco a
palavra do anjo, sentiu o conteúdo profético das palavras de Isabel e soube da reação
exultante do filho de Isabel ainda no ventre materno.
Por outro lado,
Maria, como o verdadeiro crente, não pode ficar quieta no seu cantinho: a condição
de discípulo catapulta-a consequentemente para a tarefa missionária, que se
torna efetiva quando consubstanciada no testemunho pela palavra e pelo serviço
da proximidade na caridade. Ora, Maria não era de muitas palavras, mas perante
Isabel entoou o Magnificat, que diz
tudo o que então era de dizer.
Finalmente, a entoação o hino orante tem toda a força quando
é proclamado entre membros da comunidade em sintonia de fé e gratidão. Veja-se:
Isabel proclama “Bendita és entre as mulheres
e bendito o fruto do teu ventre”; e Maria “Engrandece a minha alma o Senhor que fez em mim maravilhas…”.
Mas o motivo de tanto louvor exultação é Jesus que vem
aí e que importa receber e comunicar.
Temos, pois, de nos decidir a ir ao seu encontro, já
não no presépio de Belém, mas no presépio dos corações e das comunidades. Na verdade,
não podemos esquecer que Maria, aquando da visita a Isabel, já era portadora de
Jesus. Ora, também os catequizados, quando em missão, em apostolado têm de ser portadores
e testemunhas de Jesus e oferecê-lo ao mundo.
2018.12.23 – Louro de Carvalho
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