Passa hoje o 44.º aniversário da revolução de Abril e as comemorações ficam
marcadas condignamente por uma Assembleia da República de portas abertas, pelo
desfile na avenida da Liberdade em Lisboa e pela inauguração do jardim Mário
Soares.
Porém, é de destacar a usual e, desta vez, auspiciosa sessão solene no Parlamento.
Assim, pelas 10 horas, coube a Ferro Rodrigues, Presidente da Assembleia da
República, o múnus de abrir a sessão no hemiciclo, após a execução do Hino
Nacional pela Banda da GNR, nos Passos Perdidos, dando, em seguida, a palavra
aos representantes dos grupos parlamentares.
O primeiro a intervir foi o deputado único do PAN (Pessoas-Animais-Natureza), André Silva. Seguiram-se-lhe José Luís Ferreira, pelo
PEV, Paulo Sá, do PCP, Ana Rita Bessa, do CDS-PP, Isabel Pires, do BE, Elza
Pais, do PS, e Margarida Balseiro Lopes, do PSD. A sessão solene terminou com
os discursos de Ferro Rodrigues e do Presidente da República, Marcelo Rebelo de
Sousa. E, no final, ouviu-se a canção de José Afonso “Traz outro amigo também”, interpretada pelo Coro dos Antigos
Orfeonistas da Universidade de Coimbra.
Foi esta a terceira vez que o atual Chefe de Estado discursou na sessão
solene do 25 de Abril, ocasião que, em anos anteriores, expressou preocupação
com a vitalidade do sistema político. Do Parlamento, Marcelo, António Costa e Ferro
Rodrigues seguiram para a zona sul do jardim do Campo Grande, onde foi
inaugurado, pelas 13 horas, o jardim Mário Soares. Na cerimónia de inauguração
da obra, que representa um investimento de 1,2 milhões de euros, esteve também Fernando
Medina, Presidente da Câmara Municipal de Lisboa,.
Duas horas depois, partiu do Marquês de Pombal o desfile popular,
organizado pela Associação 25 de Abril. Sob o lema “Abril de novo, com a força do povo”, o desfile seguiu até ao
Rossio. Às habituais presenças do secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa, e
da coordenadora nacional do BE, Catarina Martins, juntou-se Yanis Varoufákis, antigo
Ministro das Finanças da Grécia, num Governo liderado por Tsipras, em 2015.
Militares e polícias participaram no desfile popular em protesto pelo “não
descongelamento” das suas carreiras.
Também a partir das 15,15 horas, a Assembleia da República abriu as portas
ao público para visitas livres e atividades culturais. Pela primeira vez, os visitantes
puderam circular entre o edifício da Assembleia e a residência oficial do
Primeiro-Ministro, espaços ligados por jardins comuns e, seguindo um itinerário
pré-definido, tiveram acesso a alguns espaços do Palácio de São Bento que
habitualmente não estão abertos ao público. Houve atuações musicais do Coro dos
Antigos Orfeonistas da Universidade de Coimbra e da Orquestra Juvenil da
Academia Musical dos Amigos das Crianças. E uma exposição sobre o “Mosteiro de São Bento da Saúde: de casa
religiosa a sede do parlamento”, que assinala os 400 anos do edifício onde
está sediada a Assembleia da República, foi uma das mostras patentes ao público
neste dia 25 de abril. E, na residência oficial do Primeiro-Ministro, os
visitantes puderam ver a chaimite Bula, comandada pelo capitão Salgueiro Maia
nas operações militares em 25 de abril de 1974, e um espaço dedicado ao
Orçamento Participativo Portugal 2018. A chaimite Bula, que transportou o
último Presidente do Conselho do Estado Novo, Marcello Caetano, quando saiu do
Quartel do Carmo após a rendição, está estacionada nos jardins de São Bento ao
lado dum conjunto de fotografias de alguns dos momentos mais marcantes do dia da
revolução.
***
O Presidente
da República advertiu que “espaços vazios” numa democracia
são aproveitados pelos adversários e declarou que “não confundimos o prestígio
ou a popularidade, mais ou menos conjuntural, de um ou mais titulares do poder
com endeusamento ou vocação salvífica”.
Tendo avisado, de véspera, que não valia a pena ouvir o discurso
evocativo do 25 de Abril à cata de recados ao Governo ou sobre a atualidade
política, essencialmente a intervenção de Marcelo constituiu um aviso à
navegação sobre os perigos iminentes quando os agentes políticos duma
democracia dão o flanco ou falham nas suas missões. E um desses perigos é o
populismo, que resulta da ocupação, com discursos sedutores dos adversários da
democracia, dos vazios deixados criar pelos agentes do regime democrático.
Assim, o Presidente advertiu que não pode romper-se o equilíbrio desenhado na
Constituição entre os vários poderes, pois, nessa rutura está a génese de
“derivas” populistas ou autoritárias e outras “tentações perigosas”.
O Presidente, evocando o centenário da batalha de La Lys e do
final da I Guerra Mundial, lembrou o clima que então se vivia na Europa e em
Portugal e que degenerou na emergência das ditaduras – no caso português, com o
golpe militar de 1926 e a Constituição de 1933, que deram azo a quatro décadas
de Estado Novo.
Considerando que “já vivemos o suficiente” desde então “para
sabermos o que reforça a unidade nacional”, Marcelo, deixou um caderno de
encargos ao fim de 44 anos a viver em democracia:
A valorização do papel
das Forças Armadas; a constante
renovação do sistema político; as políticas
que fomentem o crescimento e o emprego; o eficiente combate à corrupção nas pessoas e nas instituições; a prevenção de messianismos de um ou de alguns;
e a não confusão do patriotismo com
hipernacionalismos com caraterísticas “que nos envergonhariam”.
O Presidente da República acrescentou ainda um ponto final, já
referido acima:
“Não confundimos o prestígio ou a popularidade, mais ou menos
conjuntural, de um ou mais titulares do poder com endeusamento ou vocação
salvífica”.
As anuências silenciosas nas várias bancadas deixavam pressentir
haver quem se interrogasse sobre se o Chefe de Estado teria um destinatário
específico – ele próprio em autocrítica.
Num discurso que acabou por ser aplaudido de pé por todas as
bancadas, Marcelo deu bastante atenção à necessidade de o sistema político ter
capacidade de se renovar e dar respostas à sociedade. Com efeito, discorreu:
“A capacidade de renovação do sistema político e de resposta aos
sistemas sociais e antecipação de desafios, prevenção de erros e omissões,
permanente proximidade aos cidadãos e aos seus problemas é essencial”.
Ao invés, vazios no sistema – disse – “alimentarão tentações
perigosas, ilusões sebastianistas, messiânicas e providenciais”; e com uma
certeza: o que quer que resultasse dessa “deriva” “seria sempre não
democrático”.
Em brevíssima preleção de direito dos sistemas políticos, Marcelo
explicou que o “sistema democrático pressupõe um equilíbrio de poderes feito de
pesos e contrapesos” o que “permite moderar tropismos para lideranças populistas
na forma ou nos conteúdos”. E, no final, avisou que, “no dia em que se rompesse
esse equilíbrio de poderes”, consagrado na Constituição, obviamente, “estaríamos
a entrar num terreno perigosíssimo, propício ao deslumbramento, ao
autoconvencimento, à arrogância e ao atropelo da própria Constituição”.
***
Já o discurso de Ferro Rodrigues, mais
cirúrgico, teve como pano de fundo as notícias sobre a acumulação
de subsídios de que beneficiam deputados das Regiões Autónomas e os casos de
moradas falsas para efeitos de ajudas de deslocação. Assim, o Presidente da
Assembleia da criticou os “ataques de caráter” que diz serem feitos aos
deputados e ao Parlamento. E garantiu:
“Enquanto for Presidente da Assembleia da República, os ataques injustos
terão sempre resposta. E as críticas corretas serão sempre impulso para a
mudança.”.
Esta referência (desnecessária) vem na sequência do
comunicado por ele emitido sobre o caso das viagens dos deputados insulares a
sustentar que nenhum deputado tinha “infringido nenhuma lei nem nenhum
princípio ético”, frisando que “nunca alinhou” em “dinâmicas que apenas visam
diminuir a representação democrática com julgamentos éticos descabidos e
apressados”.
Ferro reconheceu que é preciso que a AR dê “um sinal mais forte”
para incentivar a participação dos cidadãos na política. E acabou por defender
que se avalie “seriamente” a possibilidade de alargar o âmbito da limitação de
mandatos e das acumulações de cargos, assim como “ponderar incentivos eficazes
à dedicação exclusiva no Parlamento”.
Quanto ao Presidente da República, Ferro Rodrigues não foi parco
em encómios – tudo porque, nas palavras do presidente da Assembleia da República,
o Presidente “tem uma importante quota-parte nos méritos dos resultados de
Portugal nos últimos anos”.
Mas, para lá dos resultados, importava falar dos desafios. E, aqui,
Ferro reconheceu que “a democracia tem necessários momentos de compromisso”,
mas “não dispensa o confronto das alternativas”, vincando que “a saúde do nosso
sistema partidário assenta, justamente, nesta capacidade de gerar alternativas
claras”. Por outro lado, numa altura em que António Costa e Rui Rio se juntam
para firmar acordos e em que a esquerda critica as lembranças do bloco central,
Ferro defendeu que “os compromissos estratégicos em nada prejudicam as
divergências programáticas já existentes”. Outro dos desafios é a redução da
desigualdade, que merece a mesma atenção que o cumprimento escrupuloso das
metas económicas. E Ferro questionou:
“Damos tanta visibilidade às entidades dedicadas à avaliação dos défices
económicos… Por que razão não havemos de ouvir com a mesma atenção o que nos
dizem aqueles que se dedicam aos défices sociais?”.
***
A sessão solene constituiu ensejo para os partidos fazerem o
balanço de mais de 4 décadas de democracia, cruzando-o com a atualidade
política. O PSD puxou para o topo a necessidade de reforma do sistema político
e do combate à corrupção – quando as suspeitas sobre Sócrates e Manuel Pinho
dominam os noticiários. Mas a oradora do PSD teve poucos correligionários a
ouvi-la: Rui Rio estava na primeira fila dos convidados, mas havia muitas
clareiras nas filas da bancada do PSD. À esquerda, PCP e BE também não fugiram
ao prato do dia – invocaram as promessas de Abril para voltar a pressionar o Ministro
das Finanças. Os comunistas avisaram que o dinheiro do Orçamento tem de ir para
o Estado Social e não para a redução do défice e da dívida, enquanto o BE
frisou que “Abril nunca rimou com Eurogrupo” e “Todos somos SNS”.
Margarida Balseiro Lopes, deputada do PSD e presidente da JSD,
fez a defesa duma reforma do sistema político que torne o sistema mais transparente
e próximo das pessoas – concretizada sobretudo no combate à corrupção e na
defesa do Estado e do erário público da captura por interesses particulares”. E
disse:
“Temos de ter a coragem de reformar o sistema político, introduzindo
transparência para que sejam conhecidos todos os interesses em causa em todas
as decisões tomadas pelos poderes públicos. […] A transparência tem de ser a
regra do funcionamento democrático, […] a opacidade só serve os prevaricadores,
os menos sérios, os corruptos.”.
Depois, fez um balanço positivo do que o país conquistou desde a
Revolução, nomeadamente no Estado Social e na abertura de oportunidades para
todos. Mas elencou muitas áreas em que há trabalho por fazer: saúde, cultura,
coesão territorial, combate à precariedade no emprego, segurança social,
solidariedade intergeracional, inclusão, oportunidades para os jovens e para as
mulheres. E, simpaticamente, saudou, um por um, os líderes dos vários partidos,
frisando algum aspeto do seu percurso no Portugal democrático.
Elza Pais, deputada do PS (e candidata ao Departamento Nacional das
Mulheres Socialistas), dedicou a quase totalidade do discurso às lutas no
feminino. Começando por recordar “as mulheres que viveram pela liberdade,
tantas vezes esquecidas pela História”, passou ao presente para falar de novas
conquistas – incluindo a aprovação do alargamento do acesso à procriação
medicamente assistida ou da lei da paridade. E fez uma breve nota para garantir
que a “decisão” de ‘pôr fim à austeridade” resultou na criação de emprego e no
crescimento dos rendimentos.
Por sua vez, Isabel Pires, do BE, fez um discurso
com referências à tensão na esquerda pelas opções económicas de Centeno. Cruzou
as promessas de abril e os avanços do país democrático com a realidade do país
onde persiste a precariedade, falta a justiça, as mulheres têm menos oportunidades
e continua o racismo. Ora, como disse saúde e educação, prometidas a todos, têm
de chegar a todos, pois, “na geração dos
filhos de abril, somos todos SNS”. Mais: “da educação à habitação, da
justiça ao trabalho, tudo o que falta conquistar cabe-nos colocar na agenda
política. Provavelmente não agrada o Eurogrupo, mas “Abril nunca rimou com Eurogrupo!”.
Também Paulo Sá, deputado do PCP, acusou o PS e o Governo de não irem
mais longe na “defesa, reposição e conquista de direitos e rendimentos” dos
trabalhadores por se manterem alinhados com as políticas de direita. Elogiando
o trabalho dos últimos dois anos e meio, “com o contributo decisivo do PCP”,
considerou que as medidas já adotadas ficam “aquém daquilo que seria necessário
e possível”. E apontou o dedo aos responsáveis:
“Se não se vai mais longe na resolução dos problemas dos trabalhadores,
do povo e do país, isso deve-se às opções do PS e do seu Governo, que, em
convergência com PSD e CDS, mantêm o seu compromisso com os interesses do
grande capital e a sua submissão às imposições do euro e da União Europeia”.
Puxando o debate para a tensão entre o PS e os parceiros da
maioria pelas opções de Centeno, alertou que “o que se impõe é a mobilização
dos recursos orçamentais disponíveis não para a redução acelerada do défice e
da dívida, mas sim para dar resposta aos problemas das pessoas”.
A deputada Ana Rita Bessa, do CDS, lembrou os
incêndios do ano passado na sua intervenção para lembrar que “o Estado falhou”
– e “abril falhou em junho e em outubro”, por não ter dado ‘garantias a todos’
os portugueses. E queixou-se dos que “se assumem proprietários do 25 de abril”,
clamando:
“A democracia é nossa. E deve ser de todos. Dos que a construíram e de
todos os que nela vivem. Senão, não se chama democracia.”.
José Luís Ferreira, do PEV começou por homenagear a data histórica,
para, a seguir, defender a regionalização, mudança que teme poder ficar
“comprometida” com o recente acordo entre PS e PSD – acordo que lembra “o velho
e pouco saudoso bloco central’. Sobre o défice, disse faltar “remover os
obstáculos externos ao nosso desenvolvimento, desde logo o Tratado Orçamental”,
porque “não somos todos défice e muito menos seremos todos Gaspar”. E referiu,
com indignação o que se passa com a Síria.
E André Silva, do PAN, chamou a atenção para a necessidade de
“mudar de direção”, por causa do “profundo impacto das alterações climáticas no
equilíbrio dos ecossistemas”.
***
E da
sessão solene ficou uma panóplia plural de mensagens que os decisores deviam
ponderar sem exclusões, a bem da democracia e do bem-estar dos cidadãos – lex suprema reipublicae.
208.04.25 – Louro
de Carvalho
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