terça-feira, 10 de abril de 2018

Juíza de instrução leva a julgamento os 19 arguidos dos comandos


A juíza de instrução criminal (JIC) Isabel Sesifredo decidiu, no dia 9 de abril, levar a julgamento todos os 19 arguidos do caso dos Comandos, que envolve a investigação das mortes dos dois instruendos Hugo Abreu e Dylan Silva, na zona de Alcochete, a 4 de setembro de 2016.
A magistrada judicial leu o texto da decisão instrutória em cinco minutos, considerando a acusação “minuciosa” e “pormenorizada” em relação aos factos, afirmando que se mantêm os crimes apurados pelo Ministério Público (MP) e sublinhando que são crimes estritamente militares, pois foram cometidos em contexto militar e contra militares, ao contrário do que pediam os advogados dos arguidos, que defenderam tratar-se de crimes ‘civis’, o que, a concretizar-se, os respetivos constituintes teriam um enquadramento legal mais vantajoso.
Nesta fase processual, os indícios são muito fortes para não pronunciar os arguidos (não levar a julgamento). Por isso, pronuncio-os” – disse a JIC durante a leitura de instrução criminal.
A decisão instrutória teve lugar de manhã no TIC (Tribunal de Instrução Criminal) de Lisboa, numa sala de audiência apinhada, e que contou com a presença dos pais de Hugo Abreu e o pai de Dylan Silva, o segundo militar a morrer no campo de tiro de Alcochete. Só faltaram dois dos 19 militares arguidos no processo. A mãe de Hugo Abreu, o primeiro militar que morreu no curso 127.º dos Comandos, chegou fardada com o uniforme do filho.
Ricardo Sá Fernandes, advogado da família de Hugo Abreu, afirmou que “este processo não é contra os Comandos nem contra o Exército”. E Miguel Santos, advogado da família de Dylan Silva, defendeu que “se ficarem provados os crimes dos militares toda a instrução dos Comandos pode ter de ser repensada”. Ao invés, o tenente-coronel António Mota, secretário-geral da AOFA (Associação dos Oficiais das Forças Armadas), – que tem dado apoio à defesa de alguns militares acusados – manifestou-se desapontado com a decisão instrutória, sustentando:
Estamos profundamente desiludidos com o caminho deste caso. Deveria haver na sala outros arguidos, nomeadamente do poder político.”.
A decisão instrutória já podia ter sido tomada há um mês. Só que nessa altura a magistrada judicial ainda não estaria preparada para tomar uma posição devido à extensão do processo. Há 19 militares responsáveis pelo curso 127.º dos Comandos acusados de 489 crimes de abuso de autoridade e de ofensa à integridade física.
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Recorde-se que, desde o início o processo tem avançado em ziguezague. Dois meses após as mortes em Alcochete, foram detidos, com vista à aplicação da prisão preventiva como medida de coação, sete militares com responsabilidades no curso em causa. Porém, acabariam por ser libertados rapidamente pela JIC Cláudia Pina, que não concordou com os argumentos apresentados pela investigação do MP e da Polícia Judiciária Militar.
E, em junho, a PGR chegou mesmo a avançar com um processo disciplinar contra a procuradora do DIAP Cândida Vilar depois dum incidente de recusa contra a magistrada apresentado por Alexandre Lafayette, advogado de dois dos arguidos. De nada lhe valeu. Poucos dias depois, a procuradora avançou com uma acusação demolidora, não tendo dúvidas de que, nos últimos anos, têm ocorrido situações de abuso de autoridade nos Comandos que acabam silenciadas – argumentação que repetiu em fevereiro, durante as alegações finais no TIC de Lisboa, para sustentar e reforçar a acusação com vista ao encaminhamento para o julgamento.
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Nas alegações finais desta fase instrutória, a procuradora Cândida Vilar manteve, na íntegra, o despacho de acusação por si proferido, razão pela qual pediu à juíza que leve todos aos militares a julgamento. Com efeito, a 1 de fevereiro, a magistrada do MP sustentou com toda a clareza:
Trata-se de crimes cometidos por militares contra militares durante uma prova do curso de Comandos. [Os arguidos] Abusaram dos deveres funcionais e da disciplina militar. Provocaram graves lesões físicas e neurológicas nos ofendidos e, em duas situações, a morte de dois subordinados.”.
Cândida Vilar defendeu, assim, que “há indícios suficientes para pronunciar [levar a julgamento] todos os arguidos”, e deu “por reproduzida” toda a acusação.
Por seu turno, também nas alegações finais, os advogados das famílias de Dylan da Silva e de Hugo Abreu acusaram os militares e arguidos de “falharem” no dever de proteção dos instruendos, pedindo julgamento para todos, como o MP o fez. Já os advogados dos arguidos pediram à juíza que os 19 militares arguidos não sigam para julgamento, considerando a acusação elaborada pela procuradora Cândida Vilar imparcial, com vícios, erros, omissão de factos essenciais, uma “narrativa perigosa” ou “desgarrada” e sem indícios que a sustentem.
Já em junho do ano passado, o MP acusou 19 militares no processo relativo à morte de dois recrutas dos Comandos e internamento de outros, considerando que os arguidos atuaram com “manifesto desprezo pelas consequências gravosas que provocaram nos ofendidos”. Da lista dos 19 acusados de abuso de autoridade e de ofensa à integridade física, no processo desencadeado pela morte de Hugo Abreu e Dylan Silva e pelo internamento de outros, constam 8 oficiais do Exército, 8 sargentos e 3 praças, todos do Regimento de Comandos.
A acusação assinada pela procuradora Cândida Vilar indicava:
Os princípios e valores pelos quais se regem os arguidos revelam desrespeito pela vida, dignidade e liberdade da pessoa humana, tratando os ofendidos como pessoas descartáveis”.
A acusação referia que, ao sujeitarem os ofendidos àquela “penosidade física e psicológica” na recruta efetuada em setembro de 2016, todos os arguidos sabiam que “excediam os limites” permitidos pela Constituição e pelo Estatuto dos Militares da Forças Armadas e “colocaram em risco a vida e a saúde dos ofendidos, o que aconteceu logo no primeiro dia de formação”.
Os advogados apresentaram durante a fase de instrução requerimentos a pedirem a nulidade da acusação do MP, mas a JIC negou provimento a todos eles, justificando que “é flagrante que a acusação tem todos os requisitos, é minuciosa e pormenorizada em relação aos factos” e que, por isso, “não há que declarar qualquer nulidade”.
É de referir também que ainda está sob escrutínio o 125.º curso de comandos de que resultaram feridos e de que também eram instrutores alguns dos arguidos do 12.º curso.
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Porém, não são apenas os 19 arguidos que estão em causa no caso dos comandos. Também está sob investigação da PJ (Polícia Judiciária) e da PJM (Polícia Judiciária Militar) o coronel Dores Moreira, ao tempo comandante do Regimento dos Comandos, que alegadamente terá entregado à investigação do DIAP (Departamento de Investigação e Ação Penal) um guião “falso” da chamada Prova Zero. Ora, Dores Moreira era um dos nomes falados para a frequência do curso para promoção a oficial-general, hipótese descartada com o inquérito do DIAP.
Com efeito, Mário Maia, o tenente-coronel responsável pelo curso 127.º dos Comandos e um dos principais arguidos do processo relativo à morte, em 2016, de dois recrutas, apresentou uma queixa-crime contra o chefe de Estado-Maior do Exército (CEME), general Rovisco Duarte, acusando-o de ignorar um crime cometido pelo ex-comandante do Regimento dos Comandos, Dores Maia, para “salvar a face” do Exército.
A participação criminal terá sido entregue à Procuradora-Geral da República, Joana Marques Vidal, em agosto de 2017, e remetida, ainda no ano passado, ao Presidente da República, ao Ministro da Defesa Nacional e ao Primeiro-Ministro, juntamente com uma missiva do advogado representante do tenente-coronel Maia, Alexandre Lafayette, que refere ter a queixa sido apresentada porque se verificou que o CEME ignorou a denúncia feita em fevereiro de 2017”.
Segundo o documento apresentado por Dores Meira, os instruendos poderiam beber até 5 litros de água por dia, ao passo que o guião disponibilizado aos instrutores para a formação dos Comandos indicava que o limite seriam 3 litros. O objetivo da falsificação seria responsabilizar os instrutores do curso e não os altos oficiais, como o comandante Moreira, pelo racionamento da água distribuída na prova, no início de setembro de 2016, num contexto de calor extremo.
Na missiva entregue juntamente com o processo, Mário Maia diz ter ficado com “a sensação de a falsificação ter sido uma manobra para ‘salvar a face’ do Exército” e sustenta não se poder nem se dever “pactuar com a prática de crimes, com a agravante de se visar enganar o sistema de justiça (…)” atirando para os inferiores hierárquicos “o ónus da incompetência das chefias militares que, há muito, têm obrigação de saber que a logística de apoio à formação de militares dos Comandos tem falhas graves e inaceitáveis”.
O MP também indicia o coronel por crimes de desobediência, pois o 127.º curso prosseguiu não obstante as ordens em contrário do superior hierárquico, tenente-general Faria Menezes.
No fim do inquérito, Cândida Vilar extraiu certidão para investigação, caso que passou para o Tribunal da Relação de Lisboa, em razão do posto militar de Dores Meira.
A investigação do eventual crime de desobediência corre pela PJM, por se tratar de um crime militar; e a do crime de falsificação corre pela PJ.
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Sobre tudo isto, devo adiantar que todos aqueles (mas só aqueles) que incorreram em crimes militares ou comuns devem ser adequada e proporcionalmente punidos, sem que alguém possa ficar de fora. É de lamentar que um processo como estes tenha corrido em ziguezague nos termos referidos acima. Não havia necessidade nem a justiça deveria ter dado de flanco, o que não aconteceria se os operadores de justiça procedessem sempre com a necessária cautela e cabeça fria. Penso estranha a forma da manifestação de sentimento lutuoso da parte da mãe de Hugo Abreu, que perdido o filho, se apresentou na sala da audiência fardada com o uniforme militar do filho. Nem a justiça nem o sentimento materno ficam a lucrar com o espetáculo, que não se quer em luto nem em justiça.
É excrescente a asserção de um advogado em pretender clarificar que este processo não é contra os Comandos nem contra o Exército. Era o que faltava! Porém, um outro advogado aduziu, a meu ver, de forma errada e extemporaneamente, que, se ficarem provados os crimes dos militares toda a instrução dos Comandos pode ter de ser repensada (à Rádio Renascença até disse que deviam mudar de paradigma). Os tribunais julgam atos da pessoas praticados em nome de pessoa singular ou de pessoa coletiva, mas não leis ou regulamentos, a não ser o Tribunal Constitucional que se pronuncia, desde que estimulado por titulares do poder político ou em sede de recurso de outros tribunais, sob constitucionalidade e sobre a legalidade de leis e regulamentos. Ninguém admite que, se professores, médicos ou advogados cometerem crimes, venham ser processadas criminalmente e julgadas as respetivas Faculdades ou Institutos Superiores ou os respetivos Ministérios (estes poderão ser responsabilizados civilmente).  
Finalmente, não me parece oportuno desabafo do Presidente da AOFA no sentido de que deveria haver na sala outros arguidos, nomeadamente do poder político”. Poderia dizer quem é que terá ficado de fora, se algum militar mais ou algum civil. Quanto a detentores do poder político stricto sensu dificilmente lhes poderá ser assacada responsabilidade criminal (têm, isso sim, responsabilidade política de que devem tirar consequências, não imputando tudo às estruturas e aos serviços que tutelam, mas não são do âmbito dos tribunais). Nem creio que governantes ou o próprio Estado-Maior tenham dado indicações em concreto sobre como dar instruções a futuros comandos ou mesmo em relação a alocação adequado de meios hic et nunc.
Resta saber se e quais os crimes que serão julgados à luz do Código Penal e os que serão julgados à luz do Código de Justiça Militar (com molduras penais bem mais gravosas) – questão já levantada o ano passado.
Porém, o poder político pode e deve aproveitar o ensejo para cuidar mais da legislação referente às Forças Armadas e promover um maior acompanhamento e fiscalização dos regulamentos, ações e procedimentos – sem ferir a autonomia técnico-científica e organizacional das Forças Armadas e sem deixar que os seus servidores fiquem com a culpa de tudo o que acontece.
2018.04.10 – Louro de Carvalho  

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