O Domingo do Bom Pastor
é o IV Domingo da Páscoa, pois a liturgia propõe a proclamação dum trecho do
cap. 10 do Evangelho de João, em que Jesus Se apresenta como o Bom Pastor. Obviamente,
as comunidades fazem bem em homenagear os seus pastores que as animam e conduzem,
mas eles devem saber que só serão pastores se o forem à maneira de Jesus
Na verdade, o Evangelho de hoje (Jo 10,11-18) apresenta Cristo como o Pastor
modelo, que ama gratuita e desinteressadamente as suas ovelhas a ponto de por
elas dar a vida. Elas sabem que podem confiar n’Ele de modo incondicional, pois
Ele não busca o próprio bem, mas o do seu rebanho. E, para pertencer a este
rebanho, exige-se a disponibilidade para escutar as propostas que Ele faz e segui-Lo
na via do amor e da entrega.
Na 2.ª leitura (1 Jo 3,1-2), o autor da 1.ª Carta de João convida-nos à contemplação do amor de Deus
pelo homem. Porque nos ama com um “amor admirável”, Deus aposta em levar-nos a
superar a condição de debilidade e fragilidade. O objetivo é integrar-nos na
sua família e tornar-nos semelhantes a Ele. E essa integração é merecida e
feita por Jesus o Pastor e Mediador.
A 1.ª leitura (At 4,8-12)
mostra Jesus como o único Salvador, pois “não existe debaixo do céu outro nome,
dado aos homens, pelo qual possamos ser salvos”. Ora, afirmar que Jesus é o
“único salvador” significa dizer que é Ele o único pastor que nos conduz à vida
verdadeira.
***
O testemunho sobre Jesus e a libertação que oferece aos homens,
manifestado nos gestos (cura
do paralítico, à entrada do Templo – cf At 3,1-11) e nas palavras de Pedro (discurso à multidão, à entrada do Templo
– cf At 3,12-26),
provoca a reação das autoridades e a prisão de Pedro e de João. É a reação do
quem pretende perpetuar o sistema de escravidão e opressão. Pedro e João são
presos e levados ao Sinédrio. O Sinédrio – presidido pelo sumo-sacerdote em exercício
e formado por 70 membros, oriundos das principais famílias – era a autoridade
que superintendia na organização da vida religiosa, jurídica e económica.
Embora dominado por saduceus (negavam a ressurreição), o Sinédrio integrava um grupo significativo de fariseus (aceitavam a ressurreição). Todavia, os dois grupos põem de
parte as divergências para conluiarem contra os discípulos de Jesus. A questão
colocada aos apóstolos incide sobre o poder ou em nome de quem fizeram estas
coisas (cf At 4,7). Assim, o texto da 1.ª leitura de
hoje é a resposta de Pedro à questão colocada pelos sinedritas.
O testemunho sobre o Messias crucificado pelas autoridades aparecia
como uma provocação aos líderes judaicos, que reagiam em conformidade. Porém, a
reação negativa do “mundo”, segundo Lucas, não pode nem deve calar o testemunho
dos discípulos de Jesus. Nestes termos, o texto é uma catequese aos crentes,
mostrando-lhes o modo de concretizar o testemunho dos discípulos, encarregados
por Jesus de levar a proposta libertadora a todos a criatura. Lucas frisa que
Pedro está “cheio do Espírito Santo”
(v 8), o que mostra que os cristãos não
estão sós ou abandonados quando enfrentam o mundo para lhe anunciar a salvação.
É o Espírito que os guia na missão e orienta o seu testemunho. Cumpre-se,
assim, a promessa de Jesus aos discípulos:
“Quando vos levarem às sinagogas, aos
magistrados e às autoridades, não vos preocupeis com o que haveis de dizer em
vossa defesa, pois o Espírito Santo vos ensinará, no momento próprio, o que
haveis de dizer” (Lc 12,11-12).
Cheio do Espírito Santo, Pedro – o protótipo do discípulo
que testemunha Jesus e o seu projeto de Salvação ante o mundo (salvação não só material nem só
espiritual) – passa de
réu a acusador. Os dirigentes, barricados em seus preconceitos e interesses,
classificaram a proposta de Jesus como contrária ao desígnio de Deus e
assassinaram Jesus, o Justo, Porém, a Ressurreição mostrou que Jesus veio de
Deus e que o projeto que Ele concretizou tem a chancela divina. Citando um
salmo (cf Sl 118,2), Pedro compara a insensatez dos Chefes
à cegueira dum construtor que rejeita como imprestável a pedra que vem a ser
aplicada por outro como pedra principal noutro edifício (v 11). Jesus é a pedra angular do edifício que figura o
projeto de vida nova e plena que Deus apresenta aos homens. E a prova apresentada
por Pedro é o paralítico que adquiriu a mobilidade pela ação de Jesus (“é por Ele que este homem se encontra
perfeitamente curado na vossa presença” – v 10).
De facto, Jesus é a fonte única donde brota a salvação
entendida como totalidade, como vida definitiva, como realização plena do
homem. Jesus (em hebraico
“Jesus” significa: “Jahwéh salva”) é o único canal por que a salvação de Deus atinge os homens
(v 12). Com esta afirmação, Lucas convida
os cristãos a serem testemunhas da salvação, propondo aos homens Jesus e levando
os homens a aderirem total e incondicionalmente ao projeto de vida que Cristo
oferece.
A forma desassombrada como Pedro dá testemunho de Jesus, num
ambiente hostil e adverso, sugere que é deste modo que os discípulos hão de anunciar
Jesus e a salvação. Ninguém deverá parar e calar os discípulos no anúncio da
salvação. Na verdade, os discípulos receberam a missão de levar ao mundo e aos
homens Jesus Cristo, o único Salvador. E é o Espírito que os anima e lhes dá a
coragem para enfrentar a oposição das forças da opressão que recusam a proposta
libertadora de Jesus e reagem mal à ação apostólica.
***
A 1.ª Carta de João é dirigida a comunidades cristãs nascidas no mundo
joânico (comunidades cristãs de várias cidades
situadas à volta de Éfeso, na parte ocidental da Ásia Menor). É uma época de heresias que
perturbam a vida das comunidades, confundindo os crentes e subvertendo a
identidade cristã. As questões postas pelos hereges eram sobretudo de ordem
cristológica e ética. Em termos cristológicos, negavam que o Filho de Deus
tivesse encarnado por Maria e que tivesse morrido na cruz. Na sua ótica, o
Cristo celeste veio apenas sobre o homem Jesus na altura do batismo,
abandonando-o antes da paixão. Logo, a humanidade de Jesus é facto irrelevante;
o que releva é a mensagem do Cristo celeste, que Se serviu do homem Jesus para
surgir na terra. Em termos morais e éticos, não cumprem os mandamentos e
desprezam especialmente o mandamento do amor aos irmãos. Por isso, o autor da
carta vai apresentar aos crentes as grandes coordenadas da vida cristã.
Segundo o trecho de hoje, que integra a 2.ª parte da Carta (cf 1 Jo 2,28-4,6), os crentes são filhos de Deus e
têm de viver no dia a dia de forma coerente com essa filiação. O contexto é,
como se viu, o da polémica contra os filhos do mal, que não fazem as obras de
Deus, porque não vivem de acordo com os mandamentos. Mas Deus constituiu os cristãos
seus “filhos”; e o fundamento desta filiação é o grande amor de Deus pelos
homens (v 1a). Este título de filhos de Deus que os crentes ostentam é
um título apropriado (não
externo ou pomposo), que
define a situação dos que são amados por Deus com um amor “admirável” e receberam
de Deus a vida nova. Obviamente, a condição de filhos implica a comunhão com
Deus e a vida coerente com as suas propostas. Os filhos de Deus realizam as
obras de Deus. Esta condição factual de filhos de Deus, que fazem as obras de Deus,
põe os crentes numa posição singular diante do mundo. Por isso, o mundo os ignora
ou persegue, recusando a proposta de vida que eles testemunham. Não é nada de
novo nem de surpreendente: o mundo também recusou Cristo e a sua proposta (v 1b).
Apesar de serem já, desde o dia do Batismo (o dia em que aceitaram a vida nova que
Deus oferece aos homens),
“filhos de Deus”, os crentes continuam a caminho da realização definitiva, do
dia em que a fragilidade e a finitude humanas serão definitivamente superadas.
Então, manifestar-se-á neles a vida plena e definitiva, o Homem Novo plenamente
realizado. Então, os crentes estarão em total comunhão com Deus e serão “semelhantes
a Ele” (v 2). A filiação divina é uma realidade
que atinge o crente ao longo da sua peregrinação por esta terra e que implica
uma vida de coerência com as obras e as propostas de Deus; mas só no céu, após
a libertação da condição de debilidade que faz parte da fragilidade humana, o
crente conhecerá a sua realização plena.
***
O capítulo 10 do 4.º Evangelho é dedicado à catequese do Bom Pastor. É com esta imagem que se propõe uma catequese sobre a
missão de Jesus: a obra do Messias consiste em levar o homem às pastagens
verdejantes e às fontes cristalinas donde brota a vida em plenitude. A imagem
do Bom Pastor não foi inventada por
João. Este discurso simbólico está construído com materiais provenientes do
Antigo Testamento. Em especial, tem presente Ez 34 (a chave de compreensão da metáfora do
pastor e do rebanho).
Falando aos exilados da Babilónia, Ezequiel (ano 593-571 aC) anota
que os líderes de Israel foram historicamente maus pastores, que, explorando o
Povo, o levaram por veredas de morte e desgraça. Mas o próprio Deus agora
assume a condução do seu Povo; porá à frente do Povo um Bom Pastor (o
“Messias”, o seu novo servo David), que o livrará da escravidão e o conduzirá à vida. A
catequese do 4.º Evangelho sobre o “Bom Pastor” sugere que a promessa de Deus –
veiculada por Ezequiel – se cumpre em Jesus.
O contexto em que João coloca o discurso do Bom Pastor (cf Jo 10) é de polémica entre Jesus e líderes judaicos, sobretudo
fariseus (cf Jo 9,40;
10,19-21.24.31-39).
Depois de ver a pressão que os líderes colocaram sobre o cego de nascença para que
ele não abraçasse a luz (cf
Jo 9,1-41), Jesus
denuncia a forma como eles tratam o Povo: só estão interessados em proteger os
seus interesses pessoais e usam o Povo em benefício próprio; são, pois,
“ladrões e salteadores” (Jo
10,1.8.10), que se
apoderam do que não lhes pertence e roubam ao Povo qualquer possibilidade de
vida e de libertação. O texto começa com a afirmação lapidar de Jesus, “Eu sou o Bom Pastor”. O termo “bom” deve
entender-se no sentido de “modelo”, “ideal”. E Jesus explica, a seguir, que o
“pastor modelo” é aquele que é capaz de se entregar a si mesmo para dar a vida
às suas ovelhas (v 11). E, como refere Lucas, este pastor
carinhoso corre riscos por montes e vales para recuperar a ovelha tresmalhada
e, tendo-a encontrado, carrega-a alegremente aos ombros e reinsere-a no redil (cf Lc 15,3-7).
Depois daquela afirmação, Jesus põe em paralelo duas figuras:
o mercenário e o pastor (vv
12-13). O que distingue
o “pastor” do “mercenário” é a atitude diferente diante do lobo. O lobo
representa, na parábola, tudo o que põe em perigo a vida das ovelhas (interesses dos poderosos, opressão, cobiça,
corrupção, enriquecimento ilícito, injustiça, descaso com a justiça social violência,
ódio do mundo).
O “pastor mercenário” é o pastor contratado por dinheiro. O
rebanho não é dele e ele não ama as ovelhas. Limita-se a cumprir o contrato,
fugindo de tudo o que o possa pôr em perigo a ele e aos seus interesses. Cumpre
as normais obrigações sem que o coração esteja com o rebanho. Tem a função de
enquadrar o rebanho e de o dirigir, mas segue a lógica do egoísmo e do interesse.
Por isso, quando pressente o perigo, abandona o rebanho à sua sorte a fim de
salvaguardar os seus interesses egoístas e a sua posição. Ora, o verdadeiro
pastor é o que serve por amor e não por dinheiro. Não está interessado em
cumprir contrato, mas em fazer com que as ovelhas tenham vida e se sintam
felizes. A prioridade é o bem das ovelhas. Por isso, arrisca tudo em benefício
do rebanho e está disposto a dar a própria vida pelas ovelhas que ama. Nele as
ovelhas podem confiar, pois sabem que ele não defende interesses pessoais, mas
os interesses do rebanho.
E, como dizia o Bispo do Porto na homilia da missa da sua
entrada solene, há que distinguir entre o burocrata e o pastor. O primeiro
conta as ovelhas e baralha-se na estatística, ao passo que o segundo pensa como
há de cuidar delas, acompanha-as, guia-as e anima-as.
Ora, Jesus é o modelo do pastor (vv 14-15). Conhece cada uma das suas ovelhas, tem com cada uma
relação pessoal única, ama cada uma, conhece-lhe os sofrimentos, dramas, esperanças
e sonhos. Esta relação de Jesus com as ovelhas é tão especial que até a compara
à relação de amor e intimidade que tem com o próprio Deus, seu Pai. É este
amor, pessoal e íntimo, que leva Jesus a pôr a própria vida ao serviço das ovelhas
e a oferecê-la para que todas elas tenham vida e vida em abundância. Quando as
ovelhas estão em perigo, Ele não as abandona, mas é capaz de dar a vida por
elas. Nenhum risco, dificuldade ou sofrimento O fazem desanimar. A atitude de
defesa intransigente do rebanho é ditada por um amor ilimitado, que vai até ao
dom da vida.
Depois de definir assim a sua missão e atitude para com o
rebanho, Jesus explica quem são as suas ovelhas e quem pode fazer parte do
rebanho. Ao dizer “tenho ainda outras
ovelhas que não são deste redil e preciso de as reunir” (v 16a), deixa claro que a sua missão não se encerra nas
fronteiras do Povo judeu, mas é universal, destinando-se a vivificar todos os
povos da terra. A comunidade de Jesus não está encerrada numa instituição
nacional ou cultural. O que é decisivo, para integrar a comunidade de Jesus, é
acolher a sua proposta, aderir ao projeto que Ele apresenta, segui-Lo. Nascerá,
então, uma comunidade única, cuja referência é Jesus e que marchará com Jesus
ao encontro da vida eterna e verdadeira (“ouvirão a minha voz e haverá um só rebanho e um só pastor”
– vv. 16b).
Finalmente, Jesus refere que a sua missão se insere no
projeto do Pai para dar vida aos homens (vv 17-18). Assim, assume o projeto do Pai e dedica toda a sua vida terrena a cumprir
a missão que o Pai lhe confiou. O que O move não é o interesse pessoal, mas o
cumprimento da vontade do Pai. Ao cumprir o projeto do Pai em prol dos homens,
Ele realiza a sua condição de Filho.
Ao dar a sua vida, Jesus está consciente de que não perde
nada. Quem gasta a vida ao serviço do projeto de Deus, não perde a vida, mas
constrói para si e para o mundo a vida eterna e verdadeira. O seu dom não
termina em fracasso, mas em glorificação. Para quem ama, não há morte, pois o
amor gera vida verdadeira e definitiva. A entrega de Jesus não é acidente ou
fatalidade, mas gesto livre de quem ama o Pai e ama os homens e escolhe o amor
até às últimas consequências. O dom de Jesus é um dom livre, gratuito e
generoso. Na decisão de oferecer livremente a vida por amor, Jesus manifesta o
seu amor pelo Pai e pelos homens.
Com este
discurso pastoral, Jesus
traça o perfil da liderança na Igreja. Define os termos da função pastoral em relação aos
fiéis em todos os tempos e culturas. O governo eclesial, incluindo os leigos
que prestam serviços na comunidade, vê nesta parábola a verdadeira cartilha de liderança. Jesus
é o líder verdadeiro. E, como ovelhas solidárias e aprendentes, partilhamos da
sua solicitude pastoral, evitando que alguém se desgarre. A catequese joanina
requer a decisão por Jesus e, pela graça batismal, a participação no seu múnus
de profeta, sacerdote e rei.
2018.04.22 –
Louro de Carvalho
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