É a frase que o DN, na sua edição
de 15 de abril, seleciona como emblemática do livro “Inimigos
de Salazar”, de Irene Flunser Pimentel, editado pelo Clube
do Autor.
Há muitos livros sobre Oliveira Salazar, mas há
quem diga que falta uma biografia do governante, já que os livros publicados a
seu respeito ou são parcelares em termos temáticos ou, como sucede com a obra
de Franco Nogueira, se trata de material desatualizado (no caso deste, ainda não havia distância
suficiente) e sem a necessária imparcialidade.
Com Irene Flunser Pimentel ficamos com ciência certa de que poucos governantes concitaram um tão grande número de
inimigos, sendo que, para lá dos que sempre se posicionaram como seus
opositores ideológicos, muitos surgiram na sua roda ideária e mesmo “dentro do
seu círculo íntimo”. O seu livro tece
considerações sobre a vã tentativa de derrube de Salazar e/ou do regime a que
dava corpo por parte de tantos, em que se incluem republicanos e monárquicos,
militares e civis, comunistas e socialistas, fascistas e católicos, estudantes
e operários... E são tantos “os planos, as lutas e as conspirações; os golpes,
as revoltas e as greves; as prisões, as evasões, as deportações e os
assassinatos”. Ora, levantam-se várias questões: Por que razão a oposição não logrou derrubar o regime durante tantos
anos? O que dividia as diversas
forças políticas da oposição? Quais
os mais audazes contra Salazar?
Flunser Pimentel integra, além de muitos outros, na oposição militar, Sousa Dias,
Norton de Matos, Paiva Couceiro, Henrique Galvão, Humberto Delgado, Júlio
Botelho Moniz, Varela Gomes…; na oposição
civil, Cunha Leal, Bento Gonçalves, Emídio Santana, Rolão Preto, Álvaro
Cunhal, Mário Soares, Edmundo Pedro, Palma Inácio…; e, no grupo dos intelectuais e artistas, António Sérgio,
Jaime Cortesão, Piteira Santos, Agostinho da Silva, Maria Lamas, Zeca Afonso,
Alexandre O´Neill e Miguel Torga…
A recensão
crítica do editor indica ser esta “a história das personalidades e das organizações
que se opuseram e resistiram ao regime ditatorial que marcou metade do século
XX português”: “as várias oposições, os seus ideais e os seus conflitos, os
seus feitos e os seus fracassos”.
É enorme e
diversificada a lista de inimigos e adversários do Estado Novo (com as suas várias
configurações) que surgia
de todos os quadrantes políticos e sociais. E “todos tentaram em vão derrubar o
regime”. Porém, como vinca a autora, apesar da constante resistência ao regime,
as várias oposições e os diversos inimigos de Salazar foram influenciados ou
por uma ‘cultura de derrota’ ou pelo sectarismo ou, ainda, por erros (“aparentemente
contrários, mas complementares”) de
aventureiros franco-atiradores eivados da tentação de passar, de forma
voluntarista, à ação sem procederem a uma análise coerente da realidade.
A
investigadora destaca no seu trabalho os anos em que o dito “reviralho” luta
contra a Ditadura Nacional (1926-1932); a luta contra
o Estado Novo (1933-1945); os densos
anos do pós-guerra e da guerra fria (1946-1957); o tsunami “Delgado”
e o início da guerra colonial (1958-1962); e os
últimos anos de Salazar (1963-68), a que
sucedeu o marcelismo autoenfiado num beco sem saída.
A lista de oposicionistas e de eventos é tão grande que a investigadora e
historiadora precisou de quase 500 páginas para os elencar num ‘manual’ a que
deu o título “Inimigos de Salazar”,
libertando do olvido muitas das personalidades que traíram Salazar ou contra ele
se revoltaram desde a chegada à pasta das Finanças em 1926 até 25 de abril de
1974, sendo que estes 6 últimos anos de governação já não tinham o seu carimbo
nominal, mas mantinham o seu ideário quase intacto. Entre os plúrimos verbetes deste quase dicionário
oposicionista, figuram nomes bem conhecidos, mas o destaque vai para 5
fundamentais: dentro do próprio estado-maior, o general Botelho Moniz; entre os
militares fiéis antes de se revoltarem, Humberto Delgado; no meio intelectual,
Francisco Cunha Leal; na oposição política ativa, Álvaro Cunhal (com Mário
Soares); e, no estrangeiro, Nehru, o líder
indiano que invadiu o português Estado da Índia (Goa, Damão e Diu).
E, para a
autora, é possível conhecer Salazar através dos seus inimigos, sendo mesmo esta
uma boa forma de conhecer o governante. A este respeito, assegura:
“Ao ver quem ele elegeu como seus adversários e inimigos políticos
principais, bem como lidou com eles. Por outro lado, através das estratégias e
ação dos seus diversos inimigos políticos, aprende-se mais sobre estes e sobre
quem era o seu inimigo principal.”.
Mais, a luta
oposicionista é um relato constante neste quase meio milhar de páginas, embora
Pimentel considere a existência duma ‘cultura de derrota’ em tão alargada
oposição e diga:
“Como tantas sublevações e outras ações tinham falhado ao longo dos
anos, os opositores assumiram que falhariam sempre e, mesmo quando sabiam que
iriam perder, como no caso do assalto ao quartel de Beja, não se recusavam a
participar. Esta cultura de derrota tinha como resultado a falta de
planificação e de secretismo, ou seja, a outra face da moeda do aventureirismo.”.
Ora, como a
História não trata de hipóteses nem se verificou uma unidade nem a ausência de
sectarismo oposicionista e poucas são as vitórias durante as 4 décadas, a não
ser setoriais como a da propaganda, o desvio do paquete Santa Maria e o do
avião da TAP em 1961, Pimentel procura analisar “porque falharam as diversas tentativas da oposição para remover Salazar
ao longo de tantos anos”. É certo que, ao nível da intenção e enunciado,
pode dizer-se que “todos tentaram derrubar Salazar”, mas a autora sugere que tal
frase, da contracapa, seja situada no contexto, pelo que escreve:
“Os que se opuseram realmente a Salazar – uma minoria dos portugueses,
que por isso foi perseguida e reprimida – tentaram por formas diversas que
fosse derrubado. O que não significa por si só que todos quisessem instaurar a
democracia. Os anos da Ditadura de Salazar, embora numerosos (1932 a 1968)
foram muito marcados em Portugal e a nível internacional por ideologias
diversas e, por isso, foram numerosas as opções políticas e doutrinais, bem como
os mecanismos usados pelas oposições.”.
Questionada se
este é o dicionário didático da oposição, Irene Flunser Pimentel responde que
“gostaria que fosse”, mas não o quer apregoar e sustenta:
“O que tentei fazer foi elaborar uma espécie de ‘manual’ para
professores, alunos liceais e universitários, mas também para todos os que se
interessam pela nossa história do século XX”.
***
Irene Flunser Pimentel é licenciada em História pela
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, mestre em História Contemporânea
(séc. XX) e doutorada em História Institucional e Política
Contemporânea pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa. Elaborou diversos estudos sobre o Estado Novo, a II Guerra Mundial,
a situação das mulheres e a polícia política na ditadura de Salazar e Caetano
e, mais recentemente, sobre a transição para a Democracia. É investigadora do
Instituto de História Contemporânea (FCSH
da UNL), tendo terminado um projeto de Pós-Doutoramento, aprovado pela FCT,
intitulado “O processo de justiça
política relativamente à PIDE/DGS na transição para a democracia em Portugal”.
É autora de diversos livros, de que se destacam: História das Organizações Femininas do Estado Novo (2000), Judeus em Portugal
durante a Segunda Guerra Mundial (2006), A História da PIDE (2007), Espiões em Portugal
durante a Segunda Guerra Mundial (2013) e O Caso da PIDE/DGS (2017). É coautora de Salazar,
Portugal e o Holocausto (2013) e de Mulheres Portuguesas (2015). Foi reconhecida com diversos prémios e distinções,
nomeadamente o Prémio Carolina Michaelis (1999), Prémio
Adérito Sedas Nunes (2007), Prémio Pessoa
(2007), Prémio Seeds of
Science, categoria “Ciências Sociais e Humanas” (2009). E é Chevalière de la
Légion d’honneur francesa.
***
Em entrevista ao DN, publicada na data acima indicada, a autora responde a várias questões, respostas de que
se faz aqui menção de forma sintética.
São várias
as razões por que Salazar sobrevive, durante
décadas, a um generalizado cerco e devem ser procuradas tanto no regime
como nas suas instituições e na eficácia destas, como nas diversas oposições e,
ainda, nos portugueses em geral. Salazar uniu, a princípio, as várias direitas
(monárquicos,
conservadores, católicos…) e os que
desejavam um regime novo (sem partidos) de União
Nacional à semelhança do fascismo italiano, implantado em 1922. Aliciou potenciais
opositores (como os católicos sociais, alguns monárquicos e os nacionais-sindicalistas) após a cisão no Movimento de Rolão Preto e a
proibição deste, arbitrando as várias sensibilidades. Domou as Forças Armadas a
partir de 1937 e usou-as na sua defesa. Utilizou a aliança e cumplicidade da
hierarquia católica. Criou organizações de repressão, PVDE/PIDE, e endureceu a
Censura.
Salazar cativou os portugueses
através de organizações e do corporativismo, a substituir a luta de classes
pelo trabalho de todos em “prol do bem comum”. Como qualquer ditadura, não
contou só com a repressão, que é usada para combater sobretudo os adversários
políticos (uma minoria), mas
tentou cativar a população a partir do conhecimento das “suas idiossincrasias”
ficando-se no conservadorismo tranquilizador. Ora, Salazar, conhecendo bem a
população portuguesa, tinha desprezo por grande parte dela, sendo um mestre do distanciamento.
Entre os que tentaram o derrube do regime, sobressaem pessoas que ficaram
claramente conhecidas e cuja ação
política ultrapassou o 25 de Abril de 1974. São os casos de Álvaro Cunhal e
Mário Soares, entre muitos outros. E as ações mais espetaculares que, do ângulo
de vista da propaganda contra o regime, se destacaram foram as de Palma Inácio
e Camilo Mortágua. Houve também figuras que se criaram dentro do regime, mas
que se afastaram dele, como, por exemplo, Henrique Galvão e Humberto Delgado.
Este fez o regime tremer com a sua célebre frase nas eleições de 1958 de que
demitiria Salazar. E contam-se como verdadeiros opositores os grandes dirigentes
do PCP, hoje geracionalmente eclipsados, como José de Sousa, Bento Gonçalves,
Júlio Fogaça ou Martins Rodrigues, entre outros.
Por outro
lado, Flunser Pimentel faz um recuo
cronológico aos anos da Ditadura Militar (1926-1932) a recordar os militares reviralhistas e
republicanos, que se envolveram em sublevações e revoltas e sofreram a prisão,
deportação e exílio. E releva uma figura hoje pouco conhecida, Cunha Leal, que
participou no “28 de Maio”, mas foi desde cedo (1929-30) um inimigo de Salazar, a nível pessoal e político.
Refere a autora que pensou muito “se terminava
o livro com a morte política de Salazar, em 1968”, o qual sobreviveria
fisicamente por mais dois anos. Porém, o seu regime perdurou com a maioria das
suas principais caraterísticas, embora com diferenças, através de Marcello
Caetano, designadamente continuando a guerra colonial e mesmo agudizando a
repressão. Por isso, procedeu a uma certa adaptação, embora deixando de fora “a
ação de um novo tipo de oposição a partir do final dos anos 60, com novos
inimigos, muitos de outra geração, que enveredaram pela esquerda radical ou
atuaram nas organizações de luta armada”.
Assim, o livro inicia-se com um prólogo –
“8 anos antes” –, para contextualizar Salazar e os inimigos a partir de 1926, e
não quando chega à chefia do Governo. E termina com um epílogo para passar a
noção de que “o regime ditatorial só terminou em 1974”, num processo de rutura
através de golpe militar.
O livro dá relevo especial a Júlio Pomar, um caso de crítico intelectual
oposicionista de quem um quadro constitui uma revolta. A esse respeito, diz Flunser Pimentel:
“O que lemos em literatura, o que vemos na representação artística ou
ouvimos em música, através dos intelectuais e artistas censurados por Salazar,
mas que nunca estiveram com ele, é não só expressão de revolta, como apelo à
revolta de outros face à injustiça e ausência de liberdade. Sobre os intelectuais
e artistas, o ditador utilizou a arma poderosa da Censura.”.
No quadro da resposta mais dura do regime aos opositores, a autora aponta
a guerra e a morte “nas colónias em guerra”. Entende que, “apesar de tudo o que estava no continente europeu”,
em Portugal, “havia o cuidado, a partir de 1945, em não usar o assassínio
político”, embora se aproximassem dele as torturas violentas da PIDE/DGS. É
certo que houve o assassinato de Humberto Delgado e de outros, mas o
assassinato (praticado no segredo) “não foi
algo utilizado expressamente e em grande escala”. Deixaram curiosamente de ser
usadas na metrópole as frequentes “deportações da monarquia, I República e
Ditadura Militar, sendo-o apenas a título excecional. Nas colónias, continuaram,
por exemplo, as deportações de angolanos para São Tomé, Tarrafal. O meio
principal de espalhar o medo nos que se metessem “na política” era a prisão
política, que “variava consoante as classes sociais e os opositores estivessem
num processo inicial de oposição ou fossem dirigentes e funcionários de um
partido, caso do PCP”.
Diz a autora que “nem
por sombras” a oposição fraquejara frente ao marcelismo. Pelo contrário,
sustenta que a oposição se reforçou “de forma assinalável” e se “diversificou”.
A PIDE, que mudou de rótulo para DGS, “aumentou a sua violência à medida que
sentia dificuldades em domar as oposições, que já não eram as mesmas que no
período salazarista”. O “marcelismo” combateu, de forma intensa, o movimento
estudantil e laboral, designadamente os trabalhadores das classes baixa e
média; foi reforçada a oposição católica; aumentou a emigração; e irrompeu a “oposição
no seio dos militares devido à guerra colonial”.
Finalmente, em relação à questão se opositores indicados no livro ficaram
“vingados” com a “Revolução de Abril”, diz não crer que a História “vingue”, mas que “resulta de uma dinâmica
levada a cabo por diversas forças, desde as de combate às que reprimem e
suscitam o imobilismo”. Assim, “o que aconteceu foi que quando os militares (parte deles) derrubaram o regime, as diversas oposições
apoiaram-nos, mostrando que existiam, a ponto de estarem prontas a construírem
um novo regime”.
***
Em suma, estamos
perante uma entrevista que apresenta elementos relevantes de novo livro que, não
sendo uma biografia de Salazar, pois não releva seus dados pessoais e
profissionais, nem apresenta o seu coerente sistema de pensamento nem tem a preocupação
de narrar os acontecimentos em torno do “(a)político” que se tornou o protagonista
do regime, contribui para o conhecimento do homem e do seu tempo, não pelo lado
dos vencedores. E mostra como quem se relacionasse com o governante perdia a
independência de pensamento e de opção. É de ler.
2018.04.16 – Louro de Carvalho
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