terça-feira, 3 de abril de 2018

Sobre o acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva


Li, há uns dias, no semanário O Diabo, que os familiares das vítimas dos crimes praticados a 11 de outubro de 2016, perto de Aguiar da Beira, tiveram que entrar com verba significativa no processo judicial em que pediam indemnização por danos sofridos, estranhando o articulista o facto e sustentando que Portugal era dos poucos países da UE em que existe a obrigação de custas judiciais por parte dos ofendidos em processo criminal.
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O acesso ao direito e à via judiciária na Constituição (CRP)
Espreitando o que estipula a Constituição sobre o acesso ao direito, havia que ler o artigo 20.º (acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva), que estipula: “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos” (n.º 1); todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade” (n.º 2); “a lei define e assegura a adequada proteção do segredo de justiça” (n.º 3); todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo” (n.º 4); “para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caraterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos” (n.º 5).
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Estão aqui reconhecidos dois direitos distintos, mas conexos: o acesso ao direito e o acesso aos tribunais. E qualquer um deles é elemento integrante da ideia de Estado de Direito, não se podendo entender-se tal ideia sem que os cidadãos conheçam os seus direitos e deveres, a proteção jurídica de que precisem e o acesso aos tribunais, quando necessário.
O acesso ao direito abrange o direito à informação e à proteção jurídicas. Embora a CRP remeta para a lei ordinária a concretização deste exercício, este postula a possibilidade de recurso a serviços públicos (ou de idêntica responsabilidade) em condições acessíveis, a informação jurídica e o patrocínio jurídico. E este direito é não é só um instrumento de garantia dos legítimos interesses e direitos, mas integra materialmente o princípio da igualdade e o princípio democrático.
O direito à via judiciária não se restringe à defesa dos direitos fundamentais, mas estende-se a todos e quaisquer direitos e interesses legítimos, ou seja, a todas as situações juridicamente protegidas (pela Constituição ou pelas leis). E é um direito que vale tanto contra particulares como contra os poderes públicos. Por isso, os cidadãos têm a via judiciária disponível contra atos legislativos e contra atos jurisdicionais, quando lesivos dos direitos cidadãos. A ação contra atos dos poderes públicos é visível nos atos administrativos e cabe aos tribunais administrativos, podendo resultar na anulação do ato administrativo, no reconhecimento de direitos dos cidadãos em determinadas matérias e na penalização da administração por omissão de ato administrativo ou por não satisfação de uma obrigação decorrente duma decisão legal. A ação contra atos jurisdicionais concretiza-se na reclamação e no recurso, neste caso para tribunais superiores. A ação contra atos legislativos não está disponível para o comum dos cidadãos, mas apenas para determinadas entidades previstas na Constituição para a suscitação da fiscalização da constitucionalidade ou da legalidade dos normativos a promulgar ou já em vigor, conforme o caso de se tratar da fiscalização preventiva ou da fiscalização sucessiva. Os cidadãos só têm disponível, ao contrário de outros países (que o têm para recursos de amparo, de defesa…), o recurso para o Tribunal Constitucional, se a lei não for aplicada ou for aplicada indevidamente em tribunais de instância com fundamento na sua inconstitucionalidade.      
A garantia do recurso aos tribunais postula o dever de admissão por parte do tribunal e a obtenção de decisão jurídica sobre qualquer questão juridicamente relevante – o que supõe, entre outros fatores, o dever estadual de criar tribunais suficientes e de os colocar próximos dos cidadãos e acessíveis a eles; a obrigação dos tribunais de conhecerem, em tempo útil, das questões que lhes sejam submetidas; “uma proteção judicial sem lacunas, não podendo a repartição da competência pelos vários tipos de tribunais (comuns e/ou especiais) deixar algum espaço sem cobertura”; e a dotação de meios suficientes as tribunais e às entidades colaborantes. 
A garantia da via judiciária será meramente teórica se o recurso aos tribunais se deixar de fazer por ausência ou insuficiência de meios económicos. Por isso, a lei tem de assegurar a concretização desta norma de modo que, por exemplo, o regime de custas judiciais não seja tão oneroso que impeça ou dificulte a acesso aos tribunais ou que as ações ou recursos estejam condicionados a cauções ou outras garantias financeiras incomportáveis. Tem naturalmente de ser tida em conta a situação económica das partes e não pode a burocracia sobrepor-se.
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As custas judiciais/processuais
Sobre este assunto, o site da FFMS (Fundação Francisco Manuel dos Santos) contém uma informação que se pode considerar elucidativa e satisfatória, obviamente sem dispensar a consulta de tabelas e a informação veiculada pelos advogados. Dessa informação se respiga o essencial.
As custas judiciais ou processuais correspondem ao preço da prestação do serviço público de justiça. Embora a CRP garanta a todos os cidadãos o acesso aos tribunais, não estipula a gratuitidade da justiça. Só impõe que o preço não seja elevado a ponto de significativamente dificultar esse acesso. Porém, isto não significa que as custas processuais correspondam ou permitam cobrir os custos reais do processo.
As custas processuais incluem taxa de justiça, encargos e custas de parte. A taxa de justiça é o montante devido pelo impulso processual do interessado, por exemplo, o autor ou o réu numa ação judicial, e fixa‑se em função do valor ou complexidade da causa, segundo tabelas legais. E deveria fixar-se de acordo com a real (e não presuntiva) situação económica das partes
Os encargos correspondem às despesas concretas a que haja lugar no processo: por exemplo, custos com correio e comunicações telefónicas, (eventual) compensação a testemunhas ou retribuição de peritos, transportes em diligências no processo. Em princípio, devem ser pagos antecipadamente pela parte requerente ou interessada nos atos que impliquem despesa.
As custas de parte são as despesas que cada parte foi fazendo com o processo, incluindo a taxa de justiça, e de que tenha direito a reembolso pela parte vencida. Este reembolso deve ser pago diretamente à parte vencedora.
O pagamento das custas no final do processo, em regra, cabe a quem ficou vencido, na proporção em que o tiver sido. No processo penal, o arguido só tem responsabilidade pelas custas se for condenado. Em certos casos, elas devem ser pagas por quem se constituiu assistente (acompanhando a acusação como interessado) no processo, quando, por exemplo, o arguido for absolvido. Também o denunciante de crime que tenha feito a denúncia de má‑fé (com intenção de prejudicar ilegalmente a pessoa contra quem fez a denúncia) ou com negligência grave (prejudicando a pessoa pela falta de cuidado grosseira) pode ser condenado nas custas.
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Mais alguns dados do estado da Justiça
Entretanto, durante a pesquisa, apareceu a talho de foice, um artigo de Mariana Oliveira no Público de 25 de outubro pp, que faz soar as campainhas: “Tribunais portugueses são na UE os mais entupidos com cobranças de dívidas”. E “Justiça melhorou nos últimos anos, mas ainda há mais de um milhão de casos pendentes”. Ora, porque nem só de custa se faz problema na Justiça, veja-se o que se passa com processos pendentes, pessoal que trabalha na e com a Justiça e ocupação efetiva das prisões.
Seguindo, no essencial o mencionado artigo, começa-se por dizer que “Portugal apresenta a maior taxa de congestão de processos cíveis, cuja esmagadora maioria são casos de cobranças de dívidas, da UE e situa-se o facto de forma quase ininterrupta entre os anos de 2008 e 2015, constituindo-se 2014 em exceção. É um indicador que traduz em percentagem a relação entre o número de processos pendentes no início dum ano e o de processos findos nesse ano.
Segundo a Pordata Europa, o país mostrava, em 2015 (os dados mais recentes), uma taxa de congestão nos processos cíveis de 214%. O entupimento dos nossos tribunais fica muito à frente da Grécia, país que ocupa o 2.º lugar do ranking, apresentando uma taxa de congestão 105%, menos de metade da portuguesa. É realidade patente ao analisar dos dados compilados pela base de dados Pordata Europa (da Fundação Francisco Manuel dos Santos), disponível na Internet, que leva a comparar as estatísticas nacionais com as de outros países da UE. O portal da FFMS conta com 40 quadros estatísticos, organizados em 4 grandes áreas (crimes, processos, recursos humanos e prisões) e foi uma iniciativa que pretendeu assinalar o Dia Europeu da Justiça Civil. Os quadros importam números do Eurostat, entidade que recolhe e divulga os dados estatísticos dos 28 países da UE. Isto, porque, segundo a FFMS,
A Justiça é um dos pilares fundamentais das sociedades democráticas. Desta forma, a entrada do novo tema Justiça representa mais um contributo para melhor conhecer Portugal e a sociedade em que vivemos, com base em dados para todos os países da União Europeia.”.
Tanto a Justiça criminal como a cível (inclui as ações de cobrança de dívidas, a maior parcela dos processos entrados nos tribunais) tem registado uma tendência de melhoria ao longo dos últimos anos. Porém, segundo as últimas estatísticas oficiais da Justiça (referentes a 31 de dezembro de 2016), ainda existiam 1.136.292 processos pendentes nos tribunais – ainda assim, muito menos que os mais de 1,6 milhões de processos em curso nos tribunais 4 anos antes. É um problema que não é de agora. Mas Portugal não vem resolvendo o problema de forma sustentável. Só em 2013 e 2014 é que as estatísticas mostram melhoria, que se reflete em alguns indicadores de 2015. Parece, pois, ironia Portugal apresentar em 2015 a melhor taxa de resolução de processos cíveis da Europa a 28. Há quem diga ser apenas resultado duma medida levada a cabo por Paula Teixeira da Cruz, então Ministra da Justiça, que induziu, por via quase administrativa, o encerramento de centenas de milhares de ações de cobrança de dívidas que não tinham grandes hipótese de sucesso. E a grande causa de entupimento é a cobrança de dívidas.
Isto é o que reconhece Mariana França Gouveia, advogada que integra a FFMS, para quem essa taxa de resolução – que mede a relação entre o número de processos findos e o dos entrados no ano – foi em 2015, nos nossos tribunais portugueses, de 124%. Em 2.º lugar, neste indicador aparece a Eslovénia com 110%, seguida da Roménia (109%) e da Letónia (105%). No ano anterior, a taxa ficou-se pelos 104%, tendo registado o máximo dos últimos 8 anos em 2013, em que foi de quase 129%. Antes, ficou sempre abaixo dos 100%, o que significa que, ano após ano, os tribunais não lograram resolver os processos cíveis que entraram nesse ano, permitindo que os casos se fossem avolumando.
Nos processos-crime a realidade é diferente. São uma ínfima parcela – representando 4,5% do total das ações existentes nos tribunais nacionais. Exemplo disso é a realidade existente em 2015, ano em que pendiam na nossa Justiça menos de 59 mil processos criminais e mais de 1.245.000 cíveis. Aliás, desde 2008, ano após ano, os tribunais têm logrado encerrar mais processos-crime do que os entrados no ano. Vem, assim, descongestionando a Justiça penal.   
Dos dados da Pordata Europa, o mais surpreendente é o que traduz a relação das mulheres com a Justiça e a sua participação na realização da mesma. Mariana França Gouveia refere que em Portugal e nos demais países da UE as cadeias são sobretudo lugares de homens. Em Portugal, as mulheres são 6% da população prisional, apesar de representarem mais de metade da população. O número não é muito diferente dos outros países da UE. Na Letónia, que tem a percentagem mais elevada da UE, as mulheres são 8% da população prisional. A Irlanda, no oposto, tem nas cadeias 3% de mulheres. E, em termos de condenações, as mulheres são uma minoria tanto na Justiça portuguesa como na dos restantes países da UE. Em Portugal, em 2015 as mulheres representavam 13% do total de condenados, percentagem que, 7 anos antes, era 3% inferior. A tendência de crescimento desta proporção é visível em vários países europeus. Porém, mesmo na Finlândia, que tem a maior percentagem de mulheres condenadas da UE, a proporção fica-se nos 21% do total.
Hoje, as mulheres constituem a maioria dos magistrados na maior parte dos países da UE, estando a Letónia no topo do ranking com 79% de mulheres no total de magistrados. Em Portugal, a percentagem é de 59% e na República Checa, que exibe o valor mais baixo da UE, a percentagem é de 40%.
Situação diferente é a que se assiste no nosso país relativamente à presença de mulheres nas forças policiais. Neste indicador, Portugal aparece na cauda da Europa com apenas 8% de mulheres-polícia no conjunto das forças de segurança. Abaixo de nós, apenas está a Itália com 7%. No extremo oposto surge a Letónia e a Lituânia, com 37% e 36% do total, respetivamente.
Já relativamente ao número de polícias por 100 mil habitantes Portugal aparece em 5.º lugar nos 27 países que disponibilizaram em 2015 dados ao Eurostat. O mesmo não sucede com o número de magistrados, em que Portugal aparece com 17 procuradores e juízes por cada 100 mil habitantes. Tal vale-nos a 17.ª posição num conjunto de 26 países. Muito menos do que os 45 magistrados por cada 100 mil habitantes existente na Croácia, o país que lidera o ranking.
Quanto à sua ocupação efetiva, as prisões portuguesas são das mais sobrelotadas da UE, com 112% de ocupação efetiva em 2015, o ano mais recente com dados comparativos. Portugal ocupava, nesse ano, o 4.º lugar deste ranking, apenas atrás da Hungria (127%), da França e do Chipre (ambos com 114% de ocupação). O Luxemburgo é o país da UE com as prisões mais vazias face à sua capacidade, ficando a taxa de ocupação efetiva pelos 49%, muito abaixo dos países que se seguem, a Letónia (com 75%) e a Holanda (76%). Surpreendente para Mariana França Gouveia é uma parte substancial das cadeias da UE estarem ocupadas por estrangeiros, ou seja, não nacionais do respetivo país. No Luxemburgo, a percentagem chega aos 75%; e na Grécia e na Áustria aos 54%, nos dois países. Em Portugal, a percentagem fica a meio da tabela com 17%. No entanto, recordava a Fundação Francisco Manuel dos Santos, a percentagem de estrangeiros residentes em Portugal é de apenas 4%, o que significa que a proporção de estrangeiros existentes nas cadeias é substancialmente superior à proporção de portugueses. 
Enfim, um estado da Justiça que não é famoso, embora venha a melhorar, mas nem sempre pelas melhores formas. Será que o inquérito sobre a perceção da justiça pelo cidadão – que a Ordem dos Advogados, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e o Presidente da Assembleia da República vão lançar – chegará às mesmas conclusões? Ou perguntado de outra maneira, será por estes motivos que os cidadãos se queixam da Justiça? Ou serão outros: além de cara, é lenta, desigual (ricos, pobres, cidadãos comuns…), ineficaz, frouxa, distante, desconexa (decisões diferentes em situações semelhantes, consoante o tempo, o juiz, o tribunal, a instância, os argumentos…), facilmente divergente (entre polícia, Ministério Público, Tribunal…), palco de batalhas jurídicas…
2018.04.03 – Louro de Carvalho

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