Já lá vão cinco décadas sobre
o singular martírio pela igualdade racial. Em resultado dum ignóbil
assassinato, o mundo perdeu, a 4 de abril de 1968, um sonhador e um corifeu da
igualdade. Porém, no 50.º aniversário desta heroica imolação, as suas palavras continuam a ser inspiradoras para os defensores da
igualdade de direitos, qualquer que seja a condição pessoal.
“I have a
dream” (Eu tenho um
sonho) será a frase colada à memória de Martin Luther King evocativa do seu
famoso discurso e do seu grande sonho: negros e brancos a viver em
paz uns com os outros, liberdade e justiça desfrutadas por todos os
americanos e os filhos a morar num país onde serão julgados não pela cor da
pele, mas pelo caráter e comportamentos subsequentes. Com este ideário, Luther King ganhou um lugar relevante na
história. Centenas de milhares de norte-americanos, incluindo brancos,
acompanharam seu discurso pronunciado na Marcha sobre Washington, a
23 de agosto de 1963, com o objetivo de fortalecer os direitos dos negros e
chamar atenção para os problemas que eles enfrentavam no quotidiano. E, com o
discurso e as ideias nele contidas ou que o emolduravam, King inspirou os cidadãos
e estimulou-os a conceber e a concretizar a coexistência justa entre
negros e brancos.
Ele próprio
vivenciou desde cedo a segregação racial. Nascido em 15 de janeiro de 1929, em
Atlanta, na Geórgia, sob o nome de Michael King Jr., filho dum pastor batista e
duma professora, passou grande parte da infância a brincar com dois vizinhos
brancos – até que um dia os pais deles o proibiram de ver os amigos. Todavia,
King não se resignou. Tanto na escola como nos estudos de Sociologia e na
Teologia, sobressaiu como um luminar, embora, tenha vindo postumamente ao de
cima a estranha informação de que plagiara partes de sua tese de doutoramento.
Aos 17 anos, tornou-se pastor assistente do pai em Atlanta. E pai e filho alimentavam
e manifestavam profunda fé em Deus, o que acabou por ficar espelhado nos
nomes. Com efeito, em 1934, o pai participou, em Berlim, no Congresso Mundial
Batista. Durante a viagem prévia ao evento, estudou e aprendeu muito sobre Martinho
Lutero, tendo ficado fascinado pelo reformador. Ao voltar, King Pai mudou o seu
nome e o nome do filho para Martin Luther King.
O filho,
além do interesse por literatura religiosa, lia também Aristóteles, Platão e
Marx e gostava particularmente dos escritos de Mahatma Gandhi, vindo a
descobrir (como revelou), através
do foco de Gandhi no amor e na não violência, o método de reforma social que
buscava. Em 1953, casou com Coretta Scott Williams, com quem teve quatro
filhos.
King
comprometeu-se efetivamente pela primeira vez em intervenção pública depois de Rosa
Parks, ativista negra dos direitos civis, ter sido presa em 1955 por se
recusar a dar lugar a um homem branco num transporte público (autocarro) em Montgomery, no Alabama. Durante mais de um ano,
King e outros ativistas boicotaram autocarros de transporte público. A
resistência foi bem-sucedida: em 1956, o Supremo Tribunal proibiu a segregação
racial no transporte público de Montgomery. No ano seguinte, King fez dezenas
de discursos e escreveu um livro sobre as suas experiências na cidade.
Apoiou os
integrantes das Freedom Rides (Viagens da
Liberdade) na Geórgia em que os negros se manifestavam
em pequenos grupos, de modo pacífico contra a segregação no espaço público. Por
fim, acabaram por surtir efeito em todo o país os protestos da população negra.
Em junho de 1963, o Presidente John F. Kennedy apresentou a Lei dos Direitos Civis, que previa
igualdade ampla e nacional. Um ano depois, após o assassinato de Kennedy, o
novo Presidente, Lyndon B. Johnson, ratificou a lei.
Apesar dos
desdobramentos políticos, King e outros líderes de vários movimentos de direitos
civis não desistiram da manifestação em Washington, agendada para 28 de agosto
de 1963. A verificar-se a desistência, provavelmente nunca teria sido proferido
o famoso discurso “I have a dream” (Eu tenho um sonho) de Martin Luther King em frente ao Lincoln Memorial.
Um ano
depois, King foi galardoado com o Prémio Nobel da Paz. Mas a sua luta pela
igualdade de direitos não cessou, porquanto a igualdade racional existia
apenas no papel, motivo por que organizou em 1965 as Marchas de Selma a Montgomery,
no Alabama, a chamar a atenção para a desigualdade entre brancos e negros
quanto ao direito ao voto. As marchas foram reprimidas pela polícia por diversas
vezes, mas acabaram por alcançar a cidade vizinha. Na sequência dos
acontecimentos, o presidente Lyndon Johnson mudou de ideias e mostrou-se favorável
a nova lei eleitoral, vindo a Lei dos
Direitos de Voto a ser aprovada pelo Congresso no verão de 1965.
A par disso,
organizavam-se grupos violentos sobretudo em cidades da Califórnia e nos Estados
do Norte, pois consideravam o progresso muito lento. Desilusão e deceção
alastraram até que Malcolm X e o Partido dos Panteras Negras colocaram em xeque
as ideias não violentas de Martin Luther King. Todavia, King não se resignou. A
exemplo de Lutero, após um discurso em 1966, fixou 48 teses na porta da Prefeitura de Chicago. De início, também ali houve
resistência a King, que não deveria interferir nos interesses negros em
Chicago. Mas permaneceu firme. Nem as mais de 30 detenções o desviaram um
milímetro das suas convicções.
Martin
Luther King não encontrou rejeição apenas entre a população. Durante anos, teve
um relacionamento difícil com o FBI, o principal órgão investigativo do
Departamento de Justiça, que o interrogou e considerou comunista. Além disso,
os investigadores ameaçaram publicar informações privadas do ativista,
incluindo suas infidelidades, se ele não parasse de fazer campanha pelos
direitos civis dos negros. Em contrapartida, King acusou, não se intimidando
com a chantagem, o FBI de não fazer nada ante da violência contra os negros.
Não conseguiu o FBI
interromper o trabalho do ativista, mas James Earl Ray viria a consegui-lo. O
racista, diversas vezes condenado, alvejou King a tiro (um rifle
Remington-Peters) no dia 4 de abril de 1968 na varanda dum hotel em Memphis, Tennessee.
King tinha 39 anos de idade.
O
assassinato provocou revoltas ruidosas em muitas cidades dos EUA. Foram mortos
39 manifestantes foram mortos e presos cerca de 10 mil.
King é
considerado herói na história norte-americana e o sonho do pioneiro no ativismo
pela igualdade acompanha os negros nos Estados Unidos (e não só), incluindo a neta Yolanda Renee King (de 9 anos), que só apareceu a público, a 24 de março pp, na
marcha pelas nossas vidas (em Washington), onde
disse o seu sonho, não longe do lugar onde o avô realizou o famoso discurso:
“Meu avô sonhou que seus quatro netos não
seriam julgados pela cor da pele, mas pelo caráter deles. Eu tenho um sonho de
que já basta. De que este deveria ser um mundo livre de armas e ponto.”.
***
Hoje, o Vatican News recorda Martin Luther King, morto a 4 de abril de
1968, sublinhando a “grande sintonia” entre a sua figura e a do Papa Francisco.
E refere em síntese:
“Luther King, pastor protestante, foi o Prémio
Nobel da Paz de 1964; 4 anos mais tarde, foi assassinado em Memphis, no Estado
de Tennessee (EUA), ao promover uma campanha em defesa dos trabalhadores negros”.
A Conferência Episcopal dos EUA assinala a data em mensagem
que elogia o testemunho de não violência de Luther King, alertando para a
persistência de fenómenos de racismo. E diz:
“Apesar de ter sido feito um progresso
significativo na remoção da nódoa do racismo e do ciclo da violência com ele
relacionado, ainda temos muito a fazer”.
A morte do “indefeso e
cristão profeta da integração racial” foi condenada logo no dia 7 de abril de
1968, Domingo de Ramos na Paixão do Senhor, por Paulo VI, antes de rezar o
Angelus na Praça São Pedro.
Transcreve-se a alocução pelo que mostra de preocupação do Papa Montini e pela
leitura dolorosa e confiante que faz do evento pascal e dos acontecimentos
coevos:
“Devemos
hoje elevar para Cristo o ramo de oliveira para sua glória e nossa paz. O
símbolo do humilde ramo manifesta hoje a nossa fé em Cristo, nosso Salvador, e
a nossa esperança Nele, verdadeiro e sumo princípio da paz entre os homens. Mas
o nosso gesto, antes de ser consolador, faz-nos sentir a dor da paz ainda a
sangrar no mundo: no Vietname; no Médio Oriente; na África, especialmente na
Nigéria; e, depois, nos Estados Unidos da América, onde o assassinato dum
inerme e cristão profeta da integração racial, Martin Luther King, denuncia um profundo e quase implacável
conflito de vontades e de interesses.
Mas a oliveira ainda verde parece abrir-se a uma primavera de aspirações
e promessas que nos permite esperar – e hoje mas do que nunca – a vitória da
paz. O nosso gesto torna-se presságio e oração, que a proximidade da Páscoa faz
ardente e confiante. De facto, se Cristo está connosco, não podemos desesperar
da paz: devemos, antes, esperar o prodígio que transforma a dor em redenção, o
sangue em amor. Não nos faltam indícios deste prodígio; nós o esperamos, nós o
invocamos.”.
O Papa Francisco falou de Martin Luther King no seu discurso
ao Congresso dos EUA, em setembro de 2015:
“Penso na marcha que
guiou de Selma a Montgomery, há cinquenta anos, como parte da campanha para
conseguir o seu ‘sonho’ de plenos direitos civis e políticos para os
afro-americanos. Aquele sonho continua a inspirar-nos.”.
O Pontífice apelou então a “uma cultura que permita às pessoas ‘sonhar’ com plenos direitos para
todos os seus irmãos e irmãs, como procurou fazer Martin Luther King”.
Já na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2017, o Papa
recordou o papel do ativista “contra a discriminação racial”. E, a 12 de março,
recebeu em audiência a filha de Luther King, Bernice Albertine King.
D. Ivan Jurkovic, observador permanente da Santa Sé nos
organismos das Nações Unidas com sede em Genebra (Suíça), disse ao portal ‘Vatican News’ que Luther King
iniciou um “período novo” na democracia. Expressou-se nestes termos o prelado
diplomata:
“Martin Luther King fez a defesa dos
Direitos Humanos da população afro-americana; o Papa apresenta uma nova visão
da Igreja. Tudo isso representa dois princípios típicos da inspiração cristã: a
não violência e a fraternidade universal.”.
***
Pela
pena de Jan Martínez Ahrens, o El País
de hoje sustenta que “a chuva que matou Martin Luther King continua caindo
sobre os EUA”. E contextualiza, conforme a síntese a que, a seguir, se procede:
É mais
exato dizer que foi a chuva que o matou, essa água tenaz que, às vezes, cai em
Memphis (Tennessee) e que originou a greve de lixeiros
negros que o pastor decidira apoiar. O conflito revelava mais um caso da
divisão racial que assolava os EUA. Em dias de tempestade, a coleta de lixo era
suspensa ali. Porém, enquanto os trabalhadores brancos ganhavam pelas horas sem
trabalho, os negros ficavam sem pagamento. A ‘flagrante discriminação’
desencadeou uma onda de protestos em que fora assassinado um jovem
afro-americano. King, temendo um banho de sangue, foi defender os seus. Como
tantas outras vezes, ficaria à frente da manifestação e desafiaria os
adversários com a desobediência civil. Preparando-se para essa jornada,
hospedou-se no pequeno Motel Lorraine. Primeiro andar, quarto 306. Tranquilo,
preparava-se para jantar com um grupo de amigos quando, ao sair na sacada do
quarto, teve o pescoço atravessado pelo disparo de um rifle Remington-Peters.
E o articulista,
depois do seu longo artigo, insere uma nota que dá conta da hodierna situação
estadunidense (reproduz-se parcialmente o texto com alterações e
reduções):
Passados
50 anos, o tiro que matou Luther King ecoa nos ouvidos da América. Sucederam-se
guerras e presidentes, epidemias e prodígios, mas a questão racial permanece
viva. Quem nasce negro tem o dobro de risco do branco em cair na pobreza e terá
uma vida, na maioria dos casos, mais difícil. Os afro-americanos sofrem três
vezes mais expulsões e suspensões escolares, a sua renda familiar média é
apenas metade da dos brancos e, embora constituam 13% da população, respondem
por 40% das detenções por tráfico de drogas. A discriminação é flagrante e,
segundo um estudo do Pew Research Center, 61% da população (88%
no caso dos negros, 55% no dos brancos)
admite que ainda não foi alcançada a igualdade.
Nesse sinuoso
caminho, nem sequer a eleição dum Presidente negro foi suficiente. Barack Obama
representou a culminação do sonho, mas não o fim da história. Continuam os
crimes raciais, floresce a guerra de símbolos e Trump, com a sua terrível
equidistância no crime de Charlottesville, mostra-se incapaz de apagar o ódio. A
este respeito, o pensador afro-americano Ta-nehisi Coates escreveu:
“O poder simbólico da presidência de Obama e a demonstração de que ser
branco não bastava para evitar que os criados ocupassem o castelo abalaram as
noções mais enraizadas do supremacismo branco e instalou o medo entre seus
defensores. E foi este medo o que deu a Donald Trump os símbolos que o tornaram
presidente.”.
Trump,
segundo os observadores, é parte do problema que a comunidade negra enfrenta:
não é solução. O republicano só obteve 8% do voto afro-americano, fratura que emerge
onde quer que se pergunte. Christine, uma afro-americana de 38 anos, diz de
Trump que mais do que racista, “é um
ignorante, um sujeito de uma época anterior a Martin Luther King”.
A mesma Christine,
secretária e mãe duma criança de 7 anos, que foi, numa sexta-feira de março, visitar
o monumento a King em Washington, não estava sozinha: o local estava lotado de
brancos e negros. Ali emergiu Lia, de 23 anos que afirma que “os abusos são
constantes”, pois “faltam líderes”. E, para ela, “tanto faz a raça que tenham”,
mas que precisam de “alguém com estatura suficiente para pôr fim à
discriminação”.
***
Enfim, a
luta pela igualdade é muito linda, mas a hipocrisia e o egoísmo deixam-na
sepultada no papel. E um Estado que se limite a legislar só cumpre um terço da
sua missão.
2018.04.04 –
Louro de Carvalho
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