Foi hoje,
dia 9 de abril, apresentada ao mundo a Exortação Apostólica “Gaudete et Exsultate”.
E o título “Gaudete et Exsultate” (Mt 5,12) é o eco da exortação de Jesus aos perseguidos e
humilhados por mor do Evangelho. Com efeito, Ele “quer-nos santos e espera que
não nos resignemos com uma vida medíocre, superficial e indecisa”, sendo que o
chamamento à santidade está patente, em vários modos e lugares, desde as
primeiras páginas da Bíblia.
O Papa
adverte que a exortação não é um tratado sobre a santidade, mas tenta “fazer
ressoar mais uma vez o chamamento à santidade, procurando encarná-la no
contexto atual, com os seus riscos, desafios e oportunidades”.
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Depois dos dois números introdutórios, o texto é distribuído
por 177 números, organizados em 5 capítulos e com abundante aparato crítico
baseado em muitos lugares teológicos.
Assim, o capítulo I – “O Chamamento à Santidade” fala-nos, com base em várias passagens
bíblicas, dos grandes luzeiros dos cristãos, “Os santos que nos encorajam e
acompanham”, relevando, “nos
processos de beatificação e canonização”, “os sinais de heroicidade na prática
das virtudes, o sacrifício da vida no martírio e também os casos em que se
verificou um oferecimento da própria vida pelos outros, mantido até à morte”. Depois,
apresenta “Os santos ao pé da porta” – os não beatificados ou canonizados, pois “o Espírito Santo
derrama a santidade, por toda a parte”. Valoriza-se, assim, a santidade
paciente e alegre do quotidiano.
Segue-se a asserção de que Deus é que toma a
iniciativa: “O Senhor chama”. Chama a todos e a cada um,
mas cada um deve seguir no seu caminho. No entanto, o Pontífice destaca o “génio feminino”, que se manifesta “em estilos
femininos de santidade, indispensáveis para refletir a santidade de Deus neste
mundo”, sobretudo “ em períodos em que as mulheres estiveram mais excluídas”. E
Francisco pessoaliza o apelo quando afirma “A ti também”, pois, para ser
santo não é preciso ser bispo, padre ou frade.
No âmbito do tópico “A tua missão em Cristo”, é referido que “para um cristão, não é possível imaginar a própria missão
na terra sem a conceber como um caminho de santidade, porque esta é, na verdade, a vontade de Deus: a [nossa]
santificação” (1Ts 4,3). Cada um deve “refletir e encarnar, num momento
determinado da história, um aspeto do Evangelho”. Para tanto, há que perscrutar a vontade de Deus através da oração
e tentar ler os sinais que Ele dá a cada um.
E “A atividade que santifica” é a vida em oração e em comunidade, mas também
e sobretudo a assunção da atividade de cada dia em conformidade com a condição
social e profissional.
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No Capítulo II – “Dois Inimigos Subtis
da Santidade”, são selecionados como duas falsificações da santidade o gnosticismo e o pelagianismo, surgidos nos
primeiros séculos do cristianismo, mas alarmante e sedutoramente recrudescentes
na atualidade.
“O
gnosticismo atual” supõe ‘uma fé fechada no
subjetivismo’, “onde só interessa uma determinada experiência ou uma série de
raciocínios e conhecimentos que supostamente confortam e iluminam, mas, em
última instância, a pessoa fica enclausurada na imanência da sua própria razão ou dos seus sentimentos”. É “Uma mente sem Deus e sem carne.
O que faz e mede a perfeição da pessoa é o seu grau de caridade, não a quantidade de dados e conhecimentos que possa
acumular. Ora, os gnósticos julgam os outros consoante conseguem, ou não, compreender
a profundidade das doutrinas. É a mente “sem encarnação, incapaz de tocar a
carne sofredora de Cristo nos outros”. E, ao desencarnarem o mistério, preferem
“um Deus sem Cristo, um Cristo sem Igreja, uma Igreja sem
povo”. Mas isto pode suceder na Igreja!
É “Uma doutrina sem mistério”.
Diz o Papa que o gnosticismo é uma das piores ideologias, pois, “ao
mesmo tempo que exalta indevidamente o conhecimento ou uma determinada experiência,
considera que a sua própria visão da realidade seja a perfeição”. Assim, “esta
ideologia autoalimenta-se e torna-se ainda mais cega” e “particularmente
enganadora, quando se disfarça de espiritualidade desencarnada”. A humidade
intelectual deve abrir o nosso espírito para “Os limites da razão”. De facto, “só de forma muito
pobre, chegamos a compreender a verdade que recebemos do Senhor; e, ainda com
maior dificuldade, conseguimos expressá-la”.
Por seu turno, “O
pelagianismo atual” surge em contraponto ao gnosticismo, atribuindo à vontade humana o que
os gnósticos atribuem à inteligência. Esquece-se
que “isto não depende de quem quer nem daquele que se esforça por alcançá-lo, mas
de Deus que é misericordioso” (Rm 9,16) e que “nos amou primeiro” (1Jo 4,19). “Uma vontade sem humildade”, embora fale de Deus com
belos discursos, “só confia
nas suas próprias forças e sente-se superior aos outros por cumprir
determinadas normas ou por ser irredutivelmente fiel” a um certo estilo
católico.
Face a este panorama, há que recordar “O resumo da
Lei”: Paulo diz que o que conta
verdadeiramente é “a fé que atua pelo amor” (Gl 5,6). Somos chamados a cuidar solicitamente da caridade:
“Quem ama o próximo cumpre plenamente a
Lei. (...) Assim, é no amor que está o pleno cumprimento da lei” (Rm 13,8.10). “É que
toda a Lei se resume neste único preceito: “Ama o teu próximo como a ti mesmo”
(Gl 5,14).
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O capítulo III – “À Luz do Mestre” frisa que, em vez das múltiplas teorias e explicações, importa atentar
na simplicidade das palavras de Jesus e acolher o seu modo de transmitir
a verdade. Jesus explicou, com toda a simplicidade, o que é ser santo; fê-lo
quando nos deixou as bem-aventuranças (cf Mt 5,3-12; Lc 6,20-23) – o bilhete de identidade do cristão. Nelas está
delineado o rosto do Mestre, que somos chamados a deixar transparecer no
quotidiano da vida.
E “A grande regra de comportamento” vem no capítulo 25 do Evangelho de Mateus (vv. 31-46). Jesus detém-se numa das bem-aventuranças: a que
proclama felizes os misericordiosos. Se andamos à procura da santidade que
agrada a Deus, neste texto encontramos precisamente uma regra de comportamento
com base na qual seremos julgados:
“Tive fome e destes-Me de comer, tive sede e
destes-Me de beber, era peregrino e recolhestes-Me, estava nu e destes-Me que
vestir, adoeci e visitastes-Me, estive na prisão e fostes ter comigo” (25,
35-36).
Estaremos disponíveis para
as obras de misericórdia “Por
fidelidade ao Mestre”. No apelo a reconhecê-Lo nos pobres
e atribulados, “revela-se o próprio coração de Cristo, os seus sentimentos e as
suas opções mais profundas, com os quais se procura configurar todo o santo”.
Ele deixou-nos
claro que a santidade não se pode compreender nem viver prescindindo destas
suas exigências, porque a misericórdia é o “coração pulsante do Evangelho”.
Recorde-se
que, sendo muito importante a oração e a Liturgia, “O culto que mais Lhe
agrada” (a Deus) são as obras de misericórdia para
com o próximo, como ensina São Tomás de Aquino:
“Não praticamos o culto a Deus com
sacrifícios e com ofertas exteriores para proveito d’Ele, mas para benefício
nosso e do próximo: de facto, Ele não precisa dos nossos sacrifícios, mas quer
que Lhos ofereçamos para nossa devoção e para utilidade do próximo. Por isso, a
misericórdia, pela qual socorremos as carências alheias, ao favorecer mais
diretamente a utilidade do próximo, é o sacrifício que mais
Lhe agrada.”.
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No quadro da
santidade, as bem-aventuranças e Mateus 25, 31-46 relevam alguns traços
espirituais indispensáveis para compreendermos o estilo de vida a que o Senhor
nos chama. Para lá dos meios de santificação conhecidos – os diferentes métodos
de oração, os sacramentos inestimáveis da Eucaristia e da Reconciliação, a
oferta de sacrifícios, as várias formas de devoção, a direção espiritual e
muitos outros –, Francisco fixa-se nalguns aspetos do chamamento à santidade,
que tenham “uma ressonância especial”.
“Suportação, paciência e mansidão”. Permanecendo centrado, firme em Deus que ama e
sustenta, é possível o cristão aguentar, suportar as contrariedades, as
vicissitudes da vida e também as agressões dos outros, as suas infidelidades e
defeitos: se Deus está por nós, quem pode estar contra nós?” (Rm 8,31).
“Alegria e sentido de humor”. O santo é
capaz de viver com alegria e sentido de humor. Sem perder o realismo, ilumina
os outros com um espírito positivo e rico de esperança. Ser cristão é “alegria
no Espírito Santo” (Rm 14,17), porque, “do amor de caridade, segue-se
necessariamente a alegria. Os profetas anunciavam o tempo de Jesus como uma
revelação da alegria (cf Is 12,6).
“Ousadia e ardor”. A santidade é ousadia, é impulso
evangelizador que deixa uma marca neste mundo. Para isso ser possível, o
próprio Jesus vem ao nosso encontro, repetindo-nos com serenidade e firmeza:
“não temais!” (Mc 6,50). “Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos”
(Mt 28,20).
“Em comunidade”. É muito difícil lutar contra a
própria concupiscência e contra as ciladas e tentações do demónio e do mundo
egoísta, se estivermos isolados. A sedução com que nos bombardeiam é tal que,
se estivermos demasiado sozinhos, facilmente perdemos o sentido da realidade, a
clareza interior, e sucumbimos. Assim, a santificação é um caminho comunitário,
que se deve fazer dois a dois. Em várias ocasiões, a Igreja canonizou
comunidades inteiras, que viveram heroicamente o Evangelho ou ofereceram a Deus
a vida de todos os seus membros. E o Papa dá vários exemplos.
“Em oração constante”. Por fim, anote-se que “a santidade
é feita de abertura habitual à transcendência, que se expressa na oração e na
adoração. O santo é uma pessoa com espírito orante, que tem necessidade de
comunicar com Deus. É alguém que não suporta asfixiar-se na imanência fechada
deste mundo e, no meio dos seus esforços e serviços, suspira por Deus, sai de
si erguendo louvores e alarga os seus confins na contemplação do Senhor.
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O capítulo V – “Luta, Vigilância e
Discernimento” acentua que a vida
cristã é luta permanente que “requer força e coragem para resistir às tentações
do demónio e anunciar o Evangelho” – luta magnífica, que leva a cantar vitória
sempre que o Senhor triunfa na nossa vida.
“A luta e a vigilância” não dizem respeito só ao mundo e à
mentalidade mundana, ou só à própria fragilidade e inclinações, mas também ao
demónio, o príncipe do mal. Jesus celebra as nossas vitórias. Alegrava-Se
quando os seus discípulos conseguiam fazer avançar o anúncio do Evangelho, superando
a oposição do Maligno (cf Lc 10,18). A existência do príncipe das trevas é “Algo
mais do que um mito”.
Por tudo, os cristãos devem
estar “Despertos e confiantes”, resistindo iluminados pela Palavra e fortalecidos pela oração e
sacramentos e atacando todos os focos que aninhem “A
corrupção espiritual”. Por outro
lado, é importante invocar o Espírito Santo e apurar a consciência com vista à
consecução d’ “O discernimento”, para saber distinguir e eleger o que vem de Deus.
É “Uma necessidade imperiosa” esta capacitação e o seu
exercício dever feito “Sempre à luz do
Senhor”. O discernimento dos sinais é “Um
dom sobrenatural”, que não exclui as sabedorias humanas, mas que deve
ser obtido na disponibilidade para o Alto, “Fala, Senhor!”, como pedia
Samuel, que o teu servo escuta.
Embora, seja importante o contributo e disponibilidade da pessoa, a
santidade e o discernimento dos sinais da vontade de Deus, que a enforma,
cruzam-se na “Lógica do dom e da cruz”.
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“Gozar a vida” como
nos convida a fazer o “consumismo
hedonista” é o oposto do desejar dar glórias a Deus, que pede para nos
“gastarmos” nas obras de misericórdia (cf GE 107-108). O caminho da santidade é
vivido como caminho “em comunidade” e
“em constante oração”, que chega à
“contemplação”, não entendida como “evasão que nega o mundo que nos rodeia” (cf
GE 147-152).
2018.04.09 –
Louro de Carvalho
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