Primeiro, A
SIC e, logo a seguir a CMTV, procederam, em dias consecutivos em horário nobre,
à divulgação televisiva de vídeos de interrogatórios (diálogos e imagens) no âmbito do processo Operação
Marquês, pelo que o MP (Ministério
Público) anunciou, no
dia 17, a abertura de um inquérito para investigar sucedido.
A este
propósito, a Procuradora-Geral da República declarou, no dia 18, ter ficado desagradada
com a divulgação televisiva destes vídeos do processo em que o MP acusa, entre
outros, o antigo Primeiro-Ministro José Sócrates. Assim, à margem de um
seminário sobre maus tratos de crianças em Leiria, a Dra. Joana Marques Vidal afirmou
aos jornalistas:
“O Ministério
Público e a Procuradora-Geral ficam sempre desagradados quando veem
factos que constituem a prática de um crime”.
E o MP referiu,
numa resposta à agência Lusa:
“Embora o processo em causa já não se
encontre em segredo de justiça, a divulgação destes registos está proibida nos
termos do art.º 88.º n.º 2 do Código de Processo Penal, incorrendo, quem assim
proceder, num crime de desobediência (artigo 348.º do Código Penal)”.
Interpelada sobre
o que está realmente a falhar quando são recorrentes a violação do segredo de
justiça e a divulgação de peças processuais, Joana Marques Vidal declarou que
todos, enquanto cidadãos, magistrados, jornalistas, elementos titulares de
cargos públicos e políticos, advogados, membros de órgãos de polícia criminal,
têm “obrigação de cumprir a lei”. E
continuou:
“Esta questão de violação da lei, quer
relativamente à violação do segredo de justiça, quer, neste caso, a uma
violação que leva a um crime de desobediência, é uma responsabilidade de todos
nós e isso é que eu penso que é necessário nós interiorizarmos”.
Vincando que
esta é uma questão “de toda a sociedade, principalmente dos responsáveis, dos
intervenientes da área”, e não apenas da responsabilidade do MP, a Procuradora-Geral
insistiu que “isto é necessário que seja interiorizado por todos” e frisou que
esta não é apenas uma questão criminal, mas também “ética e deontológica de todos
os profissionais”. À questão colocada sobre eventuais novas medidas nesta
matéria, Joana Marques Vidal voltou a defender uma reflexão, explicitando:
“Nós temos um modelo de reação penal que
está previsto na lei relativamente à questão da violação do segredo de justiça
e respetiva sanção. Há outros países que têm outros modelos. Isto tem de ser um
debate que tem de ser efetuado por todos para realmente depois haver uma opção.
A opção político-institucional é feita pelos representantes do povo na
Assembleia da República [….] O que eu apelo é que haja uma reflexão séria,
serena, sobre os modelos existentes nos outros países e sobre aquilo que nós em
Portugal pretendemos relativamente a esta questão.”.
Por seu
turno, a Ministra da Justiça frisou que a divulgação de imagens de
interrogatórios “constituem crime” e o MP tomará “as iniciativas necessárias”
para “reprimir a ilegalidade”.
Francisca
Van Dunem declarou aos jornalistas, à margem da cerimónia de inauguração da
exposição comemorativa dos 150 Anos da Abolição da Pena de Morte em Portugal:
“Aquilo que está em causa é uma divulgação não autorizada de peças de um
processo e, portanto, isso constitui crime e estou segura de que o Ministério
Público tomará as iniciativas necessárias para reprimir a ilegalidade, neste
caso tal como faz em outras questões de matéria criminal”.
Porém, a Presidente
do CD (Conselho
Deontológico) do
Sindicato dos Jornalistas defende, em declarações ao Público, as reportagens que divulgaram imagens e diálogos dos
interrogatórios a Sócrates e a outros arguidos e testemunhas no processo
Marquês e dos inquéritos do universo GES, dada a sua legitimidade do ponto de
vista jornalístico.
São José Almeida justifica o seu posicionamento nesta matéria:
“As gravações [dos interrogatórios] são
oficiais e chegaram à mão dos jornalistas. Ainda que haja aspetos que possam
suscitar dúvidas por assumirem contornos que raiam o voyeurismo,
é inegável que as reportagens divulgaram aspetos do processo de relevante
interesse público e são, por isso, legítimas.”.
Frisando
que toma esta posição não como “presidente do CD, mas a título pessoal”, refere
que o CD não tomou posição sobre esta matéria “porque não foi a primeira vez
que esta situação aconteceu”. Lembra as audições no processo dos Vistos Gold,
em que foram mostradas pela CMTV imagens das audições a Miguel Macedo, antigo Ministro
da Administração Interna, e de Manuel Palos, antigo diretor do Serviço de
Estrangeiros e Fronteiras. E acrescenta:
“É importante que este debate se faça, mas a
obrigação e o compromisso dos jornalistas é com o público e com a sociedade. E
têm o dever de revelar informações verídicas como as que foram mostradas.”.
A
jornalista, sustentando que informações como as que foram divulgadas são “de
relevante interesse público”, declarou:
“No cumprimento da sua obrigação e
compromisso com a sociedade o dever de informar sobrepõem-se sempre para os
jornalistas aos direitos de imagem e até a leis como a do segredo de justiça,
que nem é o caso nesta situação”.
Por sua
vez, Sócrates anunciou que vai constituir-se assistente no inquérito
aberto pelo MP por causa da divulgação, pela SIC e pela CMTV, dos vídeos dos
interrogatórios dos arguidos da Operação Marquês.
***
Recorde-se
que o inquérito Operação Marquês culminou
na acusação a 28 arguidos – 18 pessoas e 9 empresas – e está relacionado com a
prática de quase duas centenas de crimes de natureza económico-financeira. José
Sócrates, que chegou a estar preso preventivamente durante dez meses e depois
em prisão domiciliária, está acusado de três crimes de corrupção passiva de
titular de cargo político, 16 de branqueamento de capitais, 9 de falsificação
de documentos e 3 de fraude fiscal qualificada. Entre outros pontos, a acusação
sustenta que Sócrates recebera cerca de 34 milhões de euros, entre 2006 e 2015,
a troco de favorecimentos a interesses do ex-banqueiro Ricardo Salgado no GES (Grupo Espírito Santo) e na PT, bem como por garantir a
concessão de financiamento da CGD (Caixa Geral de Depósitos) ao empreendimento Vale do Lobo, no Algarve, e por favorecer
negócios do Grupo Lena.
Além de
Sócrates, estão acusados o empresário Carlos Santos Silva, amigo de longa data
e alegado testa de ferro do antigo líder do PS, o antigo presidente do BES
Ricardo Salgado, os antigos administradores da PT Henrique Granadeiro e Zeinal
Bava e o antigo ministro e antigo administrador da CGD Armando Vara, entre
outros.
A acusação
deduziu também um pedido de indemnização cível a favor do Estado de 58 milhões
de euros a pagar por José Sócrates, Ricardo Salgado, Carlos Santos Silva,
Armando Vara, Henrique Granadeiro e Zeinal Bava e outros acusados.
***
Como diz São José Almeida, os
factos não são novos. Além disso, houve larga divulgação de factos, conteúdos
badalados, diálogos ocorridos em interrogatórios judiciais e algumas imagens e
som quando o processo estava em segredo de justiça, cuja violação é crime e “vincula todos os sujeitos e participantes processuais, bem
como as pessoas que, por qualquer título, tiverem tomado contacto com o
processo ou conhecimento de elementos a ele pertencentes, e implica as
proibições” de “assistência à
prática ou tomada de conhecimento do conteúdo de ato processual a que não
tenham o direito ou o dever de assistir”; e “divulgação da ocorrência de ato processual ou dos seus termos, independentemente
do motivo que presidir a tal divulgação” (vd
n.º 8 art.º 86.º do CPP). Porém, apesar de a Defesa se lamentar publicamente de
tais atos de divulgação e de se queixar de não ter acesso a peças do processo,
nunca se viu a Procuradora-Geral a declarar o seu desagrado de sempre “quando vê factos que constituem a prática de um crime”. E o MP, após tantas críticas,
lá abriu um inquérito de que nada resultou.
Ora,
a opinião pública, que teve a oportunidade de condenar publicamente o antigo Primeiro-Ministro
e outros suspeitos, graças à divulgação indevida de dados processuais e ao
espetáculo a que se tem prestado a justiça, facilmente se desvinculou da
presunção de inocência até decisão condenatória transitada em julgado, que,
isso sim, continua a obrigar os operadores judiciários.
Agora, as autoridades judiciárias levantam o brado. Mas, se
estamos neste momento perante o crime de desobediência face ao art.º 348.º do
CP, no âmbito “dos crimes contra a autoridade pública”, também na ocasião estávamos
perante um ilícito a contrariar o art.º 86.º do CPP. Mais. Apesar de o segredo
de justiça não impedir “a prestação de esclarecimentos públicos pela autoridade
judiciária, quando forem necessários ao restabelecimento da verdade e não
prejudicarem a investigação, a pedido de pessoas publicamente postas em causa”
ou “para garantir a segurança de pessoas e bens ou a tranquilidade pública”
(vd n.º 13 do art.º 86.º do CPP), as autoridades judiciárias
deixaram a opinião pública a navegar em águas turvas, não vindo estabelecer o
equilíbrio público e repor a verdade. Colhíamos a informação passada à
Comunicação Social por alguém de entre os poucos conhecedores do processo e assistíamos
aos desmentidos e à indignação, por vezes veemente, dos arguidos.
***
É verdade que o jornalista tem de honrar o compromisso com
a sociedade, mas este dever de informar não se sobrepõe em absoluto “aos direitos de
imagem e até a leis como a do segredo de justiça”. A este respeito, recordemos
alguns pontos do Código Deontológico dos Jornalistas.
Se é certo que “o jornalista deve lutar contra as
restrições no acesso às fontes de informação e as tentativas de limitar a
liberdade de expressão e o direito de informar” e que é sua obrigação “divulgar
as ofensas a estes direitos” (vd n.º 3), também o é que “deve
salvaguardar a presunção de inocência dos arguidos até a sentença transitar em
julgado” (vd n.º 8).
b) na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a
correspondente cominação”.
E
convenhamos que é muito difícil conseguir o equilíbrio no cumprimento destes
dois pontos:
“O jornalista
deve utilizar meios leais para obter informações, imagens ou documentos e
proibir-se de abusar da boa-fé de quem quer que seja” (vd n.º 4). “O
jornalista deve respeitar a privacidade dos cidadãos exceto quando estiver em
causa o interesse público ou a conduta do indivíduo contradiga, manifestamente,
valores e princípios que publicamente defende. O jornalista obriga-se, antes de
recolher declarações e imagens, a atender às condições de serenidade,
liberdade, dignidade e responsabilidade das pessoas envolvidas.”. (vd
n.º 10).
Por
isso, em caso de dúvida e estando em causa o interesse jornalístico, o
jornalista deverá solicitar a autorização prevista no n.º 2 do art.º 88.º do
CPP (vd
infra o sublinhado).
Efetivamente, “é permitida aos órgãos de
comunicação social, dentro dos limites da lei, a narração circunstanciada do
teor de atos processuais que se não encontrem cobertos por segredo de justiça
ou a cujo decurso for permitida a assistência do público em geral” (art.º 88.º/1). Mas não é autorizada (“sob
pena de desobediência simples”) “a transmissão ou registo de imagens ou de tomadas de som
relativas à prática de qualquer ato processual, nomeadamente da audiência, salvo
se a autoridade judiciária […], por despacho, a autorizar”, não podendo
ser autorizada a transmissão ou registo de imagens ou tomada de som relativas a
pessoa que a tal se opuser” (vd art.º 88.º/2,
alínea b).
De resto, todos estão sujeitos ao estipulado no art.º 348.º/1
do CP: “Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos,
regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é
punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: a)
uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
***
Porém, o
caso da divulgação dos vídeos não pode desprender-se do desígnio de algumas
forças influentes e indispostas no país. Seja o MP, sejam grupos económicos,
sejam grupos políticos a querer marcar a agenda política do país – e a justiça
não fica de fora, por mais que digam o contrário, tal como não está imune de desvios,
influências e corrupção (o que temos é um sistema blindado ou dificilmente
escrutinável do exterior) – o ano
que se aproxima é marcado por eleições gerais e europeias. Temos um partido no
poder, acompanhado por um periclitante consórcio e mão estendida à direita dita
culta. Se calhar, interessa alguém abanar a árvore. Por outro lado, o partido
dito do poder esconde rabos de palha em legalidade e ética por parte de alguns
militantes e dirigentes… E estaria tudo dito, se quem está de fora estivesse
imune a este tipo de factos.
Em 44 anos
de democracia, a situação geral do país obviamente melhorou, mas está longe do
sucesso possível e desejável; íamos sucumbindo a uma crise planetária e global.
A nível interno, por uma razão ou por outra, todos os que passaram por São
Bento são responsáveis, pois, contribuíram com a sua pá de terra para o enterro
do país, que sobrevive apesar de tudo.
No entanto,
um determinado “senhor”, em 2008, pôs-se a jeito e continuou publicamente ou no
subterrâneo a arranjar-se a si e a outrem e houve que o eleger como o bode
expiatório por quantos males passa a nossa democracia. Os juízes das liberdades
e garantias parecem ter-se colocado sistematicamente do lado da acusação, o que
levou Mário Soares a uma pública tirada dramática. É verdade que vieram à tona
outros, mas muitos já estão esquecidos e outros não apareceram. Que é deles?
Não é crível que leis, regulamentos, atos administrativos, projetos, obras,
despesas, favores, desvios… não tenham também a chancela de ministros,
secretários de Estado, deputados, gestores, assessores! Não é lícito que um,
dois ou três paguem por todos.
E que fará a
justiça – eficaz, célere e total – depois de tudo isto? Ficar-nos-emos com a justiça
feita pela opinião pública?
2018.04.24 –
Louro de Carvalho
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