O teólogo
espanhol Juan Arias publicou, no passado dia 31 de março, um curioso artigo no jornal
El País a explicar o motivo por que
os primeiros cristãos não gostavam da imagem de Jesus crucificado, o que trouxe
para o debate a questão de saber qual seria a verdadeira “face” de Cristo, com
a emissora BBC a tentar uma reconstituição da figura de Jesus como um homem
baixinho, com feições mais africanas que semíticas, contrariando a ideia que as
tradições assaram de um homem bem constituído e com cerca de 1,90 m de altura.
A histórica representação das primeiras imagens do Crucificado
era ofensiva. Chamado de “grafito de Alexámenos”, o desenho esculpido em
gesso numa parede (datado
de entre os séculos I e III), figura um homem com cabeça de burro numa cruz, com a inscrição:
“Alexámenos adora o seu deus”. Acredita-se que este era um modo de caçoar
da fé dos cristãos na época, como esse identificado como
Alexámenos. A figura hoje está no Museu
Antiquarium Palatino de Roma.
Como refere Juan Arias, nas catacumbas romanas,
Cristo aparece na imagem do Bom Pastor ou a celebrar a Última Ceia com os
apóstolos, nunca morto. Isto pode remeter para a convicção de que os primeiros
cristãos não gostavam da imagem de Jesus crucificado.
A imagem
de Jesus crucificado só começou a ser venerada séculos depois da Sua morte,
com o Concílio de Niceia, no ano 325, a autorizar oficialmente a imagem do
Crucifixo tal como o usamos hoje. Os crentes em Jesus dos primeiros séculos tentavam
não mostrar nem ad intra nem ad extra a imagem que lhes recordava a
morte atroz que os romanos infligiam aos grandes criminosos e escravos. A homens
livres, em caso de crime, aplicava-se outro tipo de suplício, nomeadamente a decapitação.
A crucifixão era infligida a escravos ou a homens desnudados do estatuto de
cidadãos. E, desde que Paulo de Tarso declarou que “Se Cristo não ressuscitou [...]
é vã a nossa fé” (1 Cor 15,14),
interessava mais aos cristãos o Jesus ressuscitado que o sacrificado num
madeiro como um assassino e entre dois salteadores. Daí que, nos primeiros
séculos do cristianismo, não existissem pinturas nem esculturas de Jesus
crucificado, só um Cristo glorioso.
Nas catacumbas romanas, tanto nas de Santa Priscila
como nas de São Calixto, onde se ocultavam os cristãos para fugir da
perseguição romana, não há pinturas de Jesus na cruz. O líder dos discípulos
aparece ou na imagem do Bom Pastor na celebração da Última Ceia com os
apóstolos ou, ainda, em criança nos braços de Sua mãe.
Lembra Juan Arias que, no Instituto Bíblico de Roma, o
jesuíta Follet, seu professor de idioma ugarítico, explicava essa ausência da
imagem do Crucifixo entre os primeiros cristãos, dizendo:
“Se o seu pai tivesse sido condenado à
cadeira elétrica ou à guilhotina, certamente, por mais inocente que tivesse
sido, vós não transportaríeis no pescoço uma efígie desses instrumentos de morte”.
E Follet acrescentava:
“Ninguém conserva fotos dos seus familiares
ou amigos quando mortos, e sim vivos e felizes”.
Assim se compreende como isso era o que sucedia com os
cristãos: à recordação do crucificado preferiam a de Jesus em vida ou
glorificado depois da morte.
***
O sinal de identificação dos cristãos dos primeiros séculos
era o peixe. Além do motivo referido da relutância em apresentar o Crucificado
(o crucifixo
ou o crucificado é o Cristo pregado na cruz: a cruz sozinha ou o todo – cruz e
Cristo – só são crucifixo por metonímia ou por sinédoque), havia outro motivo.
Segundo os
relatórios recorrentemente publicados, o cristianismo foi e continua a ser
a religião mais perseguida do
planeta. Considerando que o próprio Cristo foi crucificado, é fácil imaginar
que os inícios da fé cristã não tenham sido fáceis. E não o foram: as
perseguições já eram frequentes e brutais nos três primeiros séculos do
cristianismo, quando a fé em Cristo precisava de ser vivida praticamente na
clandestinidade por grande parte dos conversos. Ora, mesmo num contexto tão
cruel, os cristãos tinham de saber
quem é que também professava esta fé.
Além de
tomar as devidas precauções, como informar-se sobre a outra pessoa previamente
sempre que possível, os primeiros cristãos utilizavam “códigos secretos” para confirmarem se estavam mesmo diante de um
irmão da mesma crença. Um desses códigos era o “Ichthys” ou “Ichthus” (ἰχθύς, em minúsculas; ΙΧΘΥΣ, em maiúsculas), termo que, em grego antigo, significava “peixe”.
A pronúncia correta dessa palavra grega não é fácil para quem fala português,
já que as letras χ (ch) e θ (th) não têm correspondência na nossa língua; no
entanto, para facilitar, é aceita a pronúncia simplificada “ictís”.
A hipótese
mais levantada é a de que o cristão, quando supunha estar diante de outro
cristão clandestino, desenhava uma
curva ou meia-lua no chão. Se o potencial interlocutor desenhasse outra
meia-lua justaposta à dele e em convergência com ela, completando assim a
figura de um peixe, seria muito maior a probabilidade de que se tratasse mesmo
de um seguidor de Jesus, pois conhecia o “código
secreto” cristão.
A razão da escolha do peixe é que as letras
que formam a palavra que significa “peixe” em grego, quando escritas em maiúsculas
(ΙΧΘΥΣ), formam um acrónimo com as iniciais da expressão “Iēsous Christos
Theou Yios Sōtēr“, que significa “Jesus
Cristo, Filho de Deus, Salvador” (em grego antigo: Ἰησοῦς
Χριστός, Θεοῦ ͑Υιός, Σωτήρ).
O peixe veio
a tornar-se, desta forma, um dos primeiros
símbolos cristãos, juntamente com a imagem do Bom Pastor e,
posteriormente, com o Crucifixo.
O Ichthys
também era usado para indicar as catacumbas
cristãs durante as perseguições contra a comunidade, de modo que
apenas os próprios cristãos soubessem quais eram os túmulos dos seus
companheiros de fé. Assim, o peixe, além
de código para se reconhecerem nos tempos de clandestinidade, o anagrama era
uma proclamação de fé!
***
Curiosamente foi um imperador romano, o pagão
Constantino, o Grande, quem introduziu a representação da cruz, mas sem o corpo
de Jesus. Foi quando aceitou o cristianismo, depois dum sonho junto à Ponte sobre
o Milvius, antes da batalha contra Magêncio, em que viu uma cruz e ouviu uma
voz que dizia: “Com este signo vencerás”
(“In Hoc
signo vinces”). O Império
Romano estava na fase de declínio, e o imperador percebeu a força dos cristãos
que se deixavam matar em vez de adorar os deuses pagãos. Constantino quis
conquistar aquela gente, e o cristianismo passou de açoitado a ser religião
tolerada, como todas as outras, com o édito de Milão, em 313 – tornou-se a religião
oficial do Império com o imperador Flávio Teodósio ou Teodósio I, o Grande (pelo édito
de Tessalónica, a 27 de fevereiro de 380). O imperador Constantino ganhou a batalha, converteu-se
ao cristianismo (embora tenha adiado o Batismo para a hora da morte), intitulou-se “bispo de fora”, para poder estar nos
concílios alegadamente para manter a ordem; e sacralizou-se o sinal da cruz,
que foi aceite como símbolo cristão pelo Concílio de Niceia no ano 325.
***
Mesmo assim, com Constantino e o Concílio de Niceia, tratava-se
apenas da cruz nua, sem o corpo de Cristo. Os primeiros crucifixos com o Jesus
agonizante ou morto aparecem só no século V, e com muitas polémicas. Os
cristãos continuavam com a preferência pela imagem de Jesus vivo ou
ressuscitado. Apenas na Idade Média, mais de mil anos depois da morte de Jesus,
apareceram as primeiras representações dos crucifixos com o corpo dele mostrando
os sinais de dor, sangrando pelas mãos, os pés e nas laterais.
A única pintura do crucifixo que aparece já no século
I, considerada como a “primeira blasfémia cristã”, como já ficou dito, é um
grafito numa parede de gesso em Roma, ridicularizando os cristãos e Jesus. O crucificado
aparece com a cabeça de asno e a inscrição: “Alexamenos, adorando o seu deus”.
Era uma zombaria com os primeiros cristãos, cujo deus os romanos haviam matado
como um criminoso comum.
Isso significava que, sob a influência da conversão de
Constantino, a Igreja começou a criar uma hierarquia rígida e a revestir-se com
os símbolos do poder mundano, em forte contraponto com o carisma dos
anacoretas, eremitas, estilitas e os cenobitas, bem como os mosteiros, mais
tarde. Na verdade, fez-se política e até drama com a crucificação para se
fomentar a teologia da cruz e do pecado, em detrimento da teologia da
ressurreição, da alegria e da esperança.
Consta que o rei dos Francos, Clóvis, se converteu ao
cristianismo com todos os seus homens. E, quando ouviu ler a Paixão de Cristo pela
primeira vez, terá exclamado: “Se eu lá
estivesse com os meus homens, isso não teria acontecido”. Ora, talvez
Cristo lhe dissesse o que disse a Pedro: “Afasta-te, Satanás! Tu
és para mim um estorvo, porque os teus pensamentos não são os de Deus, mas os
dos homens!” (Mt 16,22).
Lendo as
teses de Lutero, percebe-se que o reformador insiste na inabilidade do homem em
cumprir a lei de Deus. Por consequência, com a sua doutrina evangélica
inovadora, Lutero enfatiza o papel da graça de Deus como salvadora. O
teólogo da cruz prega o que parece tolo para o mundo (1Cor 1,18), prega que os humanos não podem, de
forma alguma, merecer a retidão (ou justiça), nada acrescentando à retidão da cruz, e que qualquer retidão concedida
à humanidade vem de “fora de nós” (“extra nos”). Em contraste, segundo Lutero, o
teólogo da glória prega que o homem tem o poder de fazer o bem que está dentro
de si (“quod in se est”), que restou, depois da queda original, alguma capacidade de
escolher o bem e que o homem não pode ser salvo sem cooperar com a retidão
concedida por Deus.
Para Lutero,
estas duas teologias partiam de pontos de partida radicalmente opostos: tinham
diferentes epistemologias sobre como as pessoas conheciam Deus e o mundo. Para
o teólogo da glória, a razão e os sentidos humanos devem ser aplicados para
aumentar o conhecimento sobre Deus e o mundo. Assim, se uma ação parece ser boa,
ela deve ser boa. Para o teólogo da cruz, é apenas através da autorrevelação de
Deus que as pessoas podem conhecer Deus e a sua relação com Ele; e a mais
perfeita autorrevelação de Deus é o Verbo de Deus encarnado, Jesus, o
Cristo. Assim, mesmo se uma ação parecer boa, ainda assim Cristo morreu na cruz
pelos pecados humanos e pela natureza pecaminosa do homem e, portanto, a ação
não é, só por si, tão boa como parece. No sermão de Lutero “Dois Tipos de Retidão” (ou “Justiça”), refere-se à teologia da cruz como
a “retidão estrangeira” e à teologia da glória como a “retidão propriamente
dita” (por sua origem na
perceção da pessoa que presume ter-se justificado por si próprio ou por suas
obras).
Por seu
turno, o parágrafo 2015 do Catecismo
da Igreja Católica (CIC) descreve o caminho da perfeição como passando pelo caminho da cruz:
“Não há santidade sem renúncia e
sem uma batalha espiritual. O progresso espiritual implica ascese e
mortificação que gradualmente levam à vida em paz e à alegria as
beatitudes.”.
Não podemos esquecer que São Paulo da Cruz fez voto de se consagrar a promover a memória da Paixão de
Jesus Cristo e fundou a congregação dos chamados Passionistas.
Por outro lado,
é de considerar que sem a cruz não teria havido a ressurreição. E o Cristo
ressuscitado, quando aparece aos discípulos mostra as chagas e o lugar dos
cravos e até desafia Tomé a meter os dedos nos sítios dos cravos e a mão no lado
(vd Jo 20,19-29). E Jesus, quando anunciava a Paixão, recorrentemente juntava
a morte e a ressurreição (vd Mc 8,31; 9,31;
10,33-34).
Por isso, os
cristãos devem aceitar tanto o Crucificado como o Ressuscitado: “Anunciamos, Senhor a Tua morte, proclamamos
a Tua Ressurreição, até que venhas”.
***
E, sabendo que Ele está no rosto dos pobres, doentes,
explorados e descartados, temos de ver a crucifixão nestes irmãos e nas agruras
que a vida nos traz a cada um e completar em nossa carne o que falta à Paixão
de Cristo (vd Cl, 1,14). Quando
alguém se levanta do pecado ou sai duma situação de injustiça ou desprezo,
cantaremos a ressurreição. E na celebração eucarística, celebramos, em festa e
piedade, a morte e ressurreição do senhor e a sua entrega no mistério do Pão e
do Vinho.
Para a Teologia da Libertação, por exemplo, a crucifixão
é o símbolo de todos os torturados e assassinados injustamente na história da
humanidade; e a ressurreição é a grande esperança de todos os excluídos. Esta
teologia, enraizada na América Latina, tentou ser um regresso ao cristianismo
primitivo, no qual se destacava a imagem do Bom Pastor em vez da do
crucificado. Entretanto, a Igreja, que até há pouco se revestia com os símbolos
do poder dos imperadores, preferiu inculcar a teologia do medo do inferno. A mudança
começou, em termos mentais, com João XXIII, acentuou-se com Paulo VI e
revigorou-se agora com o Papa Francisco.
Juan Arias assegura que “a Igreja do poder nunca se
incomodou com o Jesus morto”. Ao invés, temeu mais o Jesus vivo e encarnado,
solidário com essa parte da humanidade que, como nos tempos do profeta
crucificado, sempre acaba abandonada à sua própria sorte.
Aceitemos
e professemos o Cristo morto que ressuscitou e o Cristo ressuscitado que morreu
na cruz – o Cristo total. Apreciemos a cruz como instrumento e sinal de salvação,
derrotando a infâmia e a intriga, e a ressurreição de Cristo como consumação da
glorificação de Cristo, garantia da reconciliação com Deus, com os irmãos, connosco
próprios e com a criação e como rampa de lançamento para a nossa ressurreição.
2018.04.27 –
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário