A
diretiva que estabelece os meios para combate aos fogos era usualmente apresentada
antes do final de março. Este ano, nada se sabe. Obviamente, bombeiros e
peritos estão preocupados. Não, não é apenas a nova Lei Orgânica da Autoridade
Nacional da Proteção Civil (ANPC) que está com atraso, como admitiu o
Primeiro-Ministro no dia 4, no Parlamento.
Está com
atraso considerável também a diretiva operacional nacional, que é urgente por estabelecer
os meios que integram o DECIF (Dispositivo Especial de Combate a
Incêndios Florestais)
no respetivo ano.
A nova Lei
Orgânica alegadamente não interfere com a atividade do verão e meses seguintes,
mas o atraso da diretiva pode ser grave já que determina os meios e o modo de atuação
no combate aos fogos florestais. A este respeito, o gabinete do Ministro da
Administração Interna revelou ao Público que a diretiva “estará pronta nas próximas semanas”, mas sem especificar uma data
qualquer.
Entretanto,
Eduardo Cabrita, no passado dia 4, durante a interpelação do CDS ao Governo
sobre a “preparação da próxima época de incêndios” e os atrasos na contratação
das aeronaves, cujos valores e condições dos concursos dividem Executivo e
empresas, declarou:
“Enfrentamos aquilo que são os problemas reais com respostas efetivas.
Face à dimensão do problema, Portugal está mais preparado do que alguma vez
esteve para enfrentar este problema.”.
No dia
5, o Primeiro-Ministro deslocou-se ao Parlamento para o debate quinzenal.
Questionado ali pelo PSD sobre a nova Lei Orgânica da ANPC, afirmou:
“Aquilo que prevemos é que, no próximo mês, a Lei Orgânica da ANPC e do
Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas possa ser aprovada em
Conselho de Ministros”.
Ora, a 9
de novembro de 2017, aquando da posse do novo presidente da ANPC,
tenente-general Mourato Nunes, o Ministro marcou-lhe até março de 2018 “o
desafio” de apresentar “um novo modelo para” a ANPC, ser “necessária uma nova orgânica para esta nova missão da ANPC”.
Agora,
interpelado pelos jornalistas sobre os atrasos na aprovação da nova lei
orgânica, aduziu inexplicavelmente que os novos quadros legais da ANPC, do ICNF
(Instituto
da Conservação da Natureza e das Florestas)
e da AGIF (Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais) “não vão ter nenhuma influência
nos próximos meses”, argumentando que as novas leis orgânicas são “para o
futuro, para vigorar em 2019” e que, portanto, “não vão desestabilizar a estrutura”.
Obviamente
que não se pode estar mais em desacordo. As preditas novas leis orgânicas
resultam da verificação da inadequação de meios, de descoordenações, de falhas
e lacunas, de sobreposições e insuficiências e de indevidas interferências entre
intervenientes e grupos. Por isso, deviam ter sido atempadamente estudadas as
matérias em causa e apresentadas as propostas de lei ou projetos de decreto-lei
para discussão pública e aprovação final em tempo útil. Dizer que são para
futuro é a tautologia de sempre porquanto, em princípio, leges non respiciunt retro nisi aliud expresse caveatur.
***
Ainda
não se sabe quando será conhecida a Diretiva Operacional Nacional n.º 2, que
estabelece os meios que integram o DECIF – nos últimos anos apresentada antes
do final de março. E já lá vão sete dias. Ora, isto não pode deixar impávidos e
serenos bombeiros e especialistas. Ao invés, como refere o Público de hoje, dizem-se “preocupados” e “apreensivos” com estes
atrasos, especialmente com a diretiva.
Fernando
Curto, presidente da ANBP (Associação Nacional de Bombeiros
Profissionais),
afirma que estão todos “muito preocupados”, pois está “tudo parado devido a
estes atrasos”. E, tendo em conta que “o tempo urge e falta saber quase tudo”,
lembra que, depois de conhecidos os diversos documentos, “eles ainda vão ter de
passar por um período de consultas, de propostas de alteração e aprovação, o
que pode levar a novos atrasos”. Mais, referindo-se às atuais condições
atmosféricas, avisa que “estamos em abril, mês de águas mil, e está a chover,
mas o tempo pode mudar a qualquer altura”, sendo esta “uma situação muito
delicada”.
Na
verdade, esta advertência é pertinente, quer em relação à metodologia da
legística, que é de si muito morosa para que a lei tenha o mínimo de qualidade
e de participação democrática, quer no atinente à putativa mudança das
condições climatéricas – sendo de recordar que uma das causas (que
não a principal) do
desastre de outubro passado foi a previsão da aproximação de chuvas, que induziu
queimadas cujo controlo poderia ter sido secundado pela precipitação, que
afinal chegou com atraso e com muito vento.
Por sua
vez, Jaime Marta Soares, presidente da LBP (Liga dos Bombeiros
Portugueses), também
se diz “preocupado com os atrasos”. E, nesse tom profético que se tenta a
utilizar para advertir, diz que “se tivermos mais um ano difícil, e tudo indica
que vamos ter (e é neste segmento do “tudo indica que vamos ter”
que reside o seu tom profético),
devido às alterações climáticas, estes atrasos podem vir a revelar-se muito
complicados”. O presidente da LBP sustenta que “com tudo o que devia ser
conhecido até 30 de março, e não foi, cria-se uma situação em que já começa a
ser tarde para preparar tudo como deve ser”. E vai mais adiante. Até o que foi
publicado o não satisfaz.
Que
pretenda tudo perfeito, concordo, mas não na acusação ao Governo de não ter
acolhido “as propostas feitas pela LBP” ou que acolhera “aquelas que corrigiam
erros primários”, mas não pagaram direitos de autor, mas as restantes não foram
acolhidas”. Valha-nos Deus. Quantos não ficarão ofendidos por os seus nomes não
figurarem nos normativos ou por não serem acolhidas todas as suas propostas.
Também me cabe queixar por experiência própria, não?
Pois o
rico não gostou da publicação, no dia 3, do documento publicado em Diário da
República com a revisão do SGO (Sistema de Gestão de Operações), que define as funções,
responsabilidades e níveis de decisão. E admite que as corporações de bombeiros
voluntários podem, “face ao desconhecimento de como vai ser feita a próxima época
de combate a incêndios florestais”, vir a “recusar responder às atividades
dependentes da ANPC”. E, escudado na reunião dos dirigentes da LBP para o balanço
das negociações com o Governo sobre o DECIF, que julgam “estar aquém do
esperado”, especificou:
“Estarão dispostos para responder às populações, já à ANPC vamos ver”.
Abstrusa
distinção entre resposta às populações e resposta à ANPC!
***
Não
obstante, Domingos Xavier Viegas, coordenador do CEIF (Centro
de Estudos sobre Incêndios Florestais)
da FCT-UC (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade
de Coimbra) e autor
dum relatório sobre o incêndio de Pedrógão Grande, desvaloriza o atraso da nova
Lei Orgânica da ANPC, sustentando que “o atual dispositivo [da ANPC] existe, é
sólido e mantém-se em vigor”. Porém, não deixa, de manifestar “alguma
apreensão” pelo atraso da diretiva operacional nacional, que “causa alguma
indefinição”.
Entretanto,
mostra-se “confiante de que vão ser conseguidos os meios necessários para
responder às situações que possam surgir”.
No mesmo
sentido ressalta a opinião de José Manuel Moura, antigo comandante operacional
da ANPC, afastado pelo Governo em 2016, que integrou a CTI (comissão
técnica independente)
na investigação dos incêndios de junho e outubro do ano passado. Sustenta a
este respeito:
“O atraso da nova Lei Orgânica da ANPC poderia ser relevante, se
houvesse alteração de pessoas na estrutura, o que parece que não vai acontecer.
Já o eventual atraso da Diretiva Operacional Nacional N.º 2, que habitualmente
é conhecida em março, pode ser mais complicado, porque é esta que vai definir
toda a estrutura.”.
E três
comandantes regionais que o Público
pretendeu ouvir, recusaram comentar os atrasos em virtude da sua situação
funcional, mas consideram que os documentos em causa são “importantes e
balizadores” de todo o sistema operacional.
***
Por seu
turno, para o presidente da CTI, João Guerreiro (antigo reitor e
professor catedrático da Universidade do Algarve), o “grande ensinamento” das tragédias de 2017 é o
de que o ataque inicial aos incêndios florestais é fundamental e será, no futuro,
particularmente decisivo. E, neste sentido, declarou ao Público:
“Nas condições meteorológicas que começam a afetar-nos com enorme
intensidade, os incêndios ou são atacados logo no seu início, ou é muito
difícil suprimi-los”.
E avisa
que, para o ataque inicial ter êxito, há que juntar conhecimento e meios.
Assim, sugere:
“Recorrer aos modelos de previsão atmosférica incorporando conhecimento
atualizado e garantir forças e meios capazes de, rapidamente, conseguirem
extinguir as ignições, tenham elas a origem que tiverem”.
Ou seja,
há que fazer “maior integração entre a investigação e a previsão com a
componente operacional” e, em simultâneo, promover “uma maior qualificação e
profissionalização das forças operacionais”.
Em
resposta escrita a um conjunto de perguntas do Público, Guerreiro recorda algumas das principais conclusões dos
dois relatórios da CTI, que resume em três ordens de questões: “a ausência de prevenção estrutural contra
incêndios, por falta de estratégia, nas últimas décadas, para compensar o
abandono do mundo rural e de medidas para a gestão da floresta; as alterações
climáticas e o aparecimento de fenómenos atmosféricos extremos; e o modelo de
combate aos incêndios florestais”. Em sua opinião, o modelo em vigor no ano
passado era “pouco qualificado e com enorme dificuldade de coordenação”, além
de estar “desfasado das duas primeiras questões e estruturado de forma muito
segmentada”.
A CTI
enfatizou a falta de prevenção nos dias das tragédias, até porque o IPMA (Instituto
Português do Mar e da Atmosfera)
alertara para o risco extremo das condições meteorológicas em algumas zonas,
que terão sido negligenciados. E Guerreiro insiste nesse ponto:
“Se se tivessem utilizado as capacidades técnicas e científicas para
antever o que se iria passar, é provável que os efeitos não tivessem sido tão
devastadores”.
Contudo,
Guerreiro prefere frisar o objetivo dos trabalhos da CTI de superação dos erros
do passado e de identificação do que, no futuro, deve ser feito, do que deve
ser evitado ou ser objeto de “alteração profunda do nosso sistema de Proteção
Civil”. E, face a quanto já foi anunciado pelo Governo e embora saliente a
escassez de informação sobre o que está a ser preparado para o verão deste ano,
sublinha pela positiva “a criação da Agência para a Gestão Integrada dos Fogos
Rurais, a aprovação da diretiva única, a contratação de coordenadores e de
peritos da agência (em curso), [e] o reforço do corpo especial da GNR”. Elogia
“a mobilização geral em torno da redução dos combustíveis vegetais e das
preocupações quanto às medidas de autoproteção” das populações, mesmo sabendo
que “há problemas estruturais que não se resolvem de um ano para o outro”. Sublinhando
que o problema resultante da inexistência duma “cultura de afirmação da
importância da floresta” e, nos últimos anos, do “alheamento das políticas públicas
destas realidades”, não ficará resolvido “a curto prazo”, diz que o importante
é que “se adotem iniciativas”, “se tomem decisões e “se avance solidamente
nessa direção”.
Enfim,
para Guerreiro, o novo modelo “parece teoricamente acertado”. Porém, “como em
tudo, depende sobretudo da melhor ‘mistura’ da qualificação das pessoas, da
disponibilidade do conhecimento, da convergência institucional, da mobilização
social e da criação duma cultura favorável ao reconhecimento efetivo das
funções diversificadas (económicas, sociais e ambientais) proporcionadas pela floresta.
(cf textos de
Luciano Alvarez e Leonete Botelho, in Público,
2018.04.07, pgs 6-7; e cf Correio da Manhã
on line, de hoje)
***
No meio
de atrasos e contradições, há, de facto, que apurar o sentido crítico, manter a
cabeça fria, mas não extremar posições e, sobretudo, acalentar e semear alguma
esperança conjugada com o sentido da realidade!
2018.04.07 –
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário