O Presidente da República (PR) vetou o diploma
da Assembleia da República sobre técnicos responsáveis por projetos. Menos de 24 horas depois de a ter
recebido para promulgação, o Chefe de Estado vetou ontem a lei que permitia a
alguns engenheiros assinarem projetos de arquitetura, por considerar que o
Parlamento transformou em definitivo um regime transitório e que, com isso,
“deturpou o largo consenso” obtido com as partes interessadas anteriormente. Em
declarações aos jornalistas na Maia, disse não ver “nenhuma razão” para se prolongar a possibilidade de os engenheiros
civis assinarem projetos de arquitetura, face ao número e à qualidade de arquitetos
que o país tem atualmente.
A justificar
a sua posição política, o PR enviou ao Presidente da Assembleia da República
mensagem em que seguinte refere:
O Decreto da
Assembleia da República n.º 196/XIII, de 3 de abril de 2018, altera a Lei n.º
31/2009, de 3 de julho, que aprovou o regime jurídico da “qualificação
profissional exigível aos técnicos responsáveis pela elaboração e subscrição de
projetos, pela fiscalização de obra e pela direção de obra, revogando
legislação nomeadamente de 1973 e estabelecendo um regime transitório de 5 anos
para certos técnicos”. A Lei n.º 40/2015, de 1 de junho, permitiu aos referidos
técnicos a prossecução da sua atividade “transitoriamente por mais 3 anos”.
Ora, o
diploma aprovado na AR, “sem que se conheça facto novo que o justifique, vem
transformar em definitivo o referido regime transitório, aprovado em 2009
depois de uma negociação entre todas as partes envolvidas, e estendido em 2015,
assim questionando o largo consenso então obtido e constituindo um retrocesso
em relação àquela negociação, alterando fundamentalmente uma transição no tempo
para uma permanência da exceção, nascida antes do 25 de abril de 1974”.
O referido
Decreto, que não chega a ser Lei em virtude do veto presidencial, procedia
“à segunda alteração da Lei n.º 31/2009, de 3 de julho, que aprova o regime
jurídico que estabelece a qualificação profissional exigível aos técnicos
responsáveis pela elaboração e subscrição de projetos, pela fiscalização de
obra e pela direção de obra, que não esteja sujeita a legislação especial, e os
deveres que lhes são aplicáveis, e à primeira alteração à Lei n.º 41/2015, de 3
de junho, que estabelece o regime jurídico aplicável ao exercício da atividade
da construção”.
Além de voltar a permitir que engenheiros civis e engenheiros
técnicos civis possam elaborar certos projetos de arquitetura, dirigir e
fiscalizar certas obras, também o permitiria, para obras de arquitetura de
nível inferior à categoria 4, aos agentes de engenharia e arquitetura e a construtores
civis diplomados, à letra do famoso Decreto n.º 73/73, de 28 de fevereiro.
***
O interesse corporativo vem-se manifestando e acaba por se impor de um dos lados.
Vejamos.
A 22 de fevereiro, os arquitetos lamentam decisão que permite a alguns
engenheiros civis assinarem projetos de arquitetura. Siza e Souto de Moura assinaram
petição contra o contestado Projeto de Lei já aprovado na especialidade e que
os profissionais do setor defendem ser “um monumento ao absurdo”.
A petição, lançada pela Ordem, foi remetida à Presidência da República,
confiando a Ordem na sensibilidade de Marcelo Rebelo de Sousa para que a
legislação possa ser revertida em plenário da Assembleia da República antes da
aprovação final.
A secção regional da Ordem dos Arquitetos (OASRN) lamentou a aprovação do Projeto de Lei 495/XIII/2.º, que permite a cerca de
4000 engenheiros civis assinarem projetos de arquitetura, prometendo utilizar
todos os meios à disposição para reverter o enorme erro legislativo.
Segundo a presidente da OASRN, é inadmissível que num país democrático
sejam atribuídas “qualificações por decreto”, afirmando que o dito grupo de
engenheiros dispôs de um período transitório de 8 anos para se adaptar à Lei e
fazer o curso de arquitetura, o que alguns fizeram.
Em comunicado, a Ordem relembra que em 2009 foi definido um período de 7
anos (a Lei refere
5), passando para 8 em 2015, para que
os engenheiros civis, licenciados em 1987/88 e que no passado assinaram
desenhos de construção, pudessem fazer o curso de arquitetura.
Ao Expresso,
a presidente da OASRN alerta que os engenheiros civis que venham a assinar
desenhos de arquitetura não “ficarão obrigados a responder civil e
criminalmente por eventuais erros de projeto”, ao invés dos arquitetos sujeitos
pela sua Ordem a seguros de responsabilidade profissional.
Em janeiro deste ano, Diogo Freitas do Amaral emitiu parecer desfavorável à
aprovação do referido Projeto de Lei, defendendo ser “de todo incompreensível
que a Lei exija como condições de inscrição na Ordem dos Arquitetos a
licenciatura e o estágio profissional e, ao mesmo tempo, venha admitir, por força
da reforma projetada, que a profissão, no seu núcleo caraterizador, seja
exercida por quem não disponha desse grau e da correspondente formação
académica e profissional”.
A 14 de março, a poucas horas de os deputados poderem autorizar engenheiros
civis (entre outras
profissões) a assinar projetos de arquitetura,
os arquitetos saíram para a rua contra a medida, com concentração junto ao
Parlamento e vigília. Convocados pela respetiva ordem, arquitetos de todo o
país deslocaram-se a Lisboa, para uma concentração frente à Assembleia da
República, onde, no dia 15, foi votada a lei à qual a classe se opõe.
Os arquitetos reclamam “pelo direito à arquitetura, à paisagem e ao
território qualificado”, algo que consideram ameaçado por diplomas que o
Parlamento votou em plenário e que, a partir do sentido das votações na
comissão, aprovou.
Assim, os deputados abriram a possibilidade de engenheiros civis formados
em quatro instituições portuguesas (Instituto Superior Técnico de
Lisboa, Faculdades de Engenharia de Coimbra e do Porto, e Universidade do Minho), e que iniciaram os seus cursos até 1987/88, poderem
elaborar projetos de arquitetura. Estes eram os beneficiários da medida em
julho passado, quando houve uma votação em plenário, antes de os textos
descerem à especialidade. Mas, na versão agora a chegar ao fim do processo
legislativo, há mais profissionais com possibilidade de assinarem projetos de
arquitetura: engenheiros técnicos e agentes técnicos de arquitetura e
engenharia. O vice-presidente da Ordem dos Arquitetos disse:
“Antes, só havia engenheiros civis
[referidos na lei]. Parte da nossa indignação está aí: meteram o pé na porta e
depois escancararam-na com o pé de cabra.”.
O braço de ferro entre arquitetos e engenheiros sobre o reconhecimento
destes últimos para assinarem projetos que os primeiros exigem ser competência
exclusiva sua é uma história antiga (esta é a última fase da quarta
tentativa de solução legislativa), sobre a
qual (quase) ninguém se entende. Por exemplo, há câmaras
municipais que recusam projetos de arquitetura assinados por engenheiros.
Quando isso acontece, a Ordem dos Engenheiros move um processo à autarquia. Mas
há municípios onde tais projetos são aceites. A essas câmaras a queixa é
interposta pela Ordem dos Arquitetos. É um “conflito interpretativo a respeito
de normas”, como diz o Provedor de Justiça, cuja intervenção no caso, através duma
recomendação ao Parlamento, levou os deputados a tentarem balizar corretamente
uma questão, cujo imbróglio nasce da transposição, supostamente errada, duma
diretiva comunitária.
Tudo é confuso, de tal modo que o Provedor falou dum “horizonte de
hipercomplexidade normativa”. Ela é de tal monta, enredada entre a legislação
comunitária e a nacional, que só com exemplos concretos se mostra o enredo. Um
engenheiro civil português (daqueles 4 estabelecimentos e formado no período
referido) pode assinar projetos de
arquitetura nos restantes países comunitários. O mesmo sucede com engenheiros
civis estrangeiros em Portugal. O que o engenheiro civil português não pode é
assinar projetos de arquitetura em Portugal.
O paradoxo não é exclusivo dos engenheiros; também acontece com arquitetos.
Têm mais direitos (para o exercício dalgumas atividades que não as
próprias da profissão) fora do país
do que dentro.
A forma como a lei portuguesa tem encarado o assunto é muito pouco linear.
Historicamente, os engenheiros assinavam projetos de arquitetura (até porque
havia falta de arquitetos). Já neste
século, uma lei de 2009 transpôs uma diretiva comunitária dando aos engenheiros
das quatro escolas referidas um regime transitório de cinco anos (mais tarde
prorrogado por mais três, a terminar a 1 de novembro de 2017) para poderem exercer como arquitetos. No entanto,
uma alteração ao diploma feita em 2015 acabaria por potenciar os “entendimentos
opostos” hoje subsistentes.
***
A aprovação parlamentar beneficia potencialmente, segundo a Ordem dos
Arquitetos, cinco mil engenheiros civis. Daniel Fortuna do Couto diz que se
trata duma estimativa feita pela Ordem, a partir de dados do INE, sendo, por
isso, um número de “razoável confiança, que não foi ainda desmentido”. No
entanto, salienta: “Não é uma questão de
número, mas de princípio”.
E àquele contingente soma “cerca de cinco mil agentes técnicos”, embora,
neste caso, a Ordem seja mais “especulativa”, pois limita-se a usar números que
a associação de classe daqueles profissionais em tempos considerou ser o
universo de agentes técnicos abrangidos.
Por seu turno, Carlos Mineiro Aires, o bastonário da Ordem dos Engenheiros,
manuseia outra ordem de grandeza. E diz não ter um número fiável de engenheiros
civis abrangidos pelo diploma, devendo rondar as duas centenas, e salienta que
“os mais novos andarão pelos 52 ou 53 anos, sendo uma questão que será
resolvida com o tempo.
Porém, segundo Daniel Fortuna do Couto, da OA, os efeitos das novas leis
lançam “o caos na profissão”. “Temos entre 15 e 16 mil arquitetos no ativo e
uns oito mil sem trabalho”. É fazer as contas, se os números forem os que são
avançados pela Ordem.
e o bastonário dos engenheiros tem outra leitura:
“A falta de trabalho dos arquitetos não
resulta da concorrência com os engenheiros. As faculdades estão cheias de
alunos, porque é uma profissão sexy, e há uma atitude canibalesca dos
arquitetos entre si, que esmagam os honorários.”.
No estado atual de confronto verbal entre as duas profissões, dispara-se
chumbo grosso. Diz o vice-presidente dos arquitetos sobre os engenheiros:
“Têm a responsabilidade pela degradação do
nosso território, especialmente na periferia das cidades. A calamidade
urbanística foi sobretudo cometida pelos engenheiros civis e pelos engenheiros
técnicos, mais do que pelos arquitetos.”.
Mineiro Aires não quer “guerras nem quezílias” e desdramatiza:
“A Ordem dos Engenheiros não defende que os
engenheiros façam arquitetura. Apenas defende que aqueles que já faziam possam
continuar a fazer. O que reivindicamos é ao abrigo dos direitos adquiridos.”.
O bastonário dos Engenheiros diz que posição dos arquitetos “é uma tontaria”.
E prefere recordar a data, recente, em que foi à Ordem dos Arquitetos, quando
esta atribuiu o título de “arquiteto honorário” ao engenheiro civil Segadães
Tavares, “porque foi ele que foi capaz de pôr no ar a pala do Siza [feita para a
Expo-98, no agora Parque da Nações, em Lisboa]”. E diz que “isto é a prova das boas relações entre as duas ordens e as
duas profissões”.
O deputado do PSD Joel Sá disse à agência Lusa que este diploma segue uma diretiva comunitária sobre esta
matéria e uma recomendação do Provedor de Justiça. De acordo com o socialdemocrata,
os engenheiros portugueses podiam assinar projetos de arquitetura noutros
países da União Europeia, mas não no seu próprio país.
***
A decisão do Presidente da República era previsível. Já tinha declarado não
confundir “o mérito do contributo
complementar de outras formações com o respeito estrito do domínio natural e justamente reservado apenas aos
arquitetos” e considerado como “questões sem sentido” a polémica provocada
pelo diploma que prevê a possibilidade de um grupo de engenheiros assinar
projetos de arquitetura, que divide as respetivas ordens.
Marcelo falou nesta polémica durante a cerimónia de entrega do Prémio Pessoa 2017 ao arquiteto Manuel
Aires Mateus, na Culturgest, em Lisboa, na presença do Primeiro-Ministro.
O Chefe de Estado abordou o tema indiretamente, referindo-se a “questões de natureza legislativa que têm
inquietado os arquitetos e a respetiva Ordem”.
No seu discurso, Marcelo frisou que “a arquitetura em Portugal passou nas
últimas décadas por momentos contraditórios, incluindo várias dificuldades
ainda não superadas”, e sofreu “um impacto verdadeiramente brutal” com a
recente crise, depois de ter conhecido “extraordinária internacionalização”.
Em relação
ao parecer de Freitas do Amaral, parece curto ficar-se pela identidade e
especificidade das profissões e pelo seu caráter estanque. Há que ter em conta
o aspeto social e económico das questões. No interior do país, quantos
arquitetos temos tido? E as aberrações que por aí se veem ou resultam do
discutível preciosismo profissional de uns e de outros ou de algo pior: projetos
elaborados por desenhadores e subscritos por técnicos superiores. Além disso,
foram os agentes de engenharia e arquitetura quem aguentou o urbanismo em muito
dos municípios portugueses. E porque não pode ser um engenheiro ou um agente
engenharia a elaborar e subscrever um projeto de arquitetura duma habitação
unifamiliar ou dum pequeno armazém – de ínfima complexidade? Será preciso um curso
de arquitetura para quem teve de estudar algo de arquitetura no seu curso? Ou terá
o cliente de andar desnecessariamente da casa de Anás para a casa de Caifás?
Quanto ao
veto político, o Presidente pode invocar razões de conteúdo. Porém, é discutível
a invocação de motivos de outra ordem. Não houve um facto novo. Até houve: a
diretiva europeia ou a sua interpretação. Quebrou-se o consenso gerado em 2009.
Já lá vão 8 anos (parte de 4 legislaturas). Quantos consensos não se
desfazem em 8 anos!
O Projeto
de Lei gerou a discussão suficiente e a maioria constitucional para a sua aprovação.
Assim,
parece mal que o Chefe de Estado possa posicionar-se de um dos lados do
interesse corporativo, o que se diz de um parecer jurídico de alta figura académica
e, antes, figura política.
2018.04.08 –
Louro de Carvalho
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