O Presidente da República de Portugal visitou a
Espanha num gesto de cortesia que retribui a visita do Rei Felipe VI ao nosso
país e num propósito de Estado de fomento das relações entre os dois países vizinhos
com vista à consecução duma voz forte e uníssona junto da UE por parte dos dois
países ibéricos. E seguiu uma estratégia que resultou apenas parcialmente:
explicar aos espanhóis o que se passa em Portugal, mas afastar de todo
pronunciar-se sobre a questão catalã, alegadamente por se tratar dum assunto
interno do país vizinho e país irmão, sendo que, também na família, Marcelo não
se intromete nos assuntos do irmão.
Dando de barato que as relações diplomáticas e
comerciais entre países não se pautam por critérios de irmandade, vamos ver em
que aspetos a estratégia de Marcelo resultou e os aspetos em que podem
entrever-se brechas.
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Antes da visita de Estado a Espanha, ou seja, no
passado dia 15 (domingo), deu
uma entrevista ao “El País”, em que
relembrou os “meses tensos” do início do mandato, explicou as razões dos vetos políticos
e foi instado a pronunciar-se sobre a luta independentista da Catalunha.
Sobre os ditos “meses tensos”, que pensávamos estarem mais que ultrapassados
(pensava que Marcelo não estava tão velho para se repetir sobre o passado), recordou:
“Quando iniciei o meu mandato, a situação do
país era difícil. Havia uma grande divisão na vida política portuguesa (...)
Questionava-me sobre a continuidade do Governo, sobre a relação com Bruxelas e
a reação dos mercados. Foram meses muito tensos.”.
E foi assim que o Chefe de Estado começou por dizer, ele que foi eleito 4
meses após o PS ter chegado ao poder com a ajuda dos acordos à esquerda, ou
seja com o Bloco de Esquerda (BE), o Partido Comunista Português (PCP) e o Partido
Ecologista os Verdes (PEV). Mas considerou que, apesar da dificuldade
inicial, “o balanço é positivo: há
estabilidade social e política e ganhámos a credibilidade dos mercados financeiros”.
Obviamente, não esqueceu os atritos surgidos com a aprovação do Programa de
Estabilidade pelo Governo, que o BE critica com acutilância e o PCP/PEV não
valoriza porque as grandes se discutem em sede de debate orçamental. Por isso, Marcelo
deixou o aviso: sem orçamento há eleições – ele que já em relação ao orçamento
para 2018 não queria que o ano fosse contaminado por critérios eleitoralistas.
Ainda assim, pode dizer-se que nesta matéria se mostra atento e vigilante.
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Na explicação da sua postura sobre os vetos políticos, penso que o
Presidente segue um a caminho ínvio que só lhe é possível graças à enorme
popularidade que conquistou através de largos e longos anos de imersão nas
malhas da comunicação social. Ora, se é certo que “o diálogo constante ajuda a melhorar o clima político” – e deve-se
Marcelo o esforço de diálogo e de esbatimento das tensões – nem por isso é de
aceitar de forma acrítica que a taxa de popularidade do Presidente e Comandante
Supremo das Forças Armadas seja por si atribuída à forma de estar na vida e no
trabalho. É verdade que, tal como sustenta, “a relação pessoal pode facilitar a política e para isso é preciso falar”;
e é verdade que decidiu receber partidos, sindicatos e patrões a cada dois meses
e deu uma periodicidade às reuniões do Conselho de Estado. Conhece efetivamente
“o que pensam” e eles conhecem o que o Presidente pensa, “sem crispações e em
privado”. E, por qualquer sítio que passe, Marcelo é reconhecido como o
Presidente dos afetos – a própria presidente da Câmara de Madrid o sublinhou –
mas, conquanto a dimensão do afeto seja relevante nas relações humanas, em
política é uma gota de água, já que a política resulta de opções que induzem
decisões nem sempre fáceis e muitas vezes impopulares. Por isso, embora a ação
marcelina venha contribuindo para a sua popularidade, a sua génese e manutenção
reside no seu histórico, no favor da comunicação social e na conveniência que o
Governo vê na aceitação da intervenção presidencial. Tanto assim é que, uma ou
outra vez, os partidos da área política donde Marcelo provém se distanciaram e
até o criticaram.
Referiu que faz tudo para evitar o veto político aos diplomas do Parlamento
e/ou do Governo, sustentando que deixa claro, no site da Presidência, que não veta “por uma razão pessoal”, mas
porque entende que a sua opinião “corresponde ao sentido generalizado coletivo”.
Continuou, vincando que, no atinente à lei do financiamento dos partidos, “não
houve o mínimo debate público que tenha permitido aos portugueses saber a razão
das mudanças”. E, considerando ser preferível o veto presidencial aos pedidos
de fiscalização ao Tribunal Constitucional (TC), disse:
“Não é bom transformar o TC em árbitro
político à força entre o Governo e a oposição”.
Ora, é neste âmbito que é mais grave a opção do Presidente. É ele o garante
do cumprimento da Constituição, como estabelece a lei fundamental, mas não é o
juiz da constitucionalidade dos diplomas aprovados no Parlamento ou no Conselho
de Ministros. A função presidencial é função política e função moderadora, não
função jurisdicional. Nem dele se espera um exercício de jurisconsulto. Tem a
prerrogativa de opor o veto político a um diploma invocando razões políticas de
ordem pessoal e/ou ideológica – o que é legítimo –, mas não adianta dizer-nos
que não o faz por motivos pessoais, quando nós até entrevemos que, no exemplo
apresentado, o da lei do financiamento dos partidos, o fez por serem
contrariadas as suas razões de antigamente. Deixou-o quase expresso no aviso
que fez aos deputados. Invocar razões processuais ou de conteúdo, que não foram
ultrapassadas em sede de reapreciação parlamentar, embora tenha dito que os
deputados ultrapassaram em muito o que o Presidente pretendia, não é de todo
aceitável. E resta saber quais os critérios ou suportes de veridicidade que
sustentam a perceção do “sentido generalizado coletivo” – no caso vertente, o
CDS, os assessores, as redes sociais...?
A este respeito, o Blogue “Causa nossa” publicou, em 16 de abril, um texto
a referir que a suscitação da fiscalização preventiva da constitucionalidade
dos diplomas “é uma faculdade que o Presidente exerce quando entenda
justificado, não devendo ser exercido de forma leviana ou caprichosa, muito
menos como sucedâneo do veto político”. Mas esse ato “tem uma função
constitucional importante: impedir a entrada em vigor de leis
inconstitucionais, principalmente quando os seus efeitos sejam depois de
difícil reversão, se a lei vier a ser declarada inconstitucional em
fiscalização sucessiva”. Assim, não faz sentido “uma renúncia, por princípio,
ao exercício desse poder”. Até pode haver casos em que se imponha, “política e
constitucionalmente, o pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade”.
E Vital Moreira exemplifica como o caso recente da promulgação expedita pelo
Presidente duma lei da AR que determinou concurso extraordinário alargado de
professores, da iniciativa e aprovação duma coligação antigovernamental “que
suscita sérias dúvidas de constitucionalidade, por criar uma despesa pública
adicional de vários milhões de euros logo no corrente ano, infringindo assim a
regra constitucional de que os deputados não podem fazer propostas de lei ou de
alteração que aumentem a despesa prevista na lei do orçamento em execução” (CRP, art.º 167.º/2).
Com
efeito, estando o País em processo de
consolidação orçamental, “não se compreende que o PR deixe passar sem
escrutínio de legitimidade constitucional uma lei de iniciativa parlamentar que
aumenta substancialmente a despesa pública com pessoal, à revelia do
Governo”.
E o argumento de evitar “transformar o TC em árbitro político à força entre o Governo e a
oposição” não procede, já que podem estar em causa leis aprovadas
pela maioria governamental ou até por unanimidade, “pelo que não existe nenhum
litígio entre o Governo e a oposição”; e porque, na fiscalização abstrata de
constitucionalidade, preventiva ou sucessiva, não está em causa a
dirimição de conflitos políticos, mas a verificação da conformidade ou não de
uma lei com a Constituição, “independentemente de quem a aprovou ou rejeitou”.
Por outro lado, a eficácia do veto político é incerta. Facilmente, se
houver coragem política, os deputados podem confirmar ipsis verbis uma lei, se for aprovada pela maioria dos deputados em
efetividade de funções. É certo que, na confirmação das leis orgânicas e nas
que versam certas matérias, se requer o voto favorável da maioria de dois
terços dos deputados presentes desde que seja superior à maioria dos deputados
em efetividade de funções. No caso de diploma do Governo, fica anulado. Porém,
o Governo pode transformá-lo em proposta de lei.
***
Sobre a posição de Portugal na questão da independência da Catalunha,
Marcelo disse que o país “respeita a
soberania do estado espanhol, respeita a sua Constituição, as suas leis e o
funcionamento das suas instituições, não intervindo na vida interna de outro
Estado”. Por isso, não interfere
na questão catalã. E referiu que Portugal
tem excelentes relações com Espanha e espera que as eleições europeias de 2019
sejam expressão de propostas positivas e não de insatisfação. Mais disse que os dois países devem refazer as relações dentro da
Europa.
Marcelo, considerando que a indefinição europeia tem
sido aproveitada pelos críticos do projeto europeu, fazendo disparar os
ultranacionalismos, discorreu:
“Há uma verdade básica: se há uma lacuna no
espaço político e quem deve ocupá-lo não faz, outro o fará. Não pode haver uma
forte política europeia com sistemas políticos de Estados-Membros fracos. Em
muitos casos, os sistemas que temos não acompanham a evolução dos novos tempos.”.
O Presidente defendeu que a Europa tem de avançar nos próximos “6 a 9
meses” na União Económica e Monetária, na aprovação do próximo quadro financeiro
plurianual, na definição da política de segurança e defesa e dum plano comum
para as migrações e refugiados. “Perdemos muito tempo” (disse). “O ano passado verificou-se um longo impasse
em eleições em vários países”. Ora, segundo Marcelo, “o contexto mundial
não é fácil”; “corremos o risco de retornar à Guerra Fria, com mais
protagonistas em jogo e sem canais de comunicação”. E vincou:
“No período da Guerra Fria havia regras e
canais informais, que eram mantidos entre os hemisférios. Precisamos de acreditar
neles porque, se cairmos em uma nova Guerra Fria, não há nada pior do que
a má comunicação. Nesse cenário, um erro de perceção leva a um erro
de ação, à precipitação. Devemos recriar os canais de diálogo além das
divergências e conflitos. É essencial.”.
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No âmbito
da visita de três dias a Espanha (15, 16 e 17 de abril), o Presidente foi recebido
pelos Reis, no Palácio da Chefatura do Estado e na residência oficial do Rei e
da Rainha, e pelo Primeiro-Ministro, no Palácio do Governo; foi obsequiado por
um banquete pelos Reis; ofereceu um banquete aos Reis; prestou, na Praça da
Lealdade, homenagem aos caídos; e palestrou sobre a Europa na Universidade Carlos
III.
Porém, o insólito para o Marcelo aconteceu nas Cortes
espanholas, onde este a discursar
à frente de deputados e senadores. Falou de velhos do Restelo, Dons Quixotes e,
sobretudo, de democracia. E,
no final dum longo momento
de aplausos, da parte dos
membros do Congresso dos deputados e do Senado, que se fizeram ouvir vozes em uníssono. Os deputados
independentistas da Catalunha acabavam de se levantar e, no final da sessão
em que Marcelo falou sobre
democracia e os caminhos cruzados de Portugal e Espanha, ouviram-se as
primeiras palavras de Grândola Vila
Morena. Os deputados
em questão já entraram na sessão com cravos amarelos na mão, símbolos da
revolução e cor que homenageia os presos políticos. E foi a meio da ovação
final a Marcelo que começaram a cantar a canção da revolução portuguesa.
Não foi clara a reação do Presidente
para quem assistia nas galerias. Mas parece que, enquanto os restantes
elementos do parlamento continuaram os aplausos, de forma a abafar as vozes.
Marcelo, por seu lado, sorriu e cantou a partir da tribuna principal do
hemiciclo.
O
momento aconteceu já depois de Marcelo ter frisado a importância de Portugal e
Espanha valorizem as suas diferenças, tanto entre si como dentro dos próprios
países. A questão catalã esteve ausente na visita de Estado do Presidente, que
dura desde domingo. E foi logo nesse dia que Marcelo esclareceu que não
comentaria assuntos internos de Espanha. Marcelo recordou com “honra e emoção”
os tempos que passou como deputado constituinte (entre 1975 e 1976) e os passos que Portugal e Espanha deram a caminho da
democracia, frisando:
“Lutar
pela democracia é um imperativo de todos os dias, tal como é um erro acreditar
que basta a sua proclamação nas constituições e nas leis”.
E continuou:
“Sabemos como são constantes e preocupantes os sinais que nos
chegam de outras paragens, onde sistemas políticos entram em crise ou se
fragilizam porque se desistiu de se fazer da democracia uma realidade todos os
dias. [A democracia é] um desafio nunca esgotado.”.
Frisando
a importância da integração europeia na transformação dos sistemas políticos
ibéricos, lembrou os princípios que regem as pátrias irmãs: a tolerância contra
o egoísmo xenófobo, a participação das pessoas contra o
confidencialismo que provoca populismo, a fraternidade que se opõe ao ódio”. E
recordou a História comum de Portugal e Espanha e o protagonismo de ambos na
época dos Descobrimentos.
Como
membros da comitiva portuguesa, também assistiram ao momento os deputados que
acompanham Marcelo (António Carlos Monteiro, CDS; Rita Rato,
PCP; Luís Testa, PS; e Carla Barros, PSD),
bem como o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva.
***
Era natural.
Se Marcelo falasse da História comum, da relação dos dois países e da sua
posição frente à UE… Mas, falando de democracia nos termos em que falou – que não
basta proclamá-la na Constituição e nas leis, que é um desafio esgotado … –
recebeu um poderoso retorno de como aprenderam a sua lição. Os ofendidos pelo
centralismo mostraram-se nessa qualidade.
Por isso,
Marcelo tem de se convencer de que agora não é professor nem constitucionalista
nem comentador. É Chefe de Estado. Não é governante, mas Chefe. É garante do cumprimento
da Constituição, mas não juiz da sua plasmação nas leis. É comandante supremo,
mas não comandante em chefe. Na relação com os Estados é parceiro, não doutrinador
nem pai nem súbdito. Cumpre-lhe a convivência, não o ensino. Enfim, deve
moderar-se! Com todo o meu respeito…
2018,04.17 – Louro
de Carvalho
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