É uma
novidade em Portugal e foi anunciada, em recente entrevista ao Diário de Notícias (DN), pelo Bastonário da Ordem dos Advogados, que está no
segundo ano de mandato e a quem não tem faltado trabalho nem polémicas.
A referência
ao inquérito enunciado em epígrafe surge no âmbito da resposta ao repto lançado
pelo entrevistador que o interpelou sobre se “está a correr bem até agora” o
propósito anunciado de que “2018 tinha
de ser o ano da credibilização da justiça”. Ora, a credibilização passa
por muitas vertentes e o Bastonário, sem esgotar o tema, aborda algumas delas e
bem pertinentes.
Para
Guilherme Figueiredo está a proceder-se à “preparação da credibilização”. E,
neste sentido, a Ordem dos Advogados através do Bastonário, o Presidente do Supremo
Tribunal de Justiça e o Presidente da Assembleia da República estão a preparar
conjuntamente um “inquérito sobre a perceção da justiça pelo cidadão” – algo inédito
em Portugal, que tem a ver “com uma execução profundamente adequada à ideia da
credibilização”. Com efeito, há que “saber concretamente o que pensa o cidadão”,
pois, “na generalidade, o cidadão que fala é aquele que teve uma má experiência”.
Depois, o modo como a justiça é percecionada “tem muito que ver com uma
aculturação cinéfila, especialmente de cinema americano”. E o Bastonário (que é
cinéfilo de formação) diz que é
trabalho que tem de ser e vai ser feito. Além disso, refere que o Ministério da
Justiça, “já avançou com a hipótese dos inventários, que é uma medida essencial”
e pensa que “retroceder no que foi uma reforma da justiça realmente leva tempo
e exige coragem”. Mais espera que, no ano de 2018, “várias outras iniciativas
poderão ocorrer no âmbito legislativo” e revela uma que faz parte do chamado
pacto da justiça, a das custas judiciais.
Empiricamente,
uma das perceções da justiça reporta-se às custas judiciais. E Figueiredo frisa
que “têm forçosamente de ser alteradas” e pretende alterações no atinente ao
apoio judiciário – que tem custos – “relativamente aos protagonistas, neste
caso os advogados, mas não só a eles, a todo o processamento”. Diz que “todos
os partidos estão de acordo que não podemos manter as custas como estão”. Com efeito, “a justiça tem de se
tornar mais barata” e “adequada no sentido de que todo e qualquer cidadão possa
defender os seus direitos nos tribunais”.
Convicto de
que teremos a reforma da justiça repensando a organização judiciária em
matérias que nunca foram bem desenvolvidas, assenta em que na organização
judiciária se refletiu bem “sobre o problema da especialização, mas não sobre o
conceito de proximidade”. Por isso, quer que este seja o ano em que “se
considere o conceito de proximidade”. De facto, o pacto da justiça significa,
para o Bastonário “a convergência de vontades de diversas profissões, cada uma
com uma identidade muito específica”; e ele enfatiza a circunstância da
convergência em mais de 80 medidas, pois concretizou-se “a possibilidade de os
profissionais do âmbito do judiciário conseguirem encontrar-se, debater e
chegar a acordo, e não ficarem melindrados” por não se terem aprovado outras
medidas propostas ou pela Ordem ou pelo MP, em que não houve acordo, mas também
não se fechou a porta.
Neste sentido, garantiu
abertura à discussão e esperança de que a plataforma/fórum da justiça continue
com a vantagem de chamar outras entidades quando as discussões em concreto
exijam que elas participem. Assim, “a justiça, a partir dos seus próprios
intervenientes, está a dar passos no sentido de não imputar responsabilidades
alheias uns aos outros, de ter a capacidade de convergência e conversação, de
diálogo”. Em resultado disso, a partir “dos protagonistas do âmbito judiciário”,
há “uma ideia generalizada de que precisamos de convergir, procurar saídas,
estabelecer pactos mas, acima de tudo, passar uma boa imagem para o cidadão”, o
que “exige dizer em concreto o que está mal”.
***
Sobre a hipótese de o pacto da justiça vir a falhar por falta de uma
espécie de pacto de regime, ao menos do lado do poder político, Figueiredo diz haver “matérias que nada obstam a que tal aconteça”.
E o sinal foi dado em terem sido ouvidas na Assembleia da República as profissões
que estiveram no pacto. Refere a evidência de haver matérias complicadas, mas, “como
o pacto tem matérias que não são estruturantes”, acha possível, “através dos
partidos com assento na Assembleia, poder-se convergir em matérias essenciais”.
E apresenta um método para tratar disto: definir o que é estruturante e precisa
de ser alterado e exige um pacto de regime sólido; e definir “o que tem que ver
com micromedidas fundamentais para que o sistema funcione”. E dá um exemplo do
que já poderia ser feito em 2018: ter “medidas fundamentais relativamente aos
tribunais administrativos, fiscais e aos tribunais de comércio”, por serem este
que “provocam maior desgaste na imagem que o cidadão tem da justiça e
nomeadamente a imagem dos operadores económicos”.
Questionado
se falava da lentidão da justiça, que invoca para justificar não saber o que
fará a PGR em relação ao processo de auditoria às contas da Ordem, preferiu
apontar a ausência duma organização capaz de resolver esta matéria e de uma grande
reflexão que obriga a pensar nisto de outro modo. A OA propôs um item que não
concitou convergência: a extinção da jurisdição autónoma administrativa e
fiscal, os julgados de paz (medidas estruturantes, que mexem com a Constituição e
não têm ainda consenso na sociedade), a criação
de tribunais especializados autónomos quer administrativos quer fiscais e a
extinção do Supremo Tribunal Administrativo, do Conselho Superior ligado à
magistratura administrativa e fiscal. É discussão que demora, mas que é
fundamental. E recorda que foi necessário fazê-lo quanto aos julgados de paz
porque a ideia era que “seria muito bom criar o tribunal municipal com outro
nome”, integrando o conceito de proximidade. De facto, diz-se que “devemos
manter tribunais de proximidade”, mas se nos questionarmos sobre o que “isso
significa, não há consenso”. Sustenta que “são medidas que obrigam a uma densificação
do pacto de regime”, em que os partidos “poderão ter mais dificuldade em
trabalhar, mas depois há muitas outras medidas em que não há dificuldade”.
***
No atinente à delação premiada e ao enriquecimento ilícito, duas medidas
em que não houve acordo, a posição da OA é diferente em relação a uma e à outra.
O enriquecimento ilícito “nunca
poderia ser permitido porque envolve na sua configuração” (será de ver
se aparece outra) a “inversão
do ónus da prova. Ou seja, quem tem um dado rendimento e que é obrigado a
declarar teria de justificar a sua origem, o que significaria “obrigar o
cidadão a provar”; e “poderia ser uma porta muito facilitadora, até ampliar o
seu âmbito para outras matérias”. Obviamente que isso facilitaria a vida ao
acusador público, o MP, que, não tendo de provar, se limitaria a esperar. Por isso,
sustenta que há outros meios para tratar desse assunto, meios de tipologia
fiscal e que devem ser acionados. O cidadão diz que bens possui, que rendimentos
tem; e, se não o fizer, comete crime de natureza fiscal, que deve ser agravado.
Depois, deve haver imputação na taxa relativa a esse rendimento muito superior,
como sucede noutros países. Não obstante, deveria continuar a haver
investigação criminal para saber se está preenchido o tipo de crime, seja ele
qual for. Ora, “há mecanismos sucedâneos para isso e não é necessário fazer a
tal inversão do ónus da prova”, pois nunca se pode prescindir dos direitos,
liberdades e garantias dos cidadãos.
Em matéria da delação premiada, considera que a OA a tem como uma linha vermelha. Não se chegaram a
discutir as diversas possibilidades. A Ordem fez o debate e percebeu que a
ideia estava a ser pensada e acertou em nunca aceitar a contratualização, ou
seja, “contratualizar com um arguido que, “denunciando outros, poderá ter um
benefício”, pois isso até poderia levar a falsas denúncias. Refere que nos
países analisados pela Ordem, se parte de contratualizações. Mas assegura que
diferente será “tentar apreender as causas que levam a que alguém proponha uma
delação premiada ou colaboração dum arguido para a investigação criminal e para
ter êxito na investigação criminal”. Defendendo que já temos isso em casos específicos,
discorre:
“Isso já temos no ordenamento
jurídico, em rigor já existe uma colaboração premiada. O que nunca podemos é
passar a tal linha que é completamente vermelha e permitir essa contratualização,
ir por um caminho em que o cidadão não se sinta seguro. Agora, analisar as
causas, saber se através de uma microcirurgia podemos chegar a algum lado, esse
é o estudo que a ordem está a fazer de forma serena, sem a pressão do tempo;
mas estamos a fazê-lo, nomeadamente, com o gabinete de política legislativa, ao
qual preside José António Barreiros, que conhece bem estas coisas. E estamos
convencidos de que havemos de chegar a uma conclusão que depois colocaremos em
discussão com os advogados. E aí sim, será uma medida pensada que não tem que
ver com a delação premiada, mas tentará melhorar aquilo que são dificuldades
legítimas e razoáveis na investigação criminal.”.
***
Depois de instado insistentemente a falar de Elina Fraga, a anterior
Bastonária, referiu que ela não corporiza necessariamente a política de justiça
do Partido e que não via qualquer problema em que ela fosse porta-voz do
partido para a área da justiça, até porque há outras instituições. Sobre a auditoria
às contas, limitou-se a apontar a diferença de políticas e de gestão, sem que
isso implique imputação de qualquer ilícito criminal. A comunicação à PGR foi
um ato de precaução, não formal e sem qualquer intenção subliminar. E Figueiredo
não tem dificuldade em se sentar à mesa de discussão com Elina nem ela com ele,
porque conhecem o pensamento um do outro. Obviamente que não concordou com o
processo que, enquanto bastonária, ela moveu contra um governo em funções. Como
era de esperar, era difícil tipificar um crime da parte do Governo. E, tendo
tudo ficado arquivado, nada se avançou na credibilidade da justiça.
Diz ter uma
opinião, não sobre o juiz Carlos Alexandre, cuja imagem saltou para a ribalta, mas
sobre os juízes de instrução criminal, que “são os juízes das liberdades”. Ora,
“quando os juízes das liberdades aparecem com uma configuração mais ligada à
acusação”, acha que “estamos a adulterar a ideia presente no nosso ordenamento
jurídico”.
***
Convenientemente instado e apesar de já ter abordado o problema da
acessibilidade das custas da justiça, falou de outro problema muito grande, a
lentidão. Aí sublinhou que o cidadão deve saber que “o tempo da justiça não é igual ao tempo, por exemplo,
dos media, dos jornalistas ou dos políticos”. Mas afirma que “melhorámos muito,
hoje temos uma perceção muito melhor”, pois “sabemos, através dos conselhos
consultivos das comarcas, como as coisas estão a andar do ponto de vista civil,
laboral, dos tribunais da Relação – que são do melhor que há, porventura até do
melhor da Europa, em termos de rapidez”. E o que falha é, acima de tudo, “nos
tribunais de comércio”. Sustenta que
este “é um problema a nível nacional”. De facto estes tribunais não estão
constituídos por equipas multidisciplinares, com técnicos a apoiar os juízes na
área, por exemplo, da gestão, da economia. “Eles não têm de saber disso tudo,
muitas vezes até não sabem”. Para resolução do problema, indica:
“Tem de ser
com medidas conjuntas. Têm de se instalar mais tribunais de comércio, tem de se
dar maior corpo de funcionários e juízes aos tribunais de comércio e temos de
os colocar na primeira fila, com os de família, nos chamados tribunais
verdadeiramente de especialidade, isto é, criar equipas pluridisciplinares, com
formação específica. É por aí que se deve seguir.”.
***
E aqui fica em traços largos o que pensa sobre o
estado e o avanço da justiça em Portugal o líder dum grande corpo de
intervenientes na área da justiça, com a competência e a liberdade que se lhe
reconhecem – na certeza de que o debate tem muito caminho a percorrer, embora
tenha certamente pernas para andar.
E quanto ao “inquérito sobre a perceção da justiça
pelo cidadão”, é de esperar que os cidadãos, sejam mesmo ouvidos, participem e
seja tido em conta o seu sentir, com vista à equidade, eficácia e celeridade da
justiça.
2018.04.02 – Louro de Carvalho
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