terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Os Herodes de turno

A denominação é do Papa e foi utilizada na sua homilia da Missa da noite deste Natal de 2017.
É que o Natal do Senhor não é marcado apenas pelo abandono a que os distraídos na cidade de Belém votaram o divino Infante. É também assinalado pelo martírio dos Santos Inocentes, cuja festa se faz a 28 de dezembro, na Oitava do Natal. Com efeito, quando Herodes se sentiu sem a informação que solicitara aos magos sobre o lugar do nascimento do Menino, alegadamente para também o ir adorar, decretou a morte de todos os meninos de Belém e arredores com idade inferior a dois anos, esperando aniquilar, por esta, via a sobrevivência do Rei dos Judeus.
No seu discurso homilético, Francisco faz a atualização da figura sanguinária de Herodes.
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O Papa começou por mergulhar no ponto central da narrativa lucana:
Completaram-se os dias de [Maria] dar à luz e teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria” (Lc 2,6-7).
E diz que Lucas, com esta afirmação nos leva ao coração da noite santa: Maria, dando à luz, “deu-nos a Luz”. É um “acontecimento que muda para sempre a nossa história”. De facto, “tudo, naquela noite, se tornava fonte de esperança”.
Porém, o Papa resolve tirar partido da sua perspicácia e fixa-se no facto de, por decreto do imperador, Maria e José se terem visto “obrigados a partir”. Deixando parentes, casa e terra, puseram-se a caminho para se recensearem. Foi “uma viagem nada confortável nem fácil para um casal jovem que estava para ter um bebé”. Porém, forçados a deixar a sua terra, “no coração, transbordavam de esperança e de futuro por causa do filho que chegava”, embora sentissem “os passos carregados com as incertezas e perigos próprios de quem tem de deixar a sua casa”.
Depois, tiveram de enfrentar a chegada a Belém sentindo na carne que “era uma terra que não os esperava, uma terra onde não havia lugar para eles”. E Francisco aponta a ótica de Deus:
Mas foi precisamente lá, naquela realidade que se revelava um desafio, que Maria nos presenteou com o Emanuel. O Filho de Deus teve de nascer num curral, porque os seus não tinham espaço para Ele. ‘Veio para o que era seu, e os seus não O receberam’ (Jo1,11). E lá, no meio da escuridão duma cidade que não tem espaço nem lugar para o forasteiro que vem de longe, no meio da escuridão duma cidade toda em movimento que parecia querer, neste caso, edificar-se voltando as costas aos outros… precisamente lá acende-se a centelha revolucionária da ternura de Deus.”.
Com a centelha de luz a brilhar na cidade sem lugar para o forasteiro divino, inaugura-se a revolução da ternura. E “criou-se uma pequena abertura para os que perderam a terra, a pátria, os sonhos; mesmo para os que sucumbiram à asfixia produzida por uma vida fechada”.
Assim, o Papa pôde assegurar que “nos passos de José e Maria”, se escondem tantos passos, “as pegadas de famílias inteiras que hoje são obrigadas a partir”. Nesses passos, “vemos as pegadas de milhões de pessoas que não escolhem partir, mas são obrigadas a separar-se dos seus entes queridos, são expulsas da sua terra”. E é aqui que o Pontífice situa o contraste: “em muitos casos, esta partida está carregada de esperança, carregada de futuro; mas, em tantos outros, a partida tem apenas um nome: sobrevivência”. E é para aqui que se transpõe a figura de Herodes. Não é só um; são vários. Não se trata de um Herodes que decreta e passa aleatoriamente. É um serviço herodiano assumido por muitos. São vários os Herodes de turno, “que, para impor o seu poder e aumentar as suas riquezas, não têm problema algum em derramar sangue inocente”. E é a estes que e preciso sobreviver, sendo por causa destes que muitos não conseguem sobreviver e se sepultam no Mediterrâneo.
E, se Maria e José, o casal “para quem não havia lugar”, são os primeiros a abraçar “Aquele que nos vem dar a todos o documento de cidadania, aquele que, na sua pobreza e pequenez, denuncia e mostra que o verdadeiro poder e a autêntica liberdade são os que honram e socorrem a fragilidade do mais fraco”, nós devemos aprender a lição: mais do que beijar uma imagem de barro ou de madeira do Menino do Presépio, é preciso “beijar” quem não tem hoje um lugar digno para nascer e quem não tem “lugar nas mesas e nas ruas da cidade”.
Naquela noite, os pastores constituíram-se como os primeiros destinatários da Boa Notícia do Natal do Salvador. Eles não tinham lugar na cidade, já que, “pelo seu trabalho, eram homens e mulheres que tinham de viver à margem da sociedade”. Era a consequência das “suas condições de vida”, dos “lugares onde eram obrigados a permanecer”. Impedidos de “observar todas as prescrições rituais de purificação religiosa”, a sociedade considerava-os “impuros”. Eram conhecidos na sua pele, nas roupas, no odor, no modo de falar, na marca de origem. Tudo neles significava e “gerava desconfiança”.
Diz o Papa que eram “homens e mulheres de quem era preciso estar ao largo, recear; eram considerados pagãos entre os crentes, pecadores entre os justos e estrangeiros entre os cidadãos”. Porém, “a eles – pagãos, pecadores e estrangeiros – disse o anjo: ‘Não temais, pois anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias Senhor’.” (Lc 2,10-11).
É esta a alegria anunciada em Belém que, segundo o Pontífice, “somos convidados a partilhar, celebrar e anunciar”, “a alegria com que Deus, na sua infinita misericórdia, nos abraçou a nós, pagãos, pecadores e estrangeiros, e nos impele a fazer o mesmo”.
Esta fé “leva-nos a reconhecer Deus presente em todas as situações onde O julgamos ausente”: por exemplo, o “visitante indiscreto, muitas vezes irreconhecível, que caminha pelas nossas cidades, pelos nossos bairros, viajando nos nossos transportes públicos, batendo às nossas portas”. E isto acontece porque a fé, não se fechando em si nem se encurralando em espaços fechados e egoístas, “impele-nos a abrir espaço a uma nova imaginação social, a não ter medo de experimentar novas formas de relacionamento onde ninguém deva sentir que não tem um lugar nesta terra”.
Por isso, Natal é tempo de desafios. E o maior desafio é o de “transformar a força do medo em força da caridade, em força para uma nova imaginação da caridade”. E “a caridade que não se habitua à injustiça como se fosse algo natural”, tem a coragem de enfrentar os Herodes de turno e de, “no meio de tensões e conflitos, se fazer ‘casa do pão’ (Belém), terra de hospitalidade”. Nestes termos São João Paulo II desafiava na homilia da Missa de início do Pontificado:
Não tenhais medo! Abri, antes, escancarai as portas a Cristo”.
E contemplando o mistério do Natal, Francisco prossegue:
No Menino de Belém, Deus vem ao nosso encontro para nos tornar protagonistas da vida que nos rodeia. Oferece-Se para que O tomemos nos braços, para que O levantemos e abracemos; para que n’Ele não tenhamos medo de tomar nos braços, levantar e abraçar o sedento, o forasteiro, o nu, o doente, o recluso (cf Mt 25,35-36). ‘Não tenhais medo! Abri, antes, escancarai as portas a Cristo’. Neste Menino, Deus convida-nos a cuidar da esperança. Convida-nos a fazer-nos sentinelas para muitos que sucumbiram sob o peso da desolação, que deriva do facto de encontrar tantas portas fechadas. Neste Menino, Deus torna-nos protagonistas da sua hospitalidade.
O Natal que nos fixa na lição do presépio faz-nos ultrapassar a lógica das imagens e abre-nos ao Cristo real presente nas vítimas do azar da indiferença dos homens e dos Herodes que, para satisfação da sua ambição desmedida e do seu capricho, não se importam de banhar em sangue humano as aras do deus-dinheiro, do deus-poder, do deus-prestígio, do deus-egoísmo.
Assim, o Papa reza no termo da homilia a oração social e pastoral da caridade, justiça e cuidado:
Comovidos pelo jubiloso dom, Menino pequenino de Belém, pedimo-Vos que o vosso choro nos desperte da nossa indiferença, abra os olhos perante quem sofre. A vossa ternura desperte a nossa sensibilidade e nos faça sentir convidados a reconhecer-Vos em todos aqueles que chegam às nossas cidades, às nossas histórias, às nossas vidas. Que a vossa ternura revolucionária nos persuada a sentir-nos convidados a cuidar da esperança e da ternura do nosso povo.”.
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Também, antes da bênção Urbi et Orbi, Francisco começou por falar do nascimento de Jesus da Virgem em Belém, não “por vontade humana, mas por “dom de amor de Deus Pai, que tanto amou o mundo, que lhe entregou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que n’Ele crê não se perca, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). E frisou que este acontecimento se renova “hoje na Igreja, peregrina no tempo”. Com efeito, “a fé do povo cristão revive, na liturgia do Natal, o mistério de Deus que vem e assume a nossa carne mortal, fazendo-Se pequenino e pobre para nos salvar”, o que nos enche “de comoção, porque é demasiado grande a ternura do nosso Pai”.
E insistiu, na linha da Missa da Noite:
Os primeiros, depois de Maria e José, a ver a glória humilde do Salvador foram os pastores de Belém. Reconheceram o sinal que lhes fora anunciado pelos anjos e adoraram o Menino. Aqueles homens, humildes mas vigilantes, são um exemplo para os crentes de todos os tempos que, diante do mistério de Jesus, não se escandalizam da sua pobreza, mas, como Maria, fiam-se da palavra de Deus e, com olhos simples, contemplam a sua glória.”.
Depois, reconheceu que, “perante o mistério do Verbo encarnado”, os cristãos de toda a parte, que reconhecem na manjedoura de Belém o sinal do nosso Deus, confessam, com as palavras de João evangelista: “contemplamos a sua glória, a glória que possui como Filho Unigénito do Pai, cheio de graça e de verdade” (1,14).
A seguir, olhou para os “ventos de guerra” que “sopram no mundo” e para o “modelo de progresso já ultrapassado” que “continua a produzir degradação humana, social e ambiental”, e disse que o Natal nos lembra “o sinal do Menino” e nos convida a “reconhecê-Lo no rosto das crianças”, sobretudo daquelas para as quais, como sucedeu a Jesus, “não há lugar na hospedaria” (Lc 2,7).
E apontou Jesus presente “nas crianças do Médio Oriente”, que sofrem “pelo agravamento das tensões entre israelitas e palestinenses”, implorando “do Senhor a paz para Jerusalém e para toda a Terra Santa” e rezando “para que prevaleça, entre as Partes, a vontade de retomar o diálogo” e se possa chegar “a uma solução negociada que permita a coexistência pacífica de dois Estados dentro de fronteiras mutuamente concordadas e internacionalmente reconhecidas”. Pediu ao Senhor que sustente “os esforços de quantos, na Comunidade Internacional, se sentem animados pela boa vontade de ajudar aquela martirizada terra a encontrar – não obstante os graves obstáculos – a concórdia, a justiça e a segurança por que há muito aguarda”. (Alguns veem aqui um recado a Donald Trump e um apelo à ONU).
E não deixou de ver a presença de Jesus “no rosto das crianças sírias, ainda feridas pela guerra que ensanguentou o país nestes anos”, esperando que o país encontre “o respeito pela dignidade de todos, através dum esforço concorde por reconstruir o tecido social, independentemente da pertença étnica e religiosa”. Sente a presença de Jesus “nas crianças do Iraque, ainda contuso e dividido pelas hostilidades que o afetaram nos últimos 15 anos, e nas crianças do Iémen, onde perdura um conflito em grande parte esquecido, mas com profundas implicações humanitárias sobre a população que padece a fome e a propagação de doenças”.
Contempla Jesus presente nas crianças da África, “nas que sofrem no Sudão do Sul, na Somália, no Burundi, na República Democrática do Congo, na República Centro-Africana e na Nigéria” e “nas crianças de todo o mundo, onde a paz e a segurança se encontram ameaçadas pelo perigo de tensões e novos conflitos”.  
E não esqueceu a península coreana, onde é necessário suplantar “as contraposições e aumentar a confiança mútua, no interesse do mundo inteiro”. Confiou ao Deus Menino a Venezuela, “para que possa retomar um confronto sereno entre os diversos componentes sociais em benefício de todo o amado povo venezuelano”. Considerou “as crianças que padecem, juntamente com suas famílias, as violências do conflito na Ucrânia e as suas graves repercussões humanitárias”, rezando “para que o Senhor conceda, o mais depressa possível, a paz” àquele país.
Sente a presença de Jesus “nas crianças, cujos pais não têm emprego, provando dificuldade em oferecer aos filhos um futuro seguro e tranquilo, e naquelas cuja infância foi roubada, obrigadas a trabalhar desde tenra idade ou alistadas como soldados por mercenários sem escrúpulos”.
E voltou às crianças migrantes e refugiadas, “as inúmeras crianças constrangidas a deixar o seu país, viajando sozinhas em condições desumanas, presa fácil dos traficantes de seres humanos”, vendo, nos seus olhos, “o drama de tantos migrantes forçados que chegam a pôr a vida em risco”, ao enfrentarem “viagens extenuantes que, por vezes, acabam em tragédia”.
E revê Jesus nas crianças que encontrou na viagem ao Myanmar e ao Bangladesh, esperando “que a Comunidade Internacional não cesse de trabalhar para que seja adequadamente tutelada a dignidade das minorias presentes na região”. Na verdade, como diz, “Jesus conhece bem a tribulação de não ser acolhido e a dificuldade de não ter um lugar onde poder reclinar a cabeça”. Pedindo “que o nosso coração não fique fechado como as casas de Belém”, garante que “também a nós é indicado, como sinal do Natal, ‘um menino envolto em panos’ (Lc 2,12)” e quer que, tal “como a Virgem Maria e São José e como os pastores de Belém, acolhamos no Menino Jesus o amor de Deus feito homem por nós” e nos comprometamos, “com a sua graça, a tornar o nosso mundo mais humano, mais digno das crianças de hoje e de amanhã”.
Por fim, formulou votos por “que o nascimento de Cristo Salvador renove os corações, suscite o desejo de construir um futuro mais fraterno e solidário, conceda alegria e esperança a todos”.
Com estes sentimentos, livrar-nos-emos do terror dos Herodes de turno e construiremos, na esperança, o mundo de paz, alegria e fraternidade, com referência a Deus e serviço aos homens.

2017.12.26 – Louro de Carvalho

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