A denominação
é do Papa e foi utilizada na sua homilia da Missa da noite deste Natal de 2017.
É que o
Natal do Senhor não é marcado apenas pelo abandono a que os distraídos na
cidade de Belém votaram o divino Infante. É também assinalado pelo martírio dos
Santos Inocentes, cuja festa se faz a 28 de dezembro, na Oitava do Natal. Com efeito,
quando Herodes se sentiu sem a informação que solicitara aos magos sobre o
lugar do nascimento do Menino, alegadamente para também o ir adorar, decretou a
morte de todos os meninos de Belém e arredores com idade inferior a dois anos,
esperando aniquilar, por esta, via a sobrevivência do Rei dos Judeus.
No seu discurso
homilético, Francisco faz a atualização da figura sanguinária de Herodes.
***
O Papa
começou por mergulhar no ponto central da narrativa lucana:
“Completaram-se os dias de [Maria] dar à luz
e teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa
manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria” (Lc 2,6-7).
E diz que
Lucas, com esta afirmação nos leva ao coração da noite santa: Maria, dando à
luz, “deu-nos a Luz”.
É um “acontecimento que muda para sempre a nossa história”. De facto, “tudo, naquela
noite, se tornava fonte de esperança”.
Porém, o
Papa resolve tirar partido da sua perspicácia e fixa-se no facto de, por
decreto do imperador, Maria e José se terem visto “obrigados a partir”. Deixando
parentes, casa e terra, puseram-se a caminho para se recensearem. Foi “uma
viagem nada confortável nem fácil para um casal jovem que estava para ter um
bebé”. Porém, forçados a deixar a sua terra, “no coração, transbordavam de
esperança e de futuro por causa do filho que chegava”, embora sentissem “os
passos carregados com as incertezas e perigos próprios de quem tem de deixar a
sua casa”.
Depois,
tiveram de enfrentar a chegada a Belém sentindo na carne que “era uma terra que
não os esperava, uma terra onde não havia lugar para eles”. E Francisco aponta
a ótica de Deus:
“Mas foi precisamente lá, naquela realidade
que se revelava um desafio, que Maria nos presenteou com o Emanuel. O Filho de
Deus teve de nascer num curral, porque os seus não tinham espaço para Ele. ‘Veio para o que era seu, e os seus não O
receberam’ (Jo1,11). E lá,
no meio da escuridão duma cidade que não tem espaço nem lugar para o forasteiro
que vem de longe, no meio da escuridão duma cidade toda em movimento que
parecia querer, neste caso, edificar-se voltando as costas aos outros…
precisamente lá acende-se a centelha revolucionária da ternura de Deus.”.
Com a
centelha de luz a brilhar na cidade sem lugar para o forasteiro divino, inaugura-se
a revolução da ternura. E “criou-se uma pequena abertura para os que perderam a
terra, a pátria, os sonhos; mesmo para os que sucumbiram à asfixia produzida
por uma vida fechada”.
Assim, o
Papa pôde assegurar que “nos passos de José e Maria”, se escondem tantos
passos, “as pegadas de famílias inteiras que hoje são obrigadas a partir”. Nesses
passos, “vemos as pegadas de milhões de pessoas que não escolhem partir, mas
são obrigadas a separar-se dos seus entes queridos, são expulsas da sua terra”.
E é aqui que o Pontífice situa o contraste: “em muitos casos, esta partida está
carregada de esperança, carregada de futuro; mas, em tantos outros, a partida
tem apenas um nome: sobrevivência”. E é para aqui que se transpõe a figura de
Herodes. Não é só um; são vários. Não se trata de um Herodes que decreta e
passa aleatoriamente. É um serviço herodiano assumido por muitos. São vários os
Herodes de turno, “que, para impor o seu poder e aumentar as suas riquezas, não
têm problema algum em derramar sangue inocente”. E é a estes que e preciso
sobreviver, sendo por causa destes que muitos não conseguem sobreviver e se sepultam
no Mediterrâneo.
E, se Maria
e José, o casal “para quem não havia lugar”, são os primeiros a abraçar “Aquele
que nos vem dar a todos o documento de cidadania, aquele que, na sua pobreza e
pequenez, denuncia e mostra que o verdadeiro poder e a autêntica liberdade são
os que honram e socorrem a fragilidade do mais fraco”, nós devemos aprender a
lição: mais do que beijar uma imagem de barro ou de madeira do Menino do Presépio,
é preciso “beijar” quem não tem hoje um lugar digno para nascer e quem não tem “lugar
nas mesas e nas ruas da cidade”.
Naquela noite,
os pastores constituíram-se como os primeiros destinatários da Boa Notícia do
Natal do Salvador. Eles não tinham lugar na cidade, já que, “pelo seu trabalho,
eram homens e mulheres que tinham de viver à margem da sociedade”. Era a consequência
das “suas condições de vida”, dos “lugares onde eram obrigados a permanecer”. Impedidos
de “observar todas as prescrições rituais de purificação religiosa”, a
sociedade considerava-os “impuros”. Eram conhecidos na sua pele, nas roupas, no
odor, no modo de falar, na marca de origem. Tudo neles significava e “gerava
desconfiança”.
Diz o Papa
que eram “homens e mulheres de quem era preciso estar ao largo, recear; eram
considerados pagãos entre os crentes, pecadores entre os justos e estrangeiros
entre os cidadãos”. Porém, “a eles – pagãos, pecadores e estrangeiros – disse o
anjo: ‘Não temais, pois anuncio-vos uma
grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias
Senhor’.” (Lc 2,10-11).
É esta a
alegria anunciada em Belém que, segundo o Pontífice, “somos convidados a
partilhar, celebrar e anunciar”, “a alegria com que Deus, na sua infinita
misericórdia, nos abraçou a nós, pagãos, pecadores e estrangeiros,
e nos impele a fazer o mesmo”.
Esta fé “leva-nos
a reconhecer Deus presente em todas as situações onde O julgamos ausente”: por
exemplo, o “visitante indiscreto, muitas vezes irreconhecível, que caminha
pelas nossas cidades, pelos nossos bairros, viajando nos nossos transportes
públicos, batendo às nossas portas”. E isto acontece porque a fé, não se
fechando em si nem se encurralando em espaços fechados e egoístas, “impele-nos
a abrir espaço a uma nova imaginação social, a não ter medo de experimentar
novas formas de relacionamento onde ninguém deva sentir que não tem um lugar
nesta terra”.
Por isso, Natal
é tempo de desafios. E o maior desafio é o de “transformar a força do medo em
força da caridade, em força para uma nova imaginação da caridade”. E “a
caridade que não se habitua à injustiça como se fosse algo natural”, tem a
coragem de enfrentar os Herodes de turno e de, “no meio de tensões e conflitos,
se fazer ‘casa do pão’ (Belém), terra de
hospitalidade”. Nestes termos São João Paulo II desafiava na homilia da Missa de
início do Pontificado:
“Não tenhais medo! Abri, antes, escancarai
as portas a Cristo”.
E contemplando
o mistério do Natal, Francisco prossegue:
“No Menino de Belém, Deus vem ao nosso
encontro para nos tornar protagonistas da vida que nos rodeia. Oferece-Se para
que O tomemos nos braços, para que O levantemos e abracemos; para que n’Ele não
tenhamos medo de tomar nos braços, levantar e abraçar o sedento, o forasteiro,
o nu, o doente, o recluso (cf Mt 25,35-36).
‘Não tenhais medo! Abri, antes, escancarai as portas a Cristo’. Neste Menino,
Deus convida-nos a cuidar da esperança. Convida-nos a fazer-nos sentinelas para
muitos que sucumbiram sob o peso da desolação, que deriva do facto de encontrar
tantas portas fechadas. Neste Menino, Deus torna-nos protagonistas da sua
hospitalidade.”
O Natal que
nos fixa na lição do presépio faz-nos ultrapassar a lógica das imagens e
abre-nos ao Cristo real presente nas vítimas do azar da indiferença dos homens e
dos Herodes que, para satisfação da sua ambição desmedida e do seu capricho,
não se importam de banhar em sangue humano as aras do deus-dinheiro, do
deus-poder, do deus-prestígio, do deus-egoísmo.
Assim, o
Papa reza no termo da homilia a oração social e pastoral da caridade, justiça e
cuidado:
“Comovidos pelo jubiloso dom, Menino
pequenino de Belém, pedimo-Vos que o vosso choro nos desperte da nossa
indiferença, abra os olhos perante quem sofre. A vossa ternura desperte a nossa
sensibilidade e nos faça sentir convidados a reconhecer-Vos em todos aqueles
que chegam às nossas cidades, às nossas histórias, às nossas vidas. Que a vossa
ternura revolucionária nos persuada a sentir-nos convidados a cuidar da
esperança e da ternura do nosso povo.”.
***
Também, antes da bênção Urbi et Orbi, Francisco começou por
falar do nascimento de Jesus da Virgem em Belém, não “por vontade humana, mas por “dom de amor
de Deus Pai, que tanto amou o mundo, que
lhe entregou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que n’Ele crê não se
perca, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). E frisou que este acontecimento se renova “hoje na Igreja,
peregrina no tempo”. Com efeito, “a fé do povo cristão revive, na liturgia do
Natal, o mistério de Deus que vem e assume a nossa carne mortal, fazendo-Se
pequenino e pobre para nos salvar”, o que nos enche “de comoção, porque é
demasiado grande a ternura do nosso Pai”.
E insistiu, na
linha da Missa da Noite:
“Os
primeiros, depois de Maria e José, a ver a glória humilde do Salvador foram os
pastores de Belém. Reconheceram o sinal que lhes fora anunciado pelos anjos e
adoraram o Menino. Aqueles homens, humildes mas vigilantes, são um exemplo para
os crentes de todos os tempos que, diante do mistério de Jesus, não se
escandalizam da sua pobreza, mas, como Maria, fiam-se da palavra de Deus e, com
olhos simples, contemplam a sua glória.”.
Depois, reconheceu
que, “perante o mistério do Verbo encarnado”, os cristãos de toda a parte, que
reconhecem na manjedoura de Belém o sinal do nosso Deus, confessam, com as
palavras de João evangelista: “contemplamos
a sua glória, a glória que possui como Filho Unigénito do Pai, cheio de graça e
de verdade” (1,14).
A seguir, olhou para os “ventos de guerra” que “sopram no
mundo” e para o “modelo de progresso já ultrapassado” que “continua a produzir
degradação humana, social e ambiental”, e disse que o Natal nos lembra “o sinal
do Menino” e nos convida a “reconhecê-Lo no rosto das crianças”, sobretudo
daquelas para as quais, como sucedeu a Jesus, “não há lugar na hospedaria” (Lc 2,7).
E apontou
Jesus presente “nas crianças do Médio Oriente”, que sofrem “pelo agravamento
das tensões entre israelitas e palestinenses”, implorando “do Senhor a paz para
Jerusalém e para toda a Terra Santa” e rezando “para que prevaleça, entre as
Partes, a vontade de retomar o diálogo” e se possa chegar “a uma solução
negociada que permita a coexistência pacífica de dois Estados dentro de
fronteiras mutuamente concordadas e internacionalmente reconhecidas”. Pediu ao
Senhor que sustente “os esforços de quantos, na Comunidade Internacional, se
sentem animados pela boa vontade de ajudar aquela martirizada terra a encontrar
– não obstante os graves obstáculos – a concórdia, a justiça e a segurança por
que há muito aguarda”. (Alguns veem aqui um recado a Donald Trump e um apelo à
ONU).
E não deixou
de ver a presença de Jesus “no rosto das crianças sírias, ainda feridas pela
guerra que ensanguentou o país nestes anos”, esperando que o país encontre “o
respeito pela dignidade de todos, através dum esforço concorde por reconstruir
o tecido social, independentemente da pertença étnica e religiosa”. Sente a
presença de Jesus “nas crianças do Iraque, ainda contuso e dividido pelas
hostilidades que o afetaram nos últimos 15 anos, e nas crianças do Iémen, onde
perdura um conflito em grande parte esquecido, mas com profundas implicações
humanitárias sobre a população que padece a fome e a propagação de doenças”.
Contempla Jesus presente nas crianças da África, “nas que
sofrem no Sudão do Sul, na Somália, no Burundi, na República Democrática do
Congo, na República Centro-Africana e na Nigéria” e “nas crianças de todo o
mundo, onde a paz e a segurança se encontram ameaçadas pelo perigo de tensões e
novos conflitos”.
E não esqueceu
a península coreana, onde é necessário suplantar “as contraposições e aumentar
a confiança mútua, no interesse do mundo inteiro”. Confiou ao Deus Menino a
Venezuela, “para que possa retomar um confronto sereno entre os diversos
componentes sociais em benefício de todo o amado povo venezuelano”. Considerou “as
crianças que padecem, juntamente com suas famílias, as violências do conflito
na Ucrânia e as suas graves repercussões humanitárias”, rezando “para que o
Senhor conceda, o mais depressa possível, a paz” àquele país.
Sente a
presença de Jesus “nas crianças, cujos pais não têm emprego, provando dificuldade
em oferecer aos filhos um futuro seguro e tranquilo, e naquelas cuja infância
foi roubada, obrigadas a trabalhar desde tenra idade ou alistadas como soldados
por mercenários sem escrúpulos”.
E voltou às crianças migrantes e refugiadas, “as inúmeras
crianças constrangidas a deixar o seu país, viajando sozinhas em condições
desumanas, presa fácil dos traficantes de seres humanos”, vendo, nos seus
olhos, “o drama de tantos migrantes forçados que chegam a pôr a vida em risco”,
ao enfrentarem “viagens extenuantes que, por vezes, acabam em tragédia”.
E revê Jesus
nas crianças que encontrou na viagem ao Myanmar e ao Bangladesh, esperando “que
a Comunidade Internacional não cesse de trabalhar para que seja adequadamente
tutelada a dignidade das minorias presentes na região”. Na verdade, como diz, “Jesus
conhece bem a tribulação de não ser acolhido e a dificuldade de não ter um
lugar onde poder reclinar a cabeça”. Pedindo “que o nosso coração não fique
fechado como as casas de Belém”, garante que “também a nós é indicado, como
sinal do Natal, ‘um menino envolto em panos’ (Lc 2,12)” e quer que, tal “como a Virgem
Maria e São José e como os pastores de Belém, acolhamos no Menino Jesus o amor
de Deus feito homem por nós” e nos comprometamos, “com a sua graça, a tornar o
nosso mundo mais humano, mais digno das crianças de hoje e de amanhã”.
Por fim,
formulou votos por “que o nascimento de Cristo Salvador renove os corações,
suscite o desejo de construir um futuro mais fraterno e solidário, conceda
alegria e esperança a todos”.
Com estes sentimentos,
livrar-nos-emos do terror dos Herodes de turno e construiremos, na esperança, o
mundo de paz, alegria e fraternidade, com referência a Deus e serviço aos
homens.
2017.12.26 – Louro de Carvalho
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