O enunciado em epígrafe veicula duas das principais
ideias deixadas, no passado dia 5 de dezembro, ao “Educare, portal da educação” pelos professores Ariana Cosme e Rui
Trindade, dois dos sete consultores-assessores do Projeto de Autonomia e
Flexibilidade Curricular (PAFC),
experiência-piloto que está em curso em mais de duas centenas de agrupamentos
de escolas e que dá azo a uma nova organização curricular. Fundir disciplinas, poder
acabar com os testes, apostar em projetos interdisciplinares são possibilidades
inerentes a este modelo – o que significa “pensar a escola de uma outra forma”
e pôr os alunos a pensar e não só a memorizar.
As preditas personalidades
são professores doutorados da Faculdade
de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto e integram o
grupo dos sete consultores com funções de assessoria do PAFC, que avançou, neste
ano letivo, em 230 agrupamentos que representam cerca de 800 escolas, 45 mil
alunos e 6 mil professores. Os aderentes podem gerir até 25% da carga letiva
semanal, desde que cumpram programas e metas curriculares e tenham em conta as
aprendizagens essenciais definidas a nível central.
Esta organização deverá generalizar-se a todo o país
nos próximos anos, pois, segundo Ariana Cosme, “não é possível continuar tudo como está”. Diz a professora
universitária:
“Os alunos não querem estar na sala de aula,
os professores não estão felizes em tentar mantê-los presos à sala de aula,
temos disciplinas atomizadas, repetem-se coisas em disciplinas diferentes”.
Por isso, importa “questionar práticas, ter
ferramentas pedagógicas mais ativas, envolver os alunos nos processos de
decisão, perceber se os testes fazem ou não sentido na avaliação, juntar
disciplinas”. E a consultora-assessora do projeto sustenta:
“O projeto é interessante porque não há uma
forma para o país, há todas as formas que os 230 agrupamentos quiserem, só
precisam de garantir que os alunos aprendem mais e melhor e naturalmente que os
programas sejam cumpridos”.
Já Rui Trindade frisa que “o projeto permite outras possibilidades de fazer as coisas e romper com
ideias feitas” – o que “é urgente,
mas não pode ser feito à pressa”. Com efeito, “a escola não pode continuar como uma coisa à parte dos alunos”. E
sublinha:
“O que é interessante é que o Ministério da
Educação, pela primeira vez, não impõe o que as escolas devem fazer,
oferece-lhes um conjunto de possibilidades e as escolas, dentro desse conjunto,
vão tomar opções”.
***
E respondem às questões lançadas pelo Educare. Assim, em relação às principais
alterações que as escolas vão sentir com o projeto e se o sistema estará
preparado, a resposta consiste em “ter maior liberdade, maior
responsabilidade, em tomar decisões no desenho curricular”, o que representa o
desafio “a pensar de outra forma a escola, muito a partir desta ideia que é
clara para todos: as coisas não podem continuar como estão”. E Ariana Cosme exemplifica:
“Em vários anos de escolaridade, a mesma matéria no
6.º, no 7.º, no 8.º ano, às vezes de forma pouco interligada. Professores que
conhecem mal os conteúdos que os outros professores trabalham. Apesar da
unidade dos conselhos de turma no 2.º, 3.º Ciclo e Secundário, os professores
sabem pouco o que os outros fazem e os alunos não veem depois significado real
das coisas que aprendem em cada disciplina.”.
Penso que não é bem assim. A investigadora esquece o
caráter cíclico e evolutivo das aprendizagens e podia saber que os conselhos de
turma são chamados a produzir os projetos curriculares de turma, assim como há
encontros de articulação entre ciclos. Parece que se ignora o que se faz nas
escolas, pensando que se descobriu agora a pólvora do sucesso.
Quanto à questão de o
projeto corresponder às expectativas e necessidades dos alunos, dizem não saber
se corresponde às expectativas, mas que responde às necessidades. De facto, “os alunos precisam que a escola mude,
que se torne mais interessante, mais desafiante”.
Rui Trindade até sustenta que os alunos “possam ser objeto de
reflexão”, acusando que as pessoas funcionam muito em torno dos manuais. Por
isso, defende que, sendo preciso “pensar as coisas do ponto de vista
interdisciplinar, das questões da contextualização, espera-se que os alunos
sejam tidos em conta” e que “possam ter alguma margem de manobra”. Não se
trata de “responder às necessidades e interesses dos meninos, porque, muitas
vezes, a necessidade é criar outros interesses e outras necessidades”, mas é
preciso ter em conta o que eles são, o que eles sabem e o que se espera que
eles venham a ser.
E Ariana Cosme explica como
é que os alunos são chamados a participar:
“Com metodologias de trabalho mais dinâmicas, prever a
participação dos alunos desde a planificação à gestão. 25% da carga horária
semanal – e esta é a grande flexibilidade que é dada às escolas que estão no
projeto-piloto – pode ser pensada de outra forma. O projeto é interessante
porque não há uma forma para o país, há todas as formas que os 230 agrupamentos
quiserem. Só precisam de garantir que os alunos aprendem mais e melhor e
naturalmente que os programas sejam cumpridos, que as aprendizagens essenciais
definidas em julho sejam respeitadas e, sobretudo, que seja atingido o perfil
terminal de aluno que foi definido.”.
Depois, releva a existência “de documentos
orientadores para uma nova política educativa, sempre num projeto de escola
mais democrática”, onde se aprenda mais e melhor, “onde os alunos possam ser
chamados a participar mais no seu processo”, sendo que “este projeto de
autonomia é uma das ferramentas”. E salienta que, “ao lado deste, há um
outro projeto que se chama Projeto Piloto de Inovação Pedagógica (PPIP)”,
referindo que há seis PPIP, ou seja, “há seis agrupamentos que têm 100% de
liberdade, mais a Escola da Ponte, que já tem liberdade há muitos anos e que já
tinha construído o seu próprio projeto”.
Entretanto Rui Trindade
adverte que “é uma liberdade balizada, porque as matrizes
curriculares continuam a ser as mesmas”.
E Ariana Cosme frisa que “os tempos e os programas não
podem ser alterados, mas sim a forma como os tempos podem ser geridos”. E
explica:
“Há seis PPIP, uma experiência pedagógica
que já começou no ano passado, que têm 100% de autonomia ao nível curricular.
Podem desenhar, até funcionar por semestre em vez de trimestre, organizar os
professores de outra maneira. Têm total liberdade, os outros 230 não, só têm 25%
da carga letiva, o equivalente à carga letiva semanal. No final do ano, podem
usar 25% das horas para trabalhar de outra maneira, de uma maneira que
signifique melhor.”.
Porém, tal não
significa acabar com
disciplinas, mas fundir algumas em alguns momentos do trabalho. Contudo, há
liberdade para criar outras ao nível da oferta de escola. E explicita-se:
“Os 25% da carga horária semanal podem ser
usados para desenhar uma oferta transdisciplinar, misturar Português com
Geografia e História, passarem uma vez por semana a trabalhar juntas. Pega-se
nas horas para costurar o que é possível costurar. Mas, daí a dois ou três
meses, pode-se decidir que já não há nada para costurar e que tinha sentido que
Matemática, Ciências e Educação Físico-Motora trabalhassem de forma mais
articulada.”.
Fala-se de “um conceito novo”: “o domínio de autonomia
curricular, domínio de articulação curricular, onde se podem misturar
disciplinas”, podendo, aos poucos, fundir-se disciplinas, para a acabar com
esta atomização. No 3.º Ciclo, os alunos têm 13 disciplinas, isto não tem
sentido nenhum. Na vida, os saberes são encadeados.
Ora, estes
ilustres consultores-assessores do PAFC esquecem a batalha travada por Manuel
Ferreira Patrício, no âmbito da Reforma Educativa de Roberto Carneiro, em torno
da “Escola Cultural”, exatamente contra a atomização disciplinar, baseada em
clubes de ensino/aprendizagem – projeto que não foi absorvido ao tempo. Isto
para dizer que não se trata propriamente de um conceito novo (ou dum novo paradigma), mas do desconhecimento do conceito
novo, que poderia ter necessidade de aperfeiçoamento ou reformulação se tivesse
vingado.
***
Pelos vistos, o resto da
Europa não serve de exemplo. Ariana Cosme dá conta da situação:
“O resto da
Europa está mais ou menos organizado por disciplinas, mas penso que nenhum tem
tantas como nós. Claro que países do Norte da Europa que são sempre chamados
para dar exemplos, como a Finlândia, estão com experiências pedagógicas há
alguns anos. A Dinamarca, a Noruega, já há muito tempo que trabalham por
frentes, por áreas disciplinares.”.
Também nós estamos em fase
de experiência que se iniciou em anos iniciais de ciclo, que “para o ano estarão no segundo ano da experiência”. E a ideia é que “este projeto
seja generalizado a todo o país”. Entretanto, o Secretário de Estado da
Educação diz que há sempre liberdade das escolas que não quiserem a
flexibilidade curricular, que querem ter autonomia zero, ficarem na mesma com o
currículo espartilhado em 13 disciplinas. As escolas são diferentes, já
têm projetos diferentes, só se vai clarificar a diferença. O privado tem
balizas nacionais, mas têm desenhos diferentes. No público, a Escola da Ponte é
o melhor exemplo: obedece às balizas nacionais, mas acabou com as disciplinas,
os professores são tutores dos alunos.
Também os consultores-assessores esquecem que o ensino
básico já trabalhou por áreas disciplinares. Foi Nuno Crato quem impôs o
estrito regime disciplinar.
***
Alguns diretores escolares
objetam que se tem de ter em conta a instabilidade do corpo docente – professores
que andam dum lado para o outro não conseguem acompanhar os alunos, acompanhar
o projeto. A isto, Ariana Cosme atalha com a situação de envelhecimento
docente:
“Apesar de tudo, a mobilidade docente é muito mais
baixa relativamente à estabilidade. Estamos com problemas gravíssimos de
excesso de estabilidade, estamos envelhecidíssimos, não há professores jovens
no sistema há muitos anos. Entram muito tarde, com 30 e tal anos. Estamos com
um problema de envelhecimento claro. Ao nível do 1.º Ciclo e do pré-escolar, a
estabilidade é quase total. A estabilidade que se adivinha é enorme, até desejaríamos
maior renovação.”.
E, tirando partido da dinâmica nacional que se
pretende, aduz:
“A partir do momento em que há uma dinâmica
nacional, os professores estarão todos apropriados de ferramentas mais
interessantes, sobretudo mais ativas. O desafio é, primeiro, respostas mais
contextualizadas, não é ter um desenho nacional, mas cada escola poder fazer o
desenho das suas necessidades, práticas e metodologias de trabalho dos
professores cada vez mais ativas, colocando os seus alunos a fazer, a pensar, a
discutir.”.
É preciso sair da situação em que:
“As aulas são os professores que as dão, os
alunos estão quietos a ouvi-las, como os alunos não estão quietos não as ouvem.
Não as ouvem, há uma tensão enorme. O problema é o modelo da escola. Os alunos
não conseguem estar sentados, não conseguem ouvir o professor.”.
E a solução é:
“Tê-los ativos em pé, de joelhos, sentados,
a trabalhar, a trabalhar, a trabalhar. Quando estão a trabalhar, estão
ocupadíssimos e as evidências demonstram que produzem coisas fantásticas, que
consolidam aprendizagens de uma forma mais efetiva.”.
Rui Trindade esclarece mais
uma vez:
“As escolas não foram obrigadas, só
alinharam neste projeto escolas que queriam. O que é interessante é que o
Ministério da Educação, pela primeira vez, não impõe o que as escolas devem
fazer, oferece-lhes um conjunto de possibilidades e as escolas, dentro desse
conjunto, vão tomar opções.”.
E Ariana Cosme atalha com a
diversidade das escolas e dos ritmos da experiência:
“Há escolas que só estão a fazer 5.º, 7.º e
10.º anos. Há escolas que só estão a fazer 1.º e 5.º, há escolas que só estão a
fazer algumas turmas do 5.º ano. Se o corpo docente é mais estável, se
está mais bem organizado, se tem gente mais disponível para usar ferramentas de
metodologias ativas. Ou, pelo contrário, se tem muita gente presa à aula que se
dá, ao teste que se faz. Este projeto não se faz contra os professores.”.
***
E, no caldo de cultura que
se criou sobre a relevância de testes e exames, tinha que vir a pergunta se os
testes se mantêm. Ariana Cosme é perentória:
“Só para quem quer. Os exames nacionais mantêm-se, os
testes não.”.
E Rui Trindade diz uma coisa
que muitos deviam ouvir:
“Mesmo hoje os professores não são obrigados a dar
testes. A lei só obriga a ter exames no 9.º ano e no Secundário. Também é
preciso pensar se a matriz das provas de aferição e dos exames se adequa não só
a este projeto, mas ao perfil do aluno do século XXI. Se temos um perfil que
depois não é para cumprir…”.
Ariana Cosme adianta:
“Há professores que vão fazer uma mistura,
vão dar alguns testes porque, apesar de tudo, se sentem confortáveis com algum
instrumento de natureza sumativa – que achamos que não tem qualquer interesse,
porque o instrumento que regula e determina a avaliação nacional em Portugal, a
sua principal modalidade de avaliação, é formativo porque resulta da recolha
contínua e sistemática de indicadores de sucesso e de dificuldades dos alunos,
e os testes não fazem esta recolha sistemática, são sumativos. Temos consciência
de que os alunos produzem muito pouco, a única coisa que precisam de produzir
é, de dois em dois meses, um teste. E isto não pode ser.”.
E porfia pela mudança contra a simples memorização:
“Nós também temos esperança de que isto
ajude os professores a perceberem que há outros materiais, não de desempenho
máximo, onde ficam mais claras as evidências do que o aluno efetivamente
aprendeu ou não aprendeu. Interessa-nos muito o que o aluno não aprende, mas
não é para o chumbar, é para que o professor e a escola possam definir
trabalhos para o ensinar. Não podemos ter os alunos a saírem da escola sem
saber.”.
Rui Trindade aproveita o
ensejo para censurar os professores que não estão habituados a escrever, a analisar criticamente um texto, a ler um
programa e a pensar sobre esse programa e os seus fundamentos.
***
Em suma, os
grandes desafios desta nova forma de organização curricular são: pensar
de forma contextualizada; ser capaz de olhar para um programa, perceber quais
os objetivos e pensar porque é que isto é importante. O grande desafio é pensar
a ação docente; perceber até que ponto a relação do professor com a aula e com
os alunos não os impede de aprender.
Alguns professores estão disponíveis
para se questionarem e questionarem as suas práticas; outros vão nesse caminho.
Em todo o caso, Rui Trindade afirma:
“Vai ser difícil, mas tem que ser, até porque é o
futuro que está em jogo. É preciso que estas coisas tenham significado e, em
larga medida, é uma responsabilidade inicial dos professores da forma como
planificam e da forma como pensam o que vão propor aos alunos. Há um processo
de intermediação de trabalho que precisa de ser feito com algum significado.
Não estou dizer que se devem retirar as dificuldades aos alunos.”.
E Ariana Cosme assegura que os professores não estão sozinhos e que é importante
trabalharem em equipas educativas. De facto, com
este projeto abrem-se novas possibilidades: semanas temáticas, projetos
interdisciplinares... E sustenta a consultora-assessora:
“É para muitos meninos a última grande oportunidade. A
vida nunca mais lhes trará um professor de Física, de Filosofia, alguém de
Literatura. A escola não pode passar ao lado desses alunos e passa porque
metade do tempo estão aos gritos com eles, zangados com eles, e eles zangados
com a escola. Entre as faltas, ‘do vai para a rua’, ‘não me chateies’, ‘chama a
diretora’, a escola é tão pouco produtiva. Não vai ser nada simples, há escolas
e professores que vão precisar de mais tempo, e há professores que nunca compreenderão.”.
E Rui Trindade remata:
“Há questões que qualquer professor tem de
responder. O que é que desejo que os meus alunos aprendam. O que é que eu vou
fazer para que os meus alunos aprendam aquilo que desejo que aprendam. E como
vou avaliar isso, quer o que eles aprenderam, quer aquilo que eu fiz. […]. É
preciso aprender a pensar. Para o projeto ser bem-sucedido, os professores são
obrigados a pensar sobre o que é que andam a propor aos alunos, a pensar qual é
a magnitude dos desafios culturais com que estão a confrontar os alunos.”.
***
É
preciso que o professor se questione sobre o desempenho e as práticas
pedagógicas, que leia e escreva, que analise criticamente programas e
legislação. Mas o projeto não é inteiramente novo (ignora
trabalho que vem sendo feito)
nem resolve por si o problema da escola, sobretudo se constrangido pelas aprendizagens
essenciais e exames (nunca os testes foram obrigatórios), sendo que a avaliação externa
se cinge ao currículo nacional. Não estaremos perante um flop?
Sempre
se apostou em ensinar o aluno a pensar e se combateu a pura memorização…
2017.12.10 – Louro
de Carvalho
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