domingo, 10 de dezembro de 2017

É preciso aprender a pensar: os alunos precisam que a escola mude

O enunciado em epígrafe veicula duas das principais ideias deixadas, no passado dia 5 de dezembro, ao “Educare, portal da educação” pelos professores Ariana Cosme e Rui Trindade, dois dos sete consultores-assessores do Projeto de Autonomia e Flexibilidade Curricular (PAFC), experiência-piloto que está em curso em mais de duas centenas de agrupamentos de escolas e que dá azo a uma nova organização curricular. Fundir disciplinas, poder acabar com os testes, apostar em projetos interdisciplinares são possibilidades inerentes a este modelo – o que significa “pensar a escola de uma outra forma” e pôr os alunos a pensar e não só a memorizar.
As preditas personalidades são professores doutorados da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto e integram o grupo dos sete consultores com funções de assessoria do PAFC, que avançou, neste ano letivo, em 230 agrupamentos que representam cerca de 800 escolas, 45 mil alunos e 6 mil professores. Os aderentes podem gerir até 25% da carga letiva semanal, desde que cumpram programas e metas curriculares e tenham em conta as aprendizagens essenciais definidas a nível central.
Esta organização deverá generalizar-se a todo o país nos próximos anos, pois, segundo Ariana Cosme, “não é possível continuar tudo como está”. Diz a professora universitária:
Os alunos não querem estar na sala de aula, os professores não estão felizes em tentar mantê-los presos à sala de aula, temos disciplinas atomizadas, repetem-se coisas em disciplinas diferentes”.
Por isso, importa “questionar práticas, ter ferramentas pedagógicas mais ativas, envolver os alunos nos processos de decisão, perceber se os testes fazem ou não sentido na avaliação, juntar disciplinas”. E a consultora-assessora do projeto sustenta:
O projeto é interessante porque não há uma forma para o país, há todas as formas que os 230 agrupamentos quiserem, só precisam de garantir que os alunos aprendem mais e melhor e naturalmente que os programas sejam cumpridos”. 
Já Rui Trindade frisa que “o projeto permite outras possibilidades de fazer as coisas e romper com ideias feitas” – o que “é urgente, mas não pode ser feito à pressa”. Com efeito, “a escola não pode continuar como uma coisa à parte dos alunos”. E sublinha:
O que é interessante é que o Ministério da Educação, pela primeira vez, não impõe o que as escolas devem fazer, oferece-lhes um conjunto de possibilidades e as escolas, dentro desse conjunto, vão tomar opções”.
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E respondem às questões lançadas pelo Educare. Assim, em relação às principais alterações que as escolas vão sentir com o projeto e se o sistema estará preparado, a resposta consiste em ter maior liberdade, maior responsabilidade, em tomar decisões no desenho curricular”, o que representa o desafio “a pensar de outra forma a escola, muito a partir desta ideia que é clara para todos: as coisas não podem continuar como estão”. E Ariana Cosme exemplifica:
Em vários anos de escolaridade, a mesma matéria no 6.º, no 7.º, no 8.º ano, às vezes de forma pouco interligada. Professores que conhecem mal os conteúdos que os outros professores trabalham. Apesar da unidade dos conselhos de turma no 2.º, 3.º Ciclo e Secundário, os professores sabem pouco o que os outros fazem e os alunos não veem depois significado real das coisas que aprendem em cada disciplina.”. 
Penso que não é bem assim. A investigadora esquece o caráter cíclico e evolutivo das aprendizagens e podia saber que os conselhos de turma são chamados a produzir os projetos curriculares de turma, assim como há encontros de articulação entre ciclos. Parece que se ignora o que se faz nas escolas, pensando que se descobriu agora a pólvora do sucesso.
Quanto à questão de o projeto corresponder às expectativas e necessidades dos alunos, dizem não saber se corresponde às expectativas, mas que responde às necessidades. De facto, “os alunos precisam que a escola mude, que se torne mais interessante, mais desafiante”. 
Rui Trindade até sustenta que os alunos “possam ser objeto de reflexão”, acusando que as pessoas funcionam muito em torno dos manuais. Por isso, defende que, sendo preciso “pensar as coisas do ponto de vista interdisciplinar, das questões da contextualização, espera-se que os alunos sejam tidos em conta” e que “possam ter alguma margem de manobra”. Não se trata de “responder às necessidades e interesses dos meninos, porque, muitas vezes, a necessidade é criar outros interesses e outras necessidades”, mas é preciso ter em conta o que eles são, o que eles sabem e o que se espera que eles venham a ser. 
E Ariana Cosme explica como é que os alunos são chamados a participar:
Com metodologias de trabalho mais dinâmicas, prever a participação dos alunos desde a planificação à gestão. 25% da carga horária semanal – e esta é a grande flexibilidade que é dada às escolas que estão no projeto-piloto – pode ser pensada de outra forma. O projeto é interessante porque não há uma forma para o país, há todas as formas que os 230 agrupamentos quiserem. Só precisam de garantir que os alunos aprendem mais e melhor e naturalmente que os programas sejam cumpridos, que as aprendizagens essenciais definidas em julho sejam respeitadas e, sobretudo, que seja atingido o perfil terminal de aluno que foi definido.”.
Depois, releva a existência “de documentos orientadores para uma nova política educativa, sempre num projeto de escola mais democrática”, onde se aprenda mais e melhor, “onde os alunos possam ser chamados a participar mais no seu processo”, sendo que “este projeto de autonomia é uma das ferramentas”. E salienta que, “ao lado deste, há um outro projeto que se chama Projeto Piloto de Inovação Pedagógica (PPIP)”, referindo que há seis PPIP, ou seja, “há seis agrupamentos que têm 100% de liberdade, mais a Escola da Ponte, que já tem liberdade há muitos anos e que já tinha construído o seu próprio projeto”.
Entretanto Rui Trindade adverte queé uma liberdade balizada, porque as matrizes curriculares continuam a ser as mesmas”.
E Ariana Cosme frisa que “os tempos e os programas não podem ser alterados, mas sim a forma como os tempos podem ser geridos”. E explica:
Há seis PPIP, uma experiência pedagógica que já começou no ano passado, que têm 100% de autonomia ao nível curricular. Podem desenhar, até funcionar por semestre em vez de trimestre, organizar os professores de outra maneira. Têm total liberdade, os outros 230 não, só têm 25% da carga letiva, o equivalente à carga letiva semanal. No final do ano, podem usar 25% das horas para trabalhar de outra maneira, de uma maneira que signifique melhor.”. 
Porém, tal não significa acabar com disciplinas, mas fundir algumas em alguns momentos do trabalho. Contudo, há liberdade para criar outras ao nível da oferta de escola. E explicita-se:
Os 25% da carga horária semanal podem ser usados para desenhar uma oferta transdisciplinar, misturar Português com Geografia e História, passarem uma vez por semana a trabalhar juntas. Pega-se nas horas para costurar o que é possível costurar. Mas, daí a dois ou três meses, pode-se decidir que já não há nada para costurar e que tinha sentido que Matemática, Ciências e Educação Físico-Motora trabalhassem de forma mais articulada.”.
Fala-se de “um conceito novo”: “o domínio de autonomia curricular, domínio de articulação curricular, onde se podem misturar disciplinas”, podendo, aos poucos, fundir-se disciplinas, para a acabar com esta atomização. No 3.º Ciclo, os alunos têm 13 disciplinas, isto não tem sentido nenhum. Na vida, os saberes são encadeados.  
Ora, estes ilustres consultores-assessores do PAFC esquecem a batalha travada por Manuel Ferreira Patrício, no âmbito da Reforma Educativa de Roberto Carneiro, em torno da “Escola Cultural”, exatamente contra a atomização disciplinar, baseada em clubes de ensino/aprendizagem – projeto que não foi absorvido ao tempo. Isto para dizer que não se trata propriamente de um conceito novo (ou dum novo paradigma), mas do desconhecimento do conceito novo, que poderia ter necessidade de aperfeiçoamento ou reformulação se tivesse vingado.
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Pelos vistos, o resto da Europa não serve de exemplo. Ariana Cosme dá conta da situação:
O resto da Europa está mais ou menos organizado por disciplinas, mas penso que nenhum tem tantas como nós. Claro que países do Norte da Europa que são sempre chamados para dar exemplos, como a Finlândia, estão com experiências pedagógicas há alguns anos. A Dinamarca, a Noruega, já há muito tempo que trabalham por frentes, por áreas disciplinares.”. 
Também nós estamos em fase de experiência que se iniciou em anos iniciais de ciclo, que “para o ano estarão no segundo ano da experiência”.  E a ideia é que “este projeto seja generalizado a todo o país”. Entretanto, o Secretário de Estado da Educação diz que há sempre liberdade das escolas que não quiserem a flexibilidade curricular, que querem ter autonomia zero, ficarem na mesma com o currículo espartilhado em 13 disciplinas.  As escolas são diferentes, já têm projetos diferentes, só se vai clarificar a diferença. O privado tem balizas nacionais, mas têm desenhos diferentes. No público, a Escola da Ponte é o melhor exemplo: obedece às balizas nacionais, mas acabou com as disciplinas, os professores são tutores dos alunos.  
Também os consultores-assessores esquecem que o ensino básico já trabalhou por áreas disciplinares. Foi Nuno Crato quem impôs o estrito regime disciplinar.
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Alguns diretores escolares objetam que se tem de ter em conta a instabilidade do corpo docente – professores que andam dum lado para o outro não conseguem acompanhar os alunos, acompanhar o projeto. A isto, Ariana Cosme atalha com a situação de envelhecimento docente:
Apesar de tudo, a mobilidade docente é muito mais baixa relativamente à estabilidade. Estamos com problemas gravíssimos de excesso de estabilidade, estamos envelhecidíssimos, não há professores jovens no sistema há muitos anos. Entram muito tarde, com 30 e tal anos. Estamos com um problema de envelhecimento claro. Ao nível do 1.º Ciclo e do pré-escolar, a estabilidade é quase total. A estabilidade que se adivinha é enorme, até desejaríamos maior renovação.”.
E, tirando partido da dinâmica nacional que se pretende, aduz:
A partir do momento em que há uma dinâmica nacional, os professores estarão todos apropriados de ferramentas mais interessantes, sobretudo mais ativas. O desafio é, primeiro, respostas mais contextualizadas, não é ter um desenho nacional, mas cada escola poder fazer o desenho das suas necessidades, práticas e metodologias de trabalho dos professores cada vez mais ativas, colocando os seus alunos a fazer, a pensar, a discutir.”.
É preciso sair da situação em que:
As aulas são os professores que as dão, os alunos estão quietos a ouvi-las, como os alunos não estão quietos não as ouvem. Não as ouvem, há uma tensão enorme. O problema é o modelo da escola. Os alunos não conseguem estar sentados, não conseguem ouvir o professor.”.
E a solução é:
Tê-los ativos em pé, de joelhos, sentados, a trabalhar, a trabalhar, a trabalhar. Quando estão a trabalhar, estão ocupadíssimos e as evidências demonstram que produzem coisas fantásticas, que consolidam aprendizagens de uma forma mais efetiva.”.
Rui Trindade esclarece mais uma vez:
As escolas não foram obrigadas, só alinharam neste projeto escolas que queriam. O que é interessante é que o Ministério da Educação, pela primeira vez, não impõe o que as escolas devem fazer, oferece-lhes um conjunto de possibilidades e as escolas, dentro desse conjunto, vão tomar opções.”. 
E Ariana Cosme atalha com a diversidade das escolas e dos ritmos da experiência
Há escolas que só estão a fazer 5.º, 7.º e 10.º anos. Há escolas que só estão a fazer 1.º e 5.º, há escolas que só estão a fazer algumas turmas do 5.º ano.  Se o corpo docente é mais estável, se está mais bem organizado, se tem gente mais disponível para usar ferramentas de metodologias ativas. Ou, pelo contrário, se tem muita gente presa à aula que se dá, ao teste que se faz. Este projeto não se faz contra os professores.”. 
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E, no caldo de cultura que se criou sobre a relevância de testes e exames, tinha que vir a pergunta se os testes se mantêm. Ariana Cosme é perentória:
Só para quem quer. Os exames nacionais mantêm-se, os testes não.”. 
E Rui Trindade diz uma coisa que muitos deviam ouvir
Mesmo hoje os professores não são obrigados a dar testes. A lei só obriga a ter exames no 9.º ano e no Secundário. Também é preciso pensar se a matriz das provas de aferição e dos exames se adequa não só a este projeto, mas ao perfil do aluno do século XXI. Se temos um perfil que depois não é para cumprir…”. 
Ariana Cosme adianta: 
Há professores que vão fazer uma mistura, vão dar alguns testes porque, apesar de tudo, se sentem confortáveis com algum instrumento de natureza sumativa – que achamos que não tem qualquer interesse, porque o instrumento que regula e determina a avaliação nacional em Portugal, a sua principal modalidade de avaliação, é formativo porque resulta da recolha contínua e sistemática de indicadores de sucesso e de dificuldades dos alunos, e os testes não fazem esta recolha sistemática, são sumativos. Temos consciência de que os alunos produzem muito pouco, a única coisa que precisam de produzir é, de dois em dois meses, um teste. E isto não pode ser.”.
E porfia pela mudança contra a simples memorização:
Nós também temos esperança de que isto ajude os professores a perceberem que há outros materiais, não de desempenho máximo, onde ficam mais claras as evidências do que o aluno efetivamente aprendeu ou não aprendeu. Interessa-nos muito o que o aluno não aprende, mas não é para o chumbar, é para que o professor e a escola possam definir trabalhos para o ensinar. Não podemos ter os alunos a saírem da escola sem saber.”.
Rui Trindade aproveita o ensejo para censurar os professores que não estão habituados a escrever, a analisar criticamente um texto, a ler um programa e a pensar sobre esse programa e os seus fundamentos.
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Em suma, os grandes desafios desta nova forma de organização curricular são: pensar de forma contextualizada; ser capaz de olhar para um programa, perceber quais os objetivos e pensar porque é que isto é importante. O grande desafio é pensar a ação docente; perceber até que ponto a relação do professor com a aula e com os alunos não os impede de aprender.
Alguns professores estão disponíveis para se questionarem e questionarem as suas práticas; outros vão nesse caminho. Em todo o caso, Rui Trindade afirma:
Vai ser difícil, mas tem que ser, até porque é o futuro que está em jogo. É preciso que estas coisas tenham significado e, em larga medida, é uma responsabilidade inicial dos professores da forma como planificam e da forma como pensam o que vão propor aos alunos. Há um processo de intermediação de trabalho que precisa de ser feito com algum significado. Não estou dizer que se devem retirar as dificuldades aos alunos.”. 
E Ariana Cosme assegura  que os professores não estão sozinhos e que é importante trabalharem em equipas educativas. De facto, com este projeto abrem-se novas possibilidades: semanas temáticas, projetos interdisciplinares... E sustenta a consultora-assessora:
É para muitos meninos a última grande oportunidade. A vida nunca mais lhes trará um professor de Física, de Filosofia, alguém de Literatura. A escola não pode passar ao lado desses alunos e passa porque metade do tempo estão aos gritos com eles, zangados com eles, e eles zangados com a escola. Entre as faltas, ‘do vai para a rua’, ‘não me chateies’, ‘chama a diretora’, a escola é tão pouco produtiva. Não vai ser nada simples, há escolas e professores que vão precisar de mais tempo, e há professores que nunca compreenderão.”. 
E Rui Trindade remata: 
Há questões que qualquer professor tem de responder. O que é que desejo que os meus alunos aprendam. O que é que eu vou fazer para que os meus alunos aprendam aquilo que desejo que aprendam. E como vou avaliar isso, quer o que eles aprenderam, quer aquilo que eu fiz. […]. É preciso aprender a pensar. Para o projeto ser bem-sucedido, os professores são obrigados a pensar sobre o que é que andam a propor aos alunos, a pensar qual é a magnitude dos desafios culturais com que estão a confrontar os alunos.”.
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É preciso que o professor se questione sobre o desempenho e as práticas pedagógicas, que leia e escreva, que analise criticamente programas e legislação. Mas o projeto não é inteiramente novo (ignora trabalho que vem sendo feito) nem resolve por si o problema da escola, sobretudo se constrangido pelas aprendizagens essenciais e exames (nunca os testes foram obrigatórios), sendo que a avaliação externa se cinge ao currículo nacional. Não estaremos perante um flop?
Sempre se apostou em ensinar o aluno a pensar e se combateu a pura memorização…

2017.12.10 – Louro de Carvalho

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