quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

O primado diaconal na Cúria Romana e na Igreja

No seu discurso no encontro com os membros da Cúria Romana para a apresentação dos votos natalícios na Sala Clementina, quinta-feira, 21 de dezembro de 2017, o Papa Francisco abordou a essência da Cúria pelo ângulo do serviço utilizando a expressão “primado diaconal”.
A expressão, como diz, associa-se à imagem cara a São Gregório Magno de Servus servorum Dei. E corresponde claramente à missão do Senhor entre nós, que veio para servir e não para ser servido. O primado diaconal não pode confundir-se com uma pretensa diaconocracia. O poder, na Igreja, tem de ser serviço, mas a diaconia não pode arvorar-se em fonte e estilo de mando.
A diaconia passa pela aprendizagem da lição do presépio. Com efeito, sendo o Natal, como quer o Papa, “a festa da fé no Filho de Deus que Se fez homem, para devolver ao homem a dignidade filial que perdera por causa do pecado e da desobediência”, há de ser igualmente “a festa da fé nos corações que se transformam em manjedoura para O receber, nas almas que permitem a Deus fazer brotar do tronco de sua pobreza o rebento de esperança, caridade e fé”. E, sendo esta a festa do serviço de Deus ao homem, do homem a Deus e do homem ao outro homem, tem de nos abrir “os olhos para abandonarmos o supérfluo, o falso, o malévolo e o fictício, e vermos o essencial, o verdadeiro, o bom e o autêntico”.
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Francisco reconhece que, nos anos anteriores tem falado “sobre a Cúria Romana ad intra”, mas, este ano, preferiu partilhar com os membros da Cúria “algumas reflexões sobre a realidade da Cúria ad extra”, ou seja, a sua relação “com as nações, com as Igrejas particulares, com as Igrejas Orientais, com o diálogo ecuménico, com o Judaísmo, com o Islamismo e as outras religiões”, enfim, “com o mundo externo”.
Sustenta que as reflexões que produz se baseiam “nos princípios basilares e canónicos da Cúria, na própria história da Cúria”, mas também na sua visão pessoal que procurou partilhar “nos discursos dos últimos anos, no contexto da atual reforma em curso”.
Porém, apesar de querer falar sobre a realidade da Cúria ad extra, não deixa de espicaçar os seus membros sobre o dinamismo da reforma, servindo-se da frase de Mons. Frédéric-François-Xavier de Mérode “Fazer as reformas em Roma é como limpar a Esfinge do Egito com uma escova de dentes”, para sublinhar a “paciência, dedicação e delicadeza que são necessárias para se alcançar tal objetivo”, dado ser a Cúria “uma instituição antiga, complexa, venerável, composta por pessoas de diferente cultura, língua e mentalidade e que estruturalmente, desde sempre, está ligada à função primacial do Bispo de Roma na Igreja”. Quer dizer, a Cúria Romana, tal como é e como deve ser, está conexa como o “sacro ministério querido pelo próprio Cristo Senhor para bem de todo o corpo da Igreja” (ad bonum totius corporis).
Sendo assim, esta Cúria, no quadro da “universalidade” do seu serviço, que “deriva e brota da catolicidade do Ministério Petrino”, deve ser uma estrutura aberta. Na verdade, como diz o Pontífice, “fechada em si mesma, trairia o objetivo da sua existência e cairia na autorreferencialidade, condenando-se à autodestruição”.
Depois, o Papa combate o peso burocrático a que se tentam os diversos dicastérios para fazer ressaltar que “por sua natureza, a Cúria está projetada ad extra, enquanto ligada ao Ministério Petrino, ao serviço da Palavra e do anúncio da Boa Nova”. E esta Boa Nova não é mais nem menos que “o Deus Emanuel, que nasce entre os homens, que Se faz homem para mostrar a cada homem a sua íntima proximidade, o seu amor sem limites e o seu desejo de que todos os homens sejam salvos e cheguem a gozar da beatitude celeste (cf 1 Tm 2,4); o Deus que faz despontar o seu sol sobre bons e maus (cf Mt 5,45); o Deus que não veio para ser servido, mas para servir (cf Mt 20,28; Mc 10,45; Lc 22,27); o Deus que constituiu a Igreja para estar no mundo sem ser do mundo, e para ser instrumento de salvação e de serviço”.
Justifica-se o Pontífice dizendo que foi a pensar na “finalidade ministerial, petrina e curial, ou seja, de serviço”, que, na saudação que recentemente dirigiu aos Padres e Chefes das Igrejas Orientais Católicas, utilizou a expressão “primado diaconal”. E sustenta agora que ela, “na sua dimensão cristológica”, exprime, antes de mais, “a firme vontade de imitar a Cristo, que assumiu a forma de servo” (cf Fl 2,7). E, pegando nas palavras de Bento XVI, assegurou que, nos lábios de Gregório, não era “uma fórmula piedosa, mas a verdadeira manifestação do seu modo de viver e agir”, sensibilizando-o “intimamente a humildade de Deus, que em Cristo Se fez nosso servo, nos lavou e lava os pés sujos”.
É, para Francisco, esta atitude diaconal que deve caraterizar “aqueles que, a vários títulos, trabalham na área da Cúria Romana”, que – como estipula o Código de Direito Canónico – “desempenha o seu múnus em nome e por autoridade [do Sumo Pontífice] para o bem e serviço das Igrejas” (CIC, cân. 360; cf CCEO, cân. 46).
Este primado diaconal da Cúria referido ao Papa e ao trabalho que ela realiza dentro (ad intra) e fora (ad extra) remete-nos para um antigo texto, presente na Didascalia Apostolorum, onde se recomenda que o “diácono seja o ouvido e a boca do Bispo, o seu coração e a sua alma”. Na verdade, é desta consonância que “depende a comunhão, a harmonia e a paz na Igreja, já que o diácono é o guardião do serviço na Igreja”. Com efeito, o ouvido não é apenas órgão da audição, mas também do equilíbrio; e a boca é o órgão da prova degustativa e da fala. Quer dizer: quem exerce uma função de diaconia tem de saber ouvir e ponderar; e transmitir falando, mas gerindo a informação de modo que ela seja verdadeira e útil.
Por outro lado, o Papa refere mais um texto antigo que sustenta que “os diáconos são chamados a ser como que os olhos do Bispo”. Ora, “os olhos veem para transmitir as imagens à mente, ajudando-a a tomar as decisões e a encaminhar para o bem todo o corpo”.
Daqui conclui o Bispo de Roma que “a relação que se pode deduzir destas imagens é a de comunhão e obediência filial para servir o povo santo de Deus”. E, sendo assim, é a mesma relação que “deve existir também entre todos aqueles que trabalham na Cúria Romana, desde os Chefes de Dicastério e Superiores até aos oficiais e restante pessoal”. De facto, “a comunhão com Pedro fortalece e revigora a comunhão entre todos os membros”.
Então, a atitude diaconal que Francisco quer evidenciar na Cúria está conexa com a função do diácono e com os sentidos do organismo humano. E esta evocação dos sentidos do corpo “ajuda a perceber o significado da extroversão, da atenção ao que existe fora”. De facto, “no organismo humano, os sentidos são a nossa primeira ligação com o mundo ad extra”, funcionam como “uma ponte para ele”, “são a nossa possibilidade de nos relacionarmos”. “Ajudam-nos a apreender o real e, a situar-nos no real”. Não é por acaso que Santo Inácio de Loyola faz recurso aos sentidos na contemplação dos Mistérios de Cristo e da verdade.
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À luz destas imagens, podemos e devemos superar a “lógica desequilibrada e degenerada de conluios ou de pequenos clubes” que – apesar das justificações e boas intenções – são “um cancro que leva à autorreferencialidade”, que se infiltra nos organismos eclesiásticos como tais e nas pessoas que lá trabalham. Ora, “quando isto acontece, perde-se a alegria do Evangelho, a alegria de comunicar Cristo e de estar em comunhão com Ele; perde-se a generosidade da nossa consagração (cf At 20,35; 2Cor 9,7).
E Bergoglio adverte para outro perigo: “o dos traidores da confiança ou os que se aproveitam da maternidade da Igreja, isto é, as pessoas que são cuidadosamente selecionadas para dar maior vigor ao corpo e à reforma”, mas, desviadas da sua responsabilidade, “deixam-se corromper pela ambição ou a vanglória e, quando delicadamente são afastadas, autodeclaram-se falsamente mártires do sistema, do Papa desinformado, da velha guarda – em vez de recitarem o mea culpa”. E, a par destas, há “outras que continuam a trabalhar na Cúria e às quais se concede todo o tempo para retomar o caminho certo, com a esperança de que encontrem na paciência da Igreja uma oportunidade para se converter e não para se aproveitar”. Não obstante, salienta “a esmagadora maioria de pessoas fiéis que nela trabalham com louvável empenho, fidelidade, competência, dedicação e também com grande santidade”.
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E, voltando à imagem do corpo, o Papa argentino destacou “a necessidade de que estes sentidos institucionais”, ou seja, os Dicastérios da Cúria romana, “devem agir de maneira conforme à sua natureza e finalidade: em nome e com a autoridade do Sumo Pontífice e sempre para o bem e ao serviço das Igrejas”. Assim, “os Dicastérios estão chamados a ser na Igreja como que antenas sensíveis fiéis: emissoras e recetoras”.
Enquanto emissoras, estão “habilitadas a transmitir fielmente a vontade do Papa e dos Superiores”. Neste sentido, impõe-se a palavra “fidelidade” àqueles que “trabalham na Santa Sé”, com um significado e caráter particulares, pois “colocam ao serviço do Sucessor de Pedro boa parte das suas energias, do seu tempo e do seu ministério diário”. Trata-se, portanto, duma “responsabilidade séria”, mas também de “um dom especial, que, com o passar do tempo, vai desenvolvendo um vínculo afetivo com o Papa, feito de íntima confidência, um natural idem sentire, bem expresso precisamente pela palavra fidelidade”. Como antenas recetoras, apreendem “as solicitações, as perguntas, os pedidos, os gritos, as alegrias e as lágrimas das Igrejas e do mundo, para os transmitir ao Bispo de Roma a fim de lhe permitir desempenhar mais eficazmente a sua tarefa e missão de princípio e fundamento perpétuo e visível da unidade de fé e comunhão”. Com tal receção, “mais importante que o aspeto precetivo”, os Dicastérios da Cúria entrarão plena e generosamente “no processo de escuta e sinodalidade”.
Em suma, a expressão primado diaconal e as imagens do corpo, dos sentidos e da antena servem para “explicar que, precisamente para alcançar os espaços onde o Espírito fala às Igrejas (isto é, a história) e para realizar a finalidade do seu agir (salus animarum), é necessário, antes indispensável, praticar o discernimento dos sinais dos tempos, a comunhão no serviço, a caridade na verdade, a docilidade ao Espírito e a obediência confiante aos Superiores”.
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Enfim, é o discurso mais uma vez necessário que as pessoas bem intencionadas e zelosas gostarão de ouvir, mas que os oportunistas e carreiristas ouvirão sempre com desagrado. Mas o Papa está colocado também como sinal de contradição, exatamente como Cristo (cf Lc 2,34).

2017.12.28 – Louro de Carvalho

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