sábado, 2 de dezembro de 2017

Marcelo e a separação e cooperação dos poderes

Marcelo Rebelo de Sousa é professor catedrático de direito público, ciência política e, obviamente, de direito constitucional. Mas, desde que foi eleito por voto direto, secreto e universal para o cargo, é Presidente da República. E, nesta qualidade, cabe-lhe garantir o cumprimento da Constituição, a independência nacional e o funcionamento regular das instituições democráticas.
Para garantir o cumprimento da Constituição tem de dar o exemplo e não se intrometer nas competências dos demais órgãos de Soberania, deixando que eles funcionem autonomamente e tomando posição quando as matérias chegarem à mesa presidencial para se pronunciar nos termos da Constituição.
É óbvio que lhe resta a magistratura de influência que desenvolve no contacto com as populações, nos discursos a propósito das grandes celebrações e efemérides, na palavra que profere nas cerimónias para que é convidado, nas mensagens que pode dirigir à Assembleia da República e nas audiências semanais que concede ao Primeiro-Ministro.
É certo que a Constituição também estabelece a interdependência e a cooperação entre os poderes. Tanto assim é que lhe cabe a promulgação, sem a qual o decreto da Assembleia da República não se torna lei e o decreto do Governo não se torna decreto-lei, como lhe cabe o direito de veto a diplomas do Parlamento e do Governo e ainda a submissão prévia ou sucessiva ao Tribunal Constitucional dos diplomas do Parlamento e do Governo para apreciação abstrata da sua constitucionalidade. E, embora a definição da política de defesa nacional seja da competência do Governo, o Presidente é o comandante supremo das forças armadas, que preside ao Conselho Superior de Defesa Nacional. Nomeia sob proposta do Governo, o Presidente do Tribunal de Contas e o Procurador-Geral da República, o Chefe de Estado-Maior General da Forças Armadas e o Vice-Chefe de Estado-Maior General da Forças Armadas, bem como os Chefes de Estado-Maior do Exército, da Armada e da Força Aérea (ouvido também o Chefe de Estado-Maior General da Forças Armadas). Cabe-lhe a dissolução do Parlamento e das Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas, como lhe cabe nomear cinco membros do Conselho de Estado e dois vogais do Conselho Superior da Magistratura.
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Tem razão quando diz que ninguém o impede de exercer todos os poderes que a Constituição lhe confere. O que se pergunta é se não tem, às vezes, ultrapassado os seus poderes, ainda que de forma subtil em nome da magistratura de influência, tornando-a magistratura de interferência. É que a colaboração com o Governo não implica substituí-lo nem dizer o que toda a gente sabe: que incumbe aos deputados no Parlamento decidir se querem manter em funções um Governo ou substituí-lo. Dizê-lo quando está agendada a apresentação de uma moção de censura por parte de um dos partidos não me digam que não é tentativa suave de interferência com os deputados.
Mas há mais: Marcelo aquando da votação final do OE 2018 referiu que tem recebido mensagens de insatisfação da parte dos empresários portugueses e garantiu que vai estar atento aos sinais e fazer tudo o que lhe for possível em prol da competitividade. O diploma orçamental está na respetiva comissão para redação final, tornando-se impossível, de momento, tomar novas opções. Será que pensa Marcelo vetar a lei do orçamento, impor-lhe alterações, submetê-la à apreciação prévia do TC, instruir o Governo para que apresente ao Parlamento propostas de legislação complementar onde se consagrem as reivindicações dos empresários portugueses? Isto não é ferir a separação dos poderes? E é incoerente zelar os interesses dos empresários e depois vir para a rua carpir-se pelos pobrezinhos, sem-abrigo, vítimas de incêndios e da seca. Se todo os que podem não forem instados a pagar as despesas públicas, não há Governo que assuma os encargos que deve assumir, porque não sabe nem pode fazer milagres.
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Já tenho denunciado outras situações irregulares da parte do Presidente, como a solene declaração de que o DL que tira os gestores da CGD da alçada do estatuto de gestor público não o faz para efeitos declarativos junto do TC em relação a rendimentos e património, a exposição pública a que pôs Centeno a propósito dos alegados SMS com Domingues, o intempestivo puxão de orelhas ao Governo a propósito dos incêndios de outubro. E, recentemente, veio a declaração de que é mais importante o cargo de Ministro das Finanças de Portugal que o de Presidente do Eurogrupo, feita nas barbas da candidatura de Centeno.
Por fim, devo referir o que se passou nas comemorações do 1.º de dezembro em Lisboa, segundo o que refere o JN e outros órgãos de comunicação social.
Depois das cerimónias comemorativas da restauração da independência, umas cinco dezenas de professores abordaram o Presidente. Lamentaram estar a dar aulas a muitos quilómetros de casa, sentindo-se ultrapassados por colegas mais novos, e pedem a realização de novo concurso de colocação de professores a nível nacional, mas rejeitam a ideia dum concurso só para eles. Diziam, como explicou Marta Alves, uma das organizadoras do protesto:
Não queremos um concurso só para nós, isso é um concurso fantasma, que servirá apenas para estes lesados fazerem uma permuta de vagas”.
Estes docentes querem um concurso geral.
Está em causa a publicação das listas definitivas do Concurso de Mobilidade Interna no dia 25 de agosto pp, que veio a colocar docentes, alguns com 15 e 20 anos de serviço de profissão, em locais que os impossibilitam de ficar perto das suas casas, alguns a centenas de quilómetros. Queixam-se de que não são ouvidos pelo Ministério da Educação (ME) e que a resposta que a tutela encontrou de fazer um concurso para eles em 2018 não é solução. Dizem isto com base num projeto de decreto-lei que está ser preparado pelo ME.
Marcelo ouviu-os, disse desconhecer o projeto de Decreto-Lei sobre a matéria e pediu que fossem entregar a Belém os “documentos” demonstrativos das suas situações para poder avaliar o caso.
Os professores pediam ao Presidente que não seja conivente e clamavam por justiça para os docentes lesados. Alguns dos manifestantes detalharam ao Chefe de Estado situações de pessoas a dar aulas na Guarda, tendo a família e a casa em Braga, e lamentaram que haja docentes mais novos, com menos tempo de serviço e menor graduação a ocuparem vagas que, no seu entender, deviam ser suas. O Presidente ouviu-os e repetidamente pediu que entregassem em Belém documentação para o caso ser avaliado. Aqui, o Presidente esqueceu-se de que os colegas mais novos na profissão e menos graduados não são professores do quadro, pelo que não ocupam vagas, mas lugares supervenientes. Portanto, argumentar com a sorte precária de outrem não será tão válido como parece. E, se cabe a Marcelo ouvir os professores como quaisquer manifestantes, não lhe cabe em Belém estudar e avaliar a situação de cada um. Isso nem ao Governo cabe, mas à respetiva Direção-Geral. Quanto ao desconhecimento de qualquer projeto de decreto-lei, é bom que não o tenha para não se tentar a emitir opinião antes de lhe ser apresentado já aprovado em Conselho de Ministros para promulgação. Marcelo já se meteu demasiado nas questões da educação antes dos diplomas a ela atinentes lhe chegarem à mesa.
Já agora, porque se furtou a discursar nas cerimónias comemorativas da restauração da independência. Não é da sua competência garantir a independência nacional e comandar supremamente a defesa militar da República? Obviamente, tal prerrogativa não tira nada à responsabilidade e à palavra do Ministro da Defesa Nacional, que bem disse, no seu discurso, que a independência nacional se afirma e defende hoje em todos os recantos do mundo.
Mas a interdependência dos poderes e a cooperação mútua também são um imperativo constitucional que o Presidente não pode esquecer.

2017.12.02 – Louro de Carvalho

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