segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Contra a mercadodiceia ou teologia do mercado

Por analogia com “teodiceia” (do grego theós, ‘Deus’+díke, ‘justiça’), que se pode entender como o juízo de Deus ou o conhecimento/juízo/avaliação que se faz de Deus através da razão, forma-se “mercadodiceia”.
Num tempo em que todas as categorias humanas e sociais parecem vacilar e baquear, o mercantilismo impõe-se não como serviço ao homem, mas como dono disto tudo, impondo-se como credo, religião, sageza, legislador, judicatura.
Dantes, acreditávamos que a providência divina tudo mandava, governava, cuidava e, acompanhando a humanidade na luta contra o mal, julgava as ações dos homens e o devir histórico. Era o poder da teodiceia como princípio, norma e juízo do mundo e do homem. Depois, com o iluminismo e o racionalismo, a que o positivismo foi beber nesta cumplicidade ideológica e dinâmica, impôs-se a história como lei e juiz supremo. A história determina-se a si própria e julga-se a si própria; e julga o mundo e os homens. Era o poder da historiodiceia. A  cada passo, quando os tribunais não são capazes de fazer justiça ou o eleitorado não faz o bastante juízo político, remetemos a pessoa, o tema ou o caso para o julgamento da história.
Hoje, os mercados são a “presença divina” que faz lei através do jogo da mão que se esconde por trás do arbusto. Apregoando que, em cada dia, cada um deve lutar pelos seus interesses, de modo que dessa luta resulte o maior bem-estar para todos. Só que impera a lei do mais forte. É a concorrência, mas sem que o Estado assuma o papel de árbitro que o liberalismo na sua fase inicial para ele remeteu. Hoje, a concorrência é desleal e sub-reptícia. Quantas vezes não surge por ganância e supremacia a OPA (oferta pública de aquisição) hostil! É o poder do mercado, que faz lei e estabelece os critérios de justiça para avaliar da bondade das pessoas e dos atos. É o mercado que diz quem é o homem ou a mulher de sucesso. E, porque os bens são escassos, apesar de o mercado promover a sua produção intensiva e a sua promoção excessiva, muitos ficam na miséria, quase sem nada – explorados, traficados, aniquilados, marginalizados e descartados, por alegadamente não serem inteligentes – para que alguns, muito poucos, tenham muito. Para tanto, vale tudo: a mudança de pátria para fugir aos impostos; organizar fundos imobiliários para que agentes do capital sem rosto façam as vultuosas aquisições que acabam por se volatilizar; constituir agências para classificar economias, países, instituições financeiras; criar bancos para sugar poupanças e vender dinheiro, tantas vezes sem garantias para ricos e poderosos, mas explorando os clientes pequenos e médios até ao tutano (quando a banca surgiu para fazer dinheiro a partir de dinheiro e apoiar o investimento para o qual não havia capital disponível no imediato); deslocar capitais subterraneamente para paraísos fiscais…
Anselmo Borges, no seu livro “Francisco – desafios à Igreja e ao Mundo” (da Gradiva, 2017), estabelece a seguinte sequência: teodiceia – justificação de Deus frente ao mal; historiodiceia – justificação da História; e mercadodiceia – justificação dos mercados, o que Adriano Moreira designa por “teologia do mercado”.
Note-se que o termo “justificação” é assumido teologicamente como a obra mais excelente do amor de Deus, ação misericordiosa e gratuita de Deus, que perdoa os nossos pecados e nos torna justos e santos em todo o nosso ser – o que tem lugar por meio da graça do Espírito Santo, que nos foi merecida pela Paixão de Cristo e nos foi dada no Batismo. A justificação inicia, mas não obriga, a resposta livre do homem, ou seja, a adesão pessoal e livre ao plano de salvação arquitetado por Deus e realiza-se pela fé que desemboca nas obras que ela postula.
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O economista Riccardo Petrella, citado por Anselmo Borges na obra referenciada, equaciona, no âmbito do neoliberalismo selvagem, as leis do mercado naquilo que designa por novas Tábuas da Lei, a replicar as tábuas do decálogo que, segundo o livro do Êxodo, Deus entregou a Moisés no Sinai. Borges aflora o conteúdo dessas novas Tábuas seguindo o teólogo Juan J. Tamayo. E, sobre isso, quero apresentar a minha redação, algo igual e algo diferente.
- Deverás adaptar-te à globalização dos mercados e do poder financeiro, já que não lhe podes resistir. É o determinismo da capitulação.
- Deverás liberalizar completamente os mercados abjurando da proteção às economias nacionais, pois, o capital, que gera a riqueza e a tudo se sobrepõe, não tem pátria e o culto do nacionalismo é tacanho e sempre perigoso. É o liberalismo absoluto sem controlo.
- Deverás reconhecer todo o poder aos mercados, devendo as autoridades políticas subjugar-se a eles, transformando-se em simples executoras das suas ordens. É a mercadocracia tantas vezes travestida de tecnocracia.
- Eliminarás progressivamente ou de rompante qualquer forma de propriedade pública, ficando o governo e a provedoria da sociedade nas mãos de empresas privadas, que até podem ter por trás de si um Estado totalitário, mas os privados é que sabem gerir, economizar e criar riqueza. É a hipócrita teoria do caráter sagrado da propriedade privada.
- Terás de ser o mais forte, ainda que tenhas de espezinhar os outros, mesmo fechando-lhes os seus empreendimentos, se quiseres sobreviver no quadro da competitividade atual. É a realização do aforismo de Thomas Hobbes: homo homini lupus.
- Renunciarás à defesa e promoção da justiça social, a moderna superstição inútil, e ao altruísmo ineficaz, reservando-te o capricho de, de vez em quando, dares uma esmola para os pobres ou de criar uma associação de beneficência para driblar o fisco. É o individualismo egoísta no seu melhor.
- Defenderás a liberdade individual como valor supremo, sem a mínima referência ou dimensão social, a qual te permite fazeres ouvir a tua voz e a dos teus sequazes, silenciando a dos outros, e teres a propriedade privada, ignorando a sua função social, pois, para quem é audaz todo o mundo é seu e pode dele fruir em exclusivo. É a apropriação da liberdade.
- Defenderás o primado da economia e da finança sobre a ética e a política, pois estas não enchem o estômago, sendo que a ética é boa se funcionar em função de ti e o que pode esperar da política é, posteriormente, auferires um emprego de destaque remuneratório numa grande empresa nacional, estrangeira ou multinacional. Não te incomodes se te acusarem de economicismo, pois economia é bem-estar. É o império da economocracia.
- Praticarás a religião do deus mercado com as suas mesuras, rituais, serventuários, manuais, espaços e tempos, pois não podes prescindir de uma ligação religiosa, seja qual for o teu deus. Todo o homem é religioso, restando saber que tipo de religião professa e que tipo de culto presta.
- Desprezarás as necessidades dos pobres e dos excluídos – gente a mais, que não produz riqueza – visto que a tua religião ignora que os bens, por vontade do Criador, têm um destino universal, isto é, são para todos e para cada um, cabendo a quem pode apropriar-se dum franja para a rendibilizar e pôr ao serviço da coletividade. É por isso, que em caso de necessidade extrema, é lícito ao pobre apropriar-se daquilo de que precisa onde o encontrar. Dá jeito o readvento do malthusianismo e do neomalthusianismo.
Em suma, porás a Terra ao serviço do capital, que dela pode em exclusivo tirar o máximo de rendimento, sem necessidade de atender às exigências ecológicas, que impedem o progresso e são invenção dos inimigos do capital, do crescimento e do conforto. É a força do trumpismo.
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Estamos a ver aonde este dinamismo distorcido nos levará. Se não tivermos cuidado, os recursos, que são finitos, escassearão até à indigência e penúria e a Natureza revoltar-se-á, correndo nós o risco de sermos por ela expulsos do Planeta.
Por isso, impõe-se a alternativa enunciada por Tamayo e que sintetizo à minha maneira, um pouco segundo o esquema dos pecados capitais e das virtudes que os contrariam e superam. Vem agora a postura virtuosa orientada para a edificação da utopia da sociedade alternativa desejável, a das diversas modalidades de ética e respetivos imperativos morais.
- Ética da libertação: libertar o pobre, o oprimido, pois a pobreza e a escravização têm de ser erradicadas.
- Ética da justiça: agir com justiça e equidade nas relações com os semelhantes e contribuir para a instauração duma ordem internacional justa – política e moral, social e económica.
- Ética da paz, inseparável da justiça: trabalhar pela paz para querer a paz (ultrapassando a máxima romana “si vis pacem para bellum” – se queres a paz prepara a guerra), e trabalhar pela justiça que dê a todos e a cada um o que é necessário – o que se faz pela educação para o diálogo, cooperação e partilha (de bens materiais, culturais, espirituais e sociais) com vista ao desenvolvimento sustentável humano e integral; e o modo de o fazer tem de ser a não violência ativa.
- Ética da gratuitidade, num mundo onde impera o cálculo, o interesse próprio: ser generoso, pois tudo o que uma pessoa possui recebeu-o de graça e não se pode negociar com o que se recebeu de graça.
- Ética da compaixão: ser compassivo e colaborar no alívio do sofrimento alheio, pois nada do que é humano pode ser estranho ao coração da pessoa de bem e ao seio da comunidade.
- Ética da alteridade e da hospitalidade: reconhecer e aceitar, respeitar e acolher o outro como outro e como diferente, sabendo que a diferença enriquece – o que implica não virar as costas ao peregrino, ao imigrante, ao refugiado, mas saber abrir a porta.
- Ética da solidariedade: ser cidadão dum país, promovendo a sã convivência, a tolerância, o respeito, o diálogo e a cooperação; e ser cidadão do mundo onde todos tenham um lugar e fruam da dignidade e da liberdade.
- Ética da comunidade fraterno-sororal, num mundo patriarcal onde é evidente a discriminação de género: colaborar na construção de uma comunidade de homens e mulheres, de irmãos e de irmãs, em que todos são iguais e diferentes, não clones.
- Ética da vida: defender a vida de todos os viventes, respeitando a dignidade da pessoa humana, promovendo o bem-estar integral e o conforto possível; enfim, viver e ajudar a viver.
- Ética da supremacia de Deus: servir a Deus e abjurar do serviço ao dinheiro como um ídolo e partilhar os bens, pois a acumulação individual desregrada gera o empobrecimento dos outros.  
- Ética da debilidade e da inclusão, num mundo onde vigora a lei do mais forte: trabalhar pela integração dos excluídos e descartados, pois são nossos irmãos e o mundo é de todos.
- Ética do cuidado da Natureza: não maltratar a Natureza, pois é o lar comum, que não pode ser destruído, mas que deve ser tratado com respeito de modo que se mantenha em equilíbrio e nos possa continuar a dar tudo quanto nos é necessário.
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É um catálogo de boas intenções que figuram a utopia do ideal? Talvez o mundo esteja longe de se aproximar do ideal. Todavia, há que relevar o papel daqueles e daquelas que dão generosamente a vida todos os dias por elementos fundamentais desta utopia. E cabe à utopia solidamente concebida criticar o presente e promover a sua transformação. Os filósofos deviam entender o mundo (Onde param os estudos filosóficos em Portugal?) e os políticos deviam transformá-lo. Porém, como está a política? Que é feito dos políticos?
E cabe aos apóstolos exercer a sua influência transformadora no mundo que temos pela revolução das consciências e das atitudes. Com efeito, Paulo ensina que foi para a liberdade que fomos chamados, mas que não devemos deixar que essa liberdade se torne numa ocasião para os apetites carnais; pelo contrário, pelo amor, temos de fazer-nos servidores uns dos outros, pois toda a Lei se cumpre plenamente nesta única palavra: Ama o teu próximo como a ti mesmo. E o apóstolo avisa: Mas, se vos mordeis e devorais uns aos outros, cuidado, não sejais consumidos uns pelos outros (cf Gl 5, 13-15).
Adela Cortina, relacionando ética e religião, propõe a distinção entre a ética de mínimos e a ética de máximos.
A ética de mínimos é pertinente numa sociedade pluralista, impõe-se no âmbito duma argumentação racional e consiste em dar a cada um o que lhe corresponde: é a exigência de justiça no mínimo do decente humano. Concretiza-se na obrigação da sociedade de garantir a cada um o exercício dos seus direitos: os da primeira geração, ou das chamadas “liberdades de…” (de consciência, de expressão, de imprensa, de associação, de participação no poder político e de iniciativa económica e social); da segunda geração, agrupados em torno da expressão “liberdades em relação a” ou “libertação de…” (libertação da fome, da necessidade, da ignorância, da doença – satisfazendo o direito à educação, meio de vida digno, saúde, segurança na doença, desemprego, velhice…); e da terceira geração, que postulam a solidariedade internacional (direito à paz e a um meio ambiente sadio). (vd Borges, op. cit).
Com isto conjuga-se a ética de máximos, que visa a felicidade buscada através de projetos de vida e de ação em que se evidenciam os apóstolos, os missionários, os lutadores pelas grandes causas. É o campo do dom, da generosidade, da graça, do carisma, do testemunho, do martírio, da heroicidade!
2017.12.11 – Louro de Carvalho

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