Oratória do Natal Cósmico
Natividade. Um deus
rompe e sai
sai da terra no
romper da haste
seu presépio é
uma flor de urânio
a vaca, trator
branco
o burro, um
guindaste
carpinteiro de
astronaves seu pai
reis magos em
nuvem supersónica
harpas eletrónicas
e o anjo que ao
sol despia
o resplendor, as
asas e o véu
às gentes
descrentes anuncia:
- quando ele
volta, livre, do cosmos
deuses morrem à
míngua de céu
***
Em tempo
de preparação para o Natal de Cristo e, com Ele, do homem, deixo este poemeto
de estrutura estrófica algo irregular (como a vida) – uma quintilha, três monósticos,
um terceto e um dístico – que rima (rimas soantes) quando calha (1.º
verso com 6.º, rima aguda ou masculina; 2.º com 5.º, rima grave ou feminina;
7.º com 8.º, rima grave e incompleta; 9.º com 11.º, rima grave; e 10.º com 13.º,
rima aguda). São
rimas pobres com exceção do verso 1.º com 6.º, que é rica.
É de
relevar a importância dos versos que não rimam e, sobretudo, a das palavras que
os terminam: urânio (3.º),
branco (4.º) e cosmos (12.º).
Com efeito,
não há nada mais perigoso e revolucionário que o acontecimento natalino de
Jesus marcada pela contemporaneidade do urânio, que estava escondido no
subsolo, mas que, pela sua aplicação e manipulação a descoberto, agita o
comodismo, a preguiça, a modorra e a exploração que se instalaram. Só que o
urânio do Natal não é para matar, muito menos à míngua de céu. “Um deus rompe e sai da terra ao romper da haste”
é a flor e faz lembrar a segunda parte da prece bíblico-litúrgica “Desça o
orvalho do alto dos céus e as nuvens chovam o justo. Abra-se a terra e germine o salvador” (Is
45,8; Leitura breve de Laudes das I e III semana do Advento).
Depois, o
Natal traz a alegria, o gosto, a pureza e o valor nutrício da vida tal como o
leite branco da vaca pachorrenta que atrai para o presépio a curiosidade e a boa
vontade dos que sabem e/ou querem saber do mistério do Natal. E o burro forte
que suporta todo o peso necessário para ajudar o homem torna-se funcional com o
guindaste que poupa esforços desnecessários.
O São
José de hoje não é somente o carpinteiro dos móveis e das casas de há dois mil
anos, nem o das naus de Dom Dinis, mas o carpinteiro cósmico que pensa e
executa astronaves. Neste sentido pode haver por aí muitos carpinteiros do
Natal contemporâneo, cuja inteligência e trabalho têm de ser mais apreciados
que o capital, que esconde o seu rosto por trás das intrigas e bizarrices de
alguns.
O Natal
tem de ser cósmico para ser festa do homem. Com efeito, associam-se à gruta natalina,
as pessoas dos pastores e dos magos (ou seja, os de perto e
os de longe, os desprezados e os homens de prestígio), os anjos, as estrelas, as
nuvens, a terra, os animais, o ouro, o incenso e a mirra, a música, as luzes. E
porque não os foguetes, a eletricidade, a eletrónica, os guindastes, os computadores,
os telefones, os telemóveis e I-pads, os tablets, as aeronaves e as astronaves?
Para tanto, o homem tem de saber usar os bens do progresso ao serviço do homem
e não para a morte e tem de cuidar do Planeta.
Os reis
magos não palmilham apenas os percursos terrestres, mas atravessam os ares em
aparelhos supersónicos que se juntam às nuvens (note-se a
metáfora hipalágica da “nuvem supersónica”).
E a música que ambienta os serões régios ou anima as massas populares já
ultrapassa as malhas dos artefactos naturais e serve-se da eletrónica.
E gosto
do terceto que nos mostra o anjo de carne e osso, do nosso mundo, sem
resplendor, sem asas e sem véu, a anunciar aos descrentes a liberdade, expressa
no dístico, mas também o perigo de muitos morrem por falta de céu – acolhimento,
alimento, paz, felicidade.
Gosto deste
Natal, mergulhado na Bíblia, imbuído da tradição, mas atualizado nas categorias
da modernidade e da contemporaneidade, marcadas pelo progresso, mas também
pelos clamores das desigualdades e injustiças sem céu.
Mesmo que
o autor do poemeto se tenha alguma vez manifestado agnóstico ou longe de Deus,
ele tem como subtexto o dístico angélico: “Glória
a Deus nas alturas e paz na terra aos homens que Ele ama” (Lc
2, 14) – com efeito,
embora faça lembrar Álvaro de Campos, o poemeto não é de todo livre formalmente:
porque há uma insistência métrica no verso de nove sílabas, o poema aponta para
a regularidade que obtém no início e no fim – e o retorno da vida e da
liberdade, no meio da azáfama e da existência inglória.
E diz-nos
que o Natal é para os descrentes. Só que nisto de fé, todos possuímos algumas
zonas de descrença em pessoa, em família e em comunidade. Por isso, é preciso
continuar a pedir ao Senhor da Fé que a dê e a aumente para que ela mova
montanhas. É preciso continuar a expor-nos ao Natal.
Por tudo
isto e para que seja festa, é preciso cantar e proclamar o Natal, cantar e
proclamar a Vida e a Liberdade, pois ainda
“Que nos cubram de ameaças e de espanto
que nos cortem as
asas mas o canto
voa muito mais largo
do que as penas”
(Veiga
Leitão, Latitude)
2017.12.05 –
Louro de Carvalho
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