terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Oratória do Natal Cósmico, de Luís Veiga Leitão (1965)

Oratória do Natal Cósmico

Natividade. Um deus rompe e sai
sai da terra no romper da haste
seu presépio é uma flor de urânio
a vaca, trator branco
o burro, um guindaste

carpinteiro de astronaves seu pai

reis magos em nuvem supersónica

harpas eletrónicas

e o anjo que ao sol despia
o resplendor, as asas e o véu
às gentes descrentes anuncia:

- quando ele volta, livre, do cosmos
deuses morrem à míngua de céu
***
Em tempo de preparação para o Natal de Cristo e, com Ele, do homem, deixo este poemeto de estrutura estrófica algo irregular (como a vida) – uma quintilha, três monósticos, um terceto e um dístico – que rima (rimas soantes) quando calha (1.º verso com 6.º, rima aguda ou masculina; 2.º com 5.º, rima grave ou feminina; 7.º com 8.º, rima grave e incompleta; 9.º com 11.º, rima grave; e 10.º com 13.º, rima aguda). São rimas pobres com exceção do verso 1.º com 6.º, que é rica.
É de relevar a importância dos versos que não rimam e, sobretudo, a das palavras que os terminam: urânio (3.º), branco (4.º) e cosmos (12.º).
Com efeito, não há nada mais perigoso e revolucionário que o acontecimento natalino de Jesus marcada pela contemporaneidade do urânio, que estava escondido no subsolo, mas que, pela sua aplicação e manipulação a descoberto, agita o comodismo, a preguiça, a modorra e a exploração que se instalaram. Só que o urânio do Natal não é para matar, muito menos à míngua de céu. “Um deus rompe e sai da terra ao romper da haste” é a flor e faz lembrar a segunda parte da prece bíblico-litúrgica “Desça o orvalho do alto dos céus e as nuvens chovam o justo. Abra-se a terra e germine o salvador” (Is 45,8; Leitura breve de Laudes das I e III semana do Advento).
Depois, o Natal traz a alegria, o gosto, a pureza e o valor nutrício da vida tal como o leite branco da vaca pachorrenta que atrai para o presépio a curiosidade e a boa vontade dos que sabem e/ou querem saber do mistério do Natal. E o burro forte que suporta todo o peso necessário para ajudar o homem torna-se funcional com o guindaste que poupa esforços desnecessários.
O São José de hoje não é somente o carpinteiro dos móveis e das casas de há dois mil anos, nem o das naus de Dom Dinis, mas o carpinteiro cósmico que pensa e executa astronaves. Neste sentido pode haver por aí muitos carpinteiros do Natal contemporâneo, cuja inteligência e trabalho têm de ser mais apreciados que o capital, que esconde o seu rosto por trás das intrigas e bizarrices de alguns.
O Natal tem de ser cósmico para ser festa do homem. Com efeito, associam-se à gruta natalina, as pessoas dos pastores e dos magos (ou seja, os de perto e os de longe, os desprezados e os homens de prestígio), os anjos, as estrelas, as nuvens, a terra, os animais, o ouro, o incenso e a mirra, a música, as luzes. E porque não os foguetes, a eletricidade, a eletrónica, os guindastes, os computadores, os telefones, os telemóveis e I-pads, os tablets, as aeronaves e as astronaves? Para tanto, o homem tem de saber usar os bens do progresso ao serviço do homem e não para a morte e tem de cuidar do Planeta.
Os reis magos não palmilham apenas os percursos terrestres, mas atravessam os ares em aparelhos supersónicos que se juntam às nuvens (note-se a metáfora hipalágica da “nuvem supersónica”). E a música que ambienta os serões régios ou anima as massas populares já ultrapassa as malhas dos artefactos naturais e serve-se da eletrónica.
E gosto do terceto que nos mostra o anjo de carne e osso, do nosso mundo, sem resplendor, sem asas e sem véu, a anunciar aos descrentes a liberdade, expressa no dístico, mas também o perigo de muitos morrem por falta de céu – acolhimento, alimento, paz, felicidade.
Gosto deste Natal, mergulhado na Bíblia, imbuído da tradição, mas atualizado nas categorias da modernidade e da contemporaneidade, marcadas pelo progresso, mas também pelos clamores das desigualdades e injustiças sem céu.
Mesmo que o autor do poemeto se tenha alguma vez manifestado agnóstico ou longe de Deus, ele tem como subtexto o dístico angélico: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens que Ele ama” (Lc 2, 14) – com efeito, embora faça lembrar Álvaro de Campos, o poemeto não é de todo livre formalmente: porque há uma insistência métrica no verso de nove sílabas, o poema aponta para a regularidade que obtém no início e no fim – e o retorno da vida e da liberdade, no meio da azáfama e da existência inglória.
E diz-nos que o Natal é para os descrentes. Só que nisto de fé, todos possuímos algumas zonas de descrença em pessoa, em família e em comunidade. Por isso, é preciso continuar a pedir ao Senhor da Fé que a dê e a aumente para que ela mova montanhas. É preciso continuar a expor-nos ao Natal.
Por tudo isto e para que seja festa, é preciso cantar e proclamar o Natal, cantar e proclamar a Vida e a Liberdade, pois ainda
Que nos cubram de ameaças e de espanto
que nos cortem as asas   mas o canto
voa muito mais largo do que as penas
                                             (Veiga Leitão, Latitude)

2017.12.05 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário