Todos
e todas se mobilizaram para o aniversário dum amigo especial ou simplesmente
para o Aniversário. Os promotores
fizeram soar o pregão por quantos meios, velhos e novos, tinham ao seu alcance
e as pessoas andavam num rodopio doido: viagens, férias, prendas, árvores ornamentais,
luzes, sons – muita música, canções e toques de sinos – estrelas, refeições,
assembleias de solidariedade, dádivas aos sem-abrigo e a outros necessitados,
espetáculos para doentes, jogos e sorteios… Tudo se justificava: é o Aniversário, a festa da vida, do grupo e
da família, o tempo da liberdade, o tempo da paz, da amizade, do altruísmo.
E
quem é o tal aniversariante? Bem, isso pouco importa. Alguns dos promotores até
nem sabem dizer quem é. Mas é uma coisa bombástica, que muda tudo. Sem esta
festa, as pessoas não eram as mesmas. E era bonito que este Aniversário fosse o ano inteiro. Outros dos
promotores sabem quem é o tal amigo, mas têm dificuldade em o revelar: é
preciso respeitar os que não o conhecem. Estamos numa sociedade pluralista. É melhor
disfarçar. A vergonha e o recato nunca são demais!
Ora,
se os promotores não sabem ou têm vergonha de dizer quem é o amigo para cujo
aniversário somos convocados, não admira que os participantes nesta azáfama e
neste corrupio de festa e distração, férias e comércio, presentes e bonecada
não saibam de quem seja o Aniversário.
Satisfazem-se em saber que é uma coisa boa, caso contrário não arregimentava
tanta gente, tantos grupos e povos e não se falava tanto deste evento.
E
o Aniversário decorre festivamente, mas
em privado, quase às ocultas, quando a maior parte dos convocados vive, se
diverte e passa sem se aperceber da verdadeira festa.
***
Ora,
este aniversário é o de Jesus. E muitos não o sabem nem se interessam em saber.
Isto porque muitos dos corifeus do Natal têm vergonha de o dizer, de o
proclamar. São demasiado prudentes e pouco simples, muito festeiros, mas pouco
profetas, muito organizadores, mas pouco apóstolos; e deixam que os filhos das
trevas preencham o vazio criado pelos filhos da luz. E muitos dos filhos das
trevas enchem, a propósito do Natal, a carteira das diversões, dos negócios,
muitas vezes, da devassidão e, outras vezes, da intriga e da guerra. Põem lá o
presépio, mas como qualquer outro bibelô.
***
Octávio
Carmo denuncia na edição de hoje, dia 15 de dezembro, do Semanário Ecclesia, este Natal
sem Jesus. Refere que “o crescente pluralismo da sociedade” e “o impacto da
globalização”, tendem a multiplicar “as várias formas de celebrar o Natal”. E estranha
que uma forma de pluralismo consista “em que, publicamente, se impede qualquer
pessoa de assumir uma referência explícita à celebração do nascimento de Jesus
como fonte de sentido para a forma como vive esta quadra”, alegadamente por respeito
pelas outras crenças ou não crenças.
Com
razão confessa a estranheza pelo facto de “a compreensão e a abertura para a
cultura do outro” tentarem enviesadamente “impedir a manifestação da identidade
própria”. E sustenta não se tratar duma “pretensão católica de esgotar em si
todas as possibilidades de celebração natalícia, mas de assumir um
imprescindível fundo cultural e religioso que é essencial para compreender a
forma como hoje vivemos o Natal”.
A
inibição de intervir com o sentido do Natal resulta, segundo o colunista, da
falta de “questionamento sobre como apresentar a nossa história própria a quem
chega de fora, por exemplo, sem lhes esconder o que somos e o que fazemos, por
um falso pudor que levaria a abdicar de categorias mentais, religiosas e
filosóficas fundamentais para a compreensão da realidade em que todos vivem”.
Ora,
se “para muitos portugueses o Natal é a celebração do nascimento de Jesus e tem
uma dimensão religiosa”, “evitar que essa convicção tenha visibilidade pública
não é tolerância”, mas falta de assunção do profetismo, inibição de entrar na
linha cordial e respeitadora do diálogo, que implica a revelação da identidade própria,
obviamente sem a impor. Calar pode significar abdicação, cobardia, negação. Só se
pode respeitar quem se nos apresenta e o que se nos apresenta, não quem se supõe
ou o que se supõe
***
Por seu turno, Dom Manuel Linda, Bispo da Diocese das Forças Armadas e das Forças
de Segurança, aduz, no mesmo Semanário
Ecclesia, que, “no presépio nasce o futuro e não a selvajaria do passado”.
Parte
da evocação da carranca “O Selvagem” dos palácios da Andaluzia do “Renascimento
do Sul” colocadas na sua frontaria “no lugar onde, habitualmente, outros colocam
brasões de família”. “Queriam transmitir a ideia de que as suas raízes se
perdiam no tempo” ou que, “pelo menos, eram anteriores à civilização”. E comenta
Dom Manuel Linda a esse respeito:
“Embora o título de ‘selvagem’ lhes assente que nem uma luva, diga-se de
passagem que, quanto a antiguidades, não me batem aos pontos, pois as minhas
origens ainda estão bem mais lá para trás: estão em Adão e Eva. Portanto, não é
a sua vetustez que me impressiona; o que me perturba é essa atração pela
selvajaria. Fácil será imaginar os seus numerosos trabalhadores, espécie de ‘servos
da gleba’ fora de tempo, quando passavam pela casa do seu senhor, acotovelar o
vizinho de lado e sussurrar-lhe: Olha
ali. O nosso patrão é muito feiinho.”.
Para
os simples, mas ‘sábios’, o patrão “era feio não tanto fisicamente, mas, muito
mais, nas suas ações”. E, apesar de na capela palaciana se celebrar missa
diariamente, “a fealdade estava na soberba”, nas rixas com quem imaginava que lhe
fazia frente, “na avareza, no uso e fruto dos outros a seu bel-prazer”, aliás, “num
estilo de vida” em que “todos os outros não passariam de uma espécie de animais
sobre quem imperava direito de vida e de morte”.
Pensa
o Bispo em alguns ‘selvagens’ do nosso tempo, que, tornados “outros
novos-ricos, usurparam o poder ou lá chegaram por incúria do povo” e que, “à semelhança dos andaluzes doutras eras, são
moralmente muito feios, pois semeiam o egoísmo, abatem as pontes, levantam
muros, atacam as instituições que pretendem colocar alguma ordem na desordem do
mundo, espalham sementes de potencial violência, vão contra os pactos
internacionais e divertem-se a soprar a brasas sempre aptas a tornarem-se chamas”.
São pirómanos para quem “a vida dos outros não conta”, embora digam agir
assim “para defenderem os seus”. Mentem, pois, provocando os outros monstros, “abrem
um imenso potencial de destruição”. Diz o prelado que “parece ter razão a
presidente da Campanha Internacional pela Abolição das Armas Nucleares que, ao
receber o Nobel da Paz, alertou para a iminência de uma guerra mundial, dizendo
que a morte de milhões de pessoas pode estar à distância de uma pequena
birra”.
E
o Bispo das Forças Armadas e das Forças de Segurança diz em obediência à sua obrigação
profética: “O Menino do presépio é o ‘Príncipe da paz’ que vem instaurar a glória
ao Deus das alturas e a paz na terra aos homens que o Senhor ama: as duas, em
simultâneo, pois não há glória sem paz nem paz sem glória”. E pede que,
“na
sua candura, Ele faça de nós mais humanos e menos selvagens.
***
Ora o Natal sem Jesus não faz sentido, fica desvirtuado e pode cair no
vazio.
Sem Jesus, as estrelas não são
referência, deixam de brilhar, eclipsam-se; os sinos cansam-se de tanger, o som
enrouquece-se-lhes, partem, ficam sem badalo e caem silenciados; as luzes não cintilam,
não brilham e apagam-se; as árvores murcham e secam; as bolas sabem a oco e
postiço; as prendas não passam de trocas comerciais e não selam nem reforçam amizades,
ficando-se por praxes vazias; as formas de altruísmo não passam de formas de autossatisfação
e de tranquilização de consciências, correndo atrás da efeméride; a amizade, a convivência
familiar e de grupo ou a paz rapidamente descambam indiferença ou desamor e
ódio, em intriga, em crítica e guerra; e o comércio natalino não passa de mercantilismo
por vezes desenfreado.
É Cristo quem dá sentido, sabor e
elevação às práticas elencadas e lhes confere estabilidade, duração e valor
sobrenatural. É que o Natal de Cristo não é uma simples festa
de aniversário, mas a festa do Deus
poderoso que assume a forma de bebé para crescer com os homens e os tornar
felizes. Ele já veio fazer a redenção dando a vida
por nós e há de vir no fim dos tempos avaliar o trabalho que fizemos na
dilatação do Reino. Importa, entretanto, que Ele entre nas zonas da nossa vida
pessoal e nos escaninhos da comunidade humana aonde não O deixámos penetrar. E importa
que não nos distraiamos nem distraiamos os outros, mas façamos festa, festa de
Deus que desce ao homem, festa do homem que sobe para Deus com os outros homens.
***
Miguel Oliveira Panão, no predito
semanário, frisa que Deus “nasce bebé” e eu penso que essa é uma forma verdadeiramente
arrojada de teofania que os homens tardiamente perceberam, se é que perceberam.
Com efeito, ninguém passa indiferente pelo nascer duma criancinha, sendo essa
uma experiência fortemente “transformativa” sobretudo para a mãe e para o pai.
Diz o colunista que “ver um filho bebé pela primeira vez é um ato de
contemplação que altera radicalmente a perceção do mundo”.
Porém,
verificando que Jesus é Deus que “nasceu bebé”, interroga-se se esse facto “será
hoje ainda uma experiência transformativa. E justifica-se:
“A tentativa de desalojar Jesus do Natal é constante. Substitui-se por
um pai natal [que até tem origem cristã ora ignorada], pela árvore de natal [que
ganhou sentido cristão ora perdido], por renas, mas esses não produzem
experiências que transformam profundamente a nossa vida e visão do mundo.
Depois, começou-se a falar do Natal como a festa da família. Uma ideia mais
universal e que abrange mais realidades entre crentes e não crentes. É uma
ideia mais transformativa e pertinente, mas não é tão radical como a de Deus
nascer criança.”.
Falar
do Natal como festa da família é positivo, mas não se mostra “tão radical como
a de Deus nascer criança”. E diz o colunista que a “ideia de Deus fazer-se
humano parece absurda”, desinstalando-nos “do convencional e talvez por ser uma
ideia demasiado arrojada, muitos tenham dificuldade em reconhecê-la como
experiência e deixar-se transformar”. E assegura:
“Num mundo em que tudo se move na direção de um realismo cada vez maior,
há que reconhecer o Natal como a festa de uma criança chamada Jesus”.
É
preciso realojar Jesus no coração natalino de cada pessoa e de cada família
para sentir as luzes a exprimir a Luz de Jesus, a estrela maior; as prendas que
trocamos e outros gestos de amor e solidariedade devem constituir formas de ver
Jesus nos outros; “o sorriso e a alegria que procuramos transmitir” à nossa volta
têm de ser “expressão da alegria pelo nascimento de uma criança chamada Jesus”.
Na verdade, “no pobre, abandonado, triste, stressado está Jesus-Menino que
chora e nos convida a consolar com alimento, companhia, alegria e serenidade”. E
“o maior presente de todos a dar a essa criança que nasce, Jesus, será estarmos
inteiramente presentes para nos dedicarmos exclusivamente aos outros”.
***
É
certo que todos têm o direito de celebrar o Natal de acordo com o conhecimento
que têm da realidade e da História. O Natal como festa universal não pode ser
negado a ninguém. E quem celebra o Natal na beneficência e solidariedade, na
luta pelas grandes causas, na dedicação aos outros – os pobres, os doentes, os excluídos
e explorados, os espoliados, os novos servos da gleba, os descartados, os
roubados na sua dignidade, os raríssimos… – têm mérito junto de Deus em conformidade
com a sua consciência e boas obras. Porém, os promotores do Natal – os cristãos
– têm responsabilidades acrescidas por pactuarem com o desconhecimento de
tantos e de tantas sobre o verdadeiro sentido do Natal. Não podem desculpar-se
com o pluralismo e a globalização para a sua falta de apresentação do kérigma
evangélico, para a sua falta de testemunho e de diálogo profético.
Somos
responsáveis pelo vazio do Natal e do seu mercantilismo! Ai de nós, se não
evangelizarmos! Não, não é o de um amigo qualquer, mas do Filho de Deus, feito
nosso irmão!
Temos
de deixar o nosso cristianismo descafeinado e não permitir que Jesus fique ignorado
ou abandonado na gruta de Belém ou no sepulcro de Jerusalém. Não seja
necessário virem os anjos cantar porque nós nos descuidamos ou virem os
pastores de Belém ensinar-nos os caminhos do presépio e as suas lições. Se nos calarmos,
virão outros clamar pelo Natal e pela Redenção!
2017.12.15 – Louro de Carvalho
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