sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

O Aniversário do Amigo

Todos e todas se mobilizaram para o aniversário dum amigo especial ou simplesmente para o Aniversário. Os promotores fizeram soar o pregão por quantos meios, velhos e novos, tinham ao seu alcance e as pessoas andavam num rodopio doido: viagens, férias, prendas, árvores ornamentais, luzes, sons – muita música, canções e toques de sinos – estrelas, refeições, assembleias de solidariedade, dádivas aos sem-abrigo e a outros necessitados, espetáculos para doentes, jogos e sorteios… Tudo se justificava: é o Aniversário, a festa da vida, do grupo e da família, o tempo da liberdade, o tempo da paz, da amizade, do altruísmo.
E quem é o tal aniversariante? Bem, isso pouco importa. Alguns dos promotores até nem sabem dizer quem é. Mas é uma coisa bombástica, que muda tudo. Sem esta festa, as pessoas não eram as mesmas. E era bonito que este Aniversário fosse o ano inteiro. Outros dos promotores sabem quem é o tal amigo, mas têm dificuldade em o revelar: é preciso respeitar os que não o conhecem. Estamos numa sociedade pluralista. É melhor disfarçar. A vergonha e o recato nunca são demais!
Ora, se os promotores não sabem ou têm vergonha de dizer quem é o amigo para cujo aniversário somos convocados, não admira que os participantes nesta azáfama e neste corrupio de festa e distração, férias e comércio, presentes e bonecada não saibam de quem seja o Aniversário. Satisfazem-se em saber que é uma coisa boa, caso contrário não arregimentava tanta gente, tantos grupos e povos e não se falava tanto deste evento.
E o Aniversário decorre festivamente, mas em privado, quase às ocultas, quando a maior parte dos convocados vive, se diverte e passa sem se aperceber da verdadeira festa.
***
Ora, este aniversário é o de Jesus. E muitos não o sabem nem se interessam em saber. Isto porque muitos dos corifeus do Natal têm vergonha de o dizer, de o proclamar. São demasiado prudentes e pouco simples, muito festeiros, mas pouco profetas, muito organizadores, mas pouco apóstolos; e deixam que os filhos das trevas preencham o vazio criado pelos filhos da luz. E muitos dos filhos das trevas enchem, a propósito do Natal, a carteira das diversões, dos negócios, muitas vezes, da devassidão e, outras vezes, da intriga e da guerra. Põem lá o presépio, mas como qualquer outro bibelô.
***
Octávio Carmo denuncia na edição de hoje, dia 15 de dezembro, do Semanário Ecclesia, este Natal sem Jesus. Refere que “o crescente pluralismo da sociedade” e “o impacto da globalização”, tendem a multiplicar “as várias formas de celebrar o Natal”. E estranha que uma forma de pluralismo consista “em que, publicamente, se impede qualquer pessoa de assumir uma referência explícita à celebração do nascimento de Jesus como fonte de sentido para a forma como vive esta quadra”, alegadamente por respeito pelas outras crenças ou não crenças.
Com razão confessa a estranheza pelo facto de “a compreensão e a abertura para a cultura do outro” tentarem enviesadamente “impedir a manifestação da identidade própria”. E sustenta não se tratar duma “pretensão católica de esgotar em si todas as possibilidades de celebração natalícia, mas de assumir um imprescindível fundo cultural e religioso que é essencial para compreender a forma como hoje vivemos o Natal”.
A inibição de intervir com o sentido do Natal resulta, segundo o colunista, da falta de “questionamento sobre como apresentar a nossa história própria a quem chega de fora, por exemplo, sem lhes esconder o que somos e o que fazemos, por um falso pudor que levaria a abdicar de categorias mentais, religiosas e filosóficas fundamentais para a compreensão da realidade em que todos vivem”.
Ora, se “para muitos portugueses o Natal é a celebração do nascimento de Jesus e tem uma dimensão religiosa”, “evitar que essa convicção tenha visibilidade pública não é tolerância”, mas falta de assunção do profetismo, inibição de entrar na linha cordial e respeitadora do diálogo, que implica a revelação da identidade própria, obviamente sem a impor. Calar pode significar abdicação, cobardia, negação. Só se pode respeitar quem se nos apresenta e o que se nos apresenta, não quem se supõe ou o que se supõe
***
Por seu turno, Dom Manuel Linda, Bispo da Diocese das Forças Armadas e das Forças de Segurança, aduz, no mesmo Semanário Ecclesia, que, “no presépio nasce o futuro e não a selvajaria do passado”.
Parte da evocação da carranca “O Selvagem” dos palácios da Andaluzia do “Renascimento do Sul” colocadas na sua frontaria “no lugar onde, habitualmente, outros colocam brasões de família”. “Queriam transmitir a ideia de que as suas raízes se perdiam no tempo” ou que, “pelo menos, eram anteriores à civilização”. E comenta Dom Manuel Linda a esse respeito:
Embora o título de ‘selvagem’ lhes assente que nem uma luva, diga-se de passagem que, quanto a antiguidades, não me batem aos pontos, pois as minhas origens ainda estão bem mais lá para trás: estão em Adão e Eva. Portanto, não é a sua vetustez que me impressiona; o que me perturba é essa atração pela selvajaria. Fácil será imaginar os seus numerosos trabalhadores, espécie de ‘servos da gleba’ fora de tempo, quando passavam pela casa do seu senhor, acotovelar o vizinho de lado e sussurrar-lhe: Olha ali. O nosso patrão é muito feiinho.”.
Para os simples, mas ‘sábios’, o patrão “era feio não tanto fisicamente, mas, muito mais, nas suas ações”. E, apesar de na capela palaciana se celebrar missa diariamente, “a fealdade estava na soberba”, nas rixas com quem imaginava que lhe fazia frente, “na avareza, no uso e fruto dos outros a seu bel-prazer”, aliás, “num estilo de vida” em que “todos os outros não passariam de uma espécie de animais sobre quem imperava direito de vida e de morte”.
Pensa o Bispo em alguns ‘selvagens’ do nosso tempo, que, tornados “outros novos-ricos, usurparam o poder ou lá chegaram por incúria do povo” e que, “à semelhança dos andaluzes doutras eras, são moralmente muito feios, pois semeiam o egoísmo, abatem as pontes, levantam muros, atacam as instituições que pretendem colocar alguma ordem na desordem do mundo, espalham sementes de potencial violência, vão contra os pactos internacionais e divertem-se a soprar a brasas sempre aptas a tornarem-se chamas”. São pirómanos para quem “a vida dos outros não conta”, embora digam agir assim “para defenderem os seus”. Mentem, pois, provocando os outros monstros, “abrem um imenso potencial de destruição”. Diz o prelado que “parece ter razão a presidente da Campanha Internacional pela Abolição das Armas Nucleares que, ao receber o Nobel da Paz, alertou para a iminência de uma guerra mundial, dizendo que a morte de milhões de pessoas pode estar à distância de uma pequena birra”.
E o Bispo das Forças Armadas e das Forças de Segurança diz em obediência à sua obrigação profética: “O Menino do presépio é o ‘Príncipe da paz’ que vem instaurar a glória ao Deus das alturas e a paz na terra aos homens que o Senhor ama: as duas, em simultâneo, pois não há glória sem paz nem paz sem glória”. E pede que, “na sua candura, Ele faça de nós mais humanos e menos selvagens.
***

Ora o Natal sem Jesus não faz sentido, fica desvirtuado e pode cair no vazio.

Sem Jesus, as estrelas não são referência, deixam de brilhar, eclipsam-se; os sinos cansam-se de tanger, o som enrouquece-se-lhes, partem, ficam sem badalo e caem silenciados; as luzes não cintilam, não brilham e apagam-se; as árvores murcham e secam; as bolas sabem a oco e postiço; as prendas não passam de trocas comerciais e não selam nem reforçam amizades, ficando-se por praxes vazias; as formas de altruísmo não passam de formas de autossatisfação e de tranquilização de consciências, correndo atrás da efeméride; a amizade, a convivência familiar e de grupo ou a paz rapidamente descambam indiferença ou desamor e ódio, em intriga, em crítica e guerra; e o comércio natalino não passa de mercantilismo por vezes desenfreado.

É Cristo quem dá sentido, sabor e elevação às práticas elencadas e lhes confere estabilidade, duração e valor sobrenatural. É que o Natal de Cristo não é uma simples festa de aniversário, mas a festa do Deus poderoso que assume a forma de bebé para crescer com os homens e os tornar felizes. Ele já veio fazer a redenção dando a vida por nós e há de vir no fim dos tempos avaliar o trabalho que fizemos na dilatação do Reino. Importa, entretanto, que Ele entre nas zonas da nossa vida pessoal e nos escaninhos da comunidade humana aonde não O deixámos penetrar. E importa que não nos distraiamos nem distraiamos os outros, mas façamos festa, festa de Deus que desce ao homem, festa do homem que sobe para Deus com os outros homens.

***

Miguel Oliveira Panão, no predito semanário, frisa que Deus “nasce bebé” e eu penso que essa é uma forma verdadeiramente arrojada de teofania que os homens tardiamente perceberam, se é que perceberam. Com efeito, ninguém passa indiferente pelo nascer duma criancinha, sendo essa uma experiência fortemente “transformativa” sobretudo para a mãe e para o pai.

Diz o colunista que “ver um filho bebé pela primeira vez é um ato de contemplação que altera radicalmente a perceção do mundo”.

Porém, verificando que Jesus é Deus que “nasceu bebé”, interroga-se se esse facto “será hoje ainda uma experiência transformativa. E justifica-se:
A tentativa de desalojar Jesus do Natal é constante. Substitui-se por um pai natal [que até tem origem cristã ora ignorada], pela árvore de natal [que ganhou sentido cristão ora perdido], por renas, mas esses não produzem experiências que transformam profundamente a nossa vida e visão do mundo. Depois, começou-se a falar do Natal como a festa da família. Uma ideia mais universal e que abrange mais realidades entre crentes e não crentes. É uma ideia mais transformativa e pertinente, mas não é tão radical como a de Deus nascer criança.”.
Falar do Natal como festa da família é positivo, mas não se mostra “tão radical como a de Deus nascer criança”. E diz o colunista que a “ideia de Deus fazer-se humano parece absurda”, desinstalando-nos “do convencional e talvez por ser uma ideia demasiado arrojada, muitos tenham dificuldade em reconhecê-la como experiência e deixar-se transformar”. E assegura:
Num mundo em que tudo se move na direção de um realismo cada vez maior, há que reconhecer o Natal como a festa de uma criança chamada Jesus”.
É preciso realojar Jesus no coração natalino de cada pessoa e de cada família para sentir as luzes a exprimir a Luz de Jesus, a estrela maior; as prendas que trocamos e outros gestos de amor e solidariedade devem constituir formas de ver Jesus nos outros; “o sorriso e a alegria que procuramos transmitir” à nossa volta têm de ser “expressão da alegria pelo nascimento de uma criança chamada Jesus”. Na verdade, “no pobre, abandonado, triste, stressado está Jesus-Menino que chora e nos convida a consolar com alimento, companhia, alegria e serenidade”. E “o maior presente de todos a dar a essa criança que nasce, Jesus, será estarmos inteiramente presentes para nos dedicarmos exclusivamente aos outros”.
***
É certo que todos têm o direito de celebrar o Natal de acordo com o conhecimento que têm da realidade e da História. O Natal como festa universal não pode ser negado a ninguém. E quem celebra o Natal na beneficência e solidariedade, na luta pelas grandes causas, na dedicação aos outros – os pobres, os doentes, os excluídos e explorados, os espoliados, os novos servos da gleba, os descartados, os roubados na sua dignidade, os raríssimos… – têm mérito junto de Deus em conformidade com a sua consciência e boas obras. Porém, os promotores do Natal – os cristãos – têm responsabilidades acrescidas por pactuarem com o desconhecimento de tantos e de tantas sobre o verdadeiro sentido do Natal. Não podem desculpar-se com o pluralismo e a globalização para a sua falta de apresentação do kérigma evangélico, para a sua falta de testemunho e de diálogo profético.
Somos responsáveis pelo vazio do Natal e do seu mercantilismo! Ai de nós, se não evangelizarmos! Não, não é o de um amigo qualquer, mas do Filho de Deus, feito nosso irmão!
Temos de deixar o nosso cristianismo descafeinado e não permitir que Jesus fique ignorado ou abandonado na gruta de Belém ou no sepulcro de Jerusalém. Não seja necessário virem os anjos cantar porque nós nos descuidamos ou virem os pastores de Belém ensinar-nos os caminhos do presépio e as suas lições. Se nos calarmos, virão outros clamar pelo Natal e pela Redenção!  

2017.12.15 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário