Pelos vistos, era
necessário mexer no ordenamento jurídico do financiamento dos partidos, pois,
segundo o alerta do Presidente do Tribunal Constitucional (TC), em abril pp., não era plausível, do lado da
constitucionalidade, que o mesmo órgão fosse instrutor do processo e
fiscalizador.
Ora, os partidos
aproveitaram a oportunidade para, em sede legislativa, procederem a uma
alteração mais aprofundada da lei em vigor e de outras com ela conexas, o que
suscita críticas quer em termos de processo quer em termos de conteúdo. E, por
conseguinte, no
Parlamento, no dia 21 de dezembro, PS, PSD, PCP e BE estiveram de acordo para
aprovar a lei. CDS e PAN mostraram-se contra, votando desfavoravelmente todo o
diploma.
***
Quanto ao conteúdo, é
discutível quer a opção em vigor sobre os limites estabelecidos na lei quanto a
donativos de particulares e quanto a resultados das atividades de angariação de
fundos – tal como seria discutível que a fonte do financiamento dos partidos
fosse apenas o orçamento do Estado. Os partidos são associações; e as
associações vivem também das quotas dos associados e de outros donativos, legados,
subvenções e atividades.
Porém, agora, além da
abolição dos limites consignados na lei ainda vigente, levanta-se uma outra
questão: a recuperação do IVA por aquisições de bens e serviços por parte dos
partidos. Tal disposição levanta ondas a muita gente, que se esquece de que os
partidos são associações que, no quadro da sua ideologia e/ou da pragmática, perseguem,
à sua maneira, o interesse público, pelo que, segundo alguns, deveriam gozar
das regalias reconhecidas às entidades privadas de utilidade pública.
***
Para lá das questões
de conteúdo, levantam-se problemas de caráter procedimental, de que ressaltam a
obscuridade e o secretismo de que se revestiu o processo legislativo.
A nova lei do financiamento partidário, aprovada na Assembleia da República
a 21 de dezembro, foi preparada durante nove meses num jogo de sombras e às
escondidas, sem se saber que partido é que contribuiu com qual ideia. Neste
processo, não se encontra nenhuma ata, nenhum documento oficial, como revela o “Público” do dia 26. Segundo este diário,
todas as reuniões do grupo de trabalho dito “informal” (mas que no site do Parlamento aparece como formal) foram conduzidas à porta fechada, sem que os
jornalistas pudessem acompanhar as discussões.
A este respeito, José Silvano, o deputado do PSD que coordenou os trabalhos,
justificou:
“Se é um grupo informal, não há propostas
[oficiais]. Os partidos sugeriram essas propostas, mas não sei qual e em que
pontos. […]. Não existem atas, de documental só existe a lei que foi aprovada.
No grupo de trabalho não havia votação e as propostas eram apresentadas
oralmente.”.
O Presidente da Associação Portuguesa
Transparência e Integridade (APTI), João Paulo Batalha, em declarações ao “I”, de hoje, dia 27, diz
que a nova lei nasceu com duas medidas “bónus” feitas quase à medida dos
principais partidos políticos: o fim do valor máximo para os fundos angariados –
reclamação antiga do PCP, devido à festa do Avante, e do PSD no Chão da Lagoa –
e a garantia que os partidos políticos passam a ter devolução do IVA de todas
as suas despesas – medida que interessa ao PS, tendo em conta algumas disputas
com o Fisco que ainda correm. Diz ele que se trata de “um negócio cozinhado pelos partidos para benefício
próprio e feito de forma premeditada nas costas dos cidadãos”. E reiterou
que “isto foi feito pela calada, foi
premeditado para ser feito pela calada e foi votado em vésperas de Natal para
que os portugueses não percebessem”.
Parece-me que tem razão em afirmar que se trata de satisfazer os interesses
dos partidos. Resta discutir se esses interesses são ou não legítimos ou se era
preferível o “faz de conta”.
Quanto à votação final ter sido antes do Natal, não vejo que os cidadãos
andem tão distraídos como parece. Os cidadãos não estão motivados para a
intervenção cívica e política. É isso o que acontece: estão divorciados da
causa pública, exceto em situações de tragédia. E a ATPI teve nove meses para
denunciar esta falta de escrutínio. Fê-lo só agora, porquê?
Não vejo razão para que as propostas tenham de ser apresentadas por escrito
ou crismadas com o nome de cada autor, uma vez que o projeto de lei saiu de um
grupo de trabalho constituído por deputados de todas as bancadas parlamentares
(que assume a
autoria). No entanto, confesso que é
estranho o Parlamento – habitualmente tão aberto e documentando tudo e tudo
discutindo – se tenha refugiado na discussão à porta fechada em torno duma
matéria politicamente sensível.
***
Agora,
não se dando por vencido, o CDS/PP pede a Marcelo que vete alterações à lei de
financiamento dos partidos. Assunção
Cristas, falando no final da manhã de hoje na sede do CDS, diz que alterações
são “inadmissíveis e escandalosas”. Por isso, deixou
um apelo direto ao Presidente a que “vete o diploma, devolvendo-o ao
Parlamento, na esperança de que os restantes partidos possam rever as suas
posições”.
Os centristas frisam que durante todo o processo foram
“contra o aproveitamento” da iniciativa do TC para apertar o controlo do
financiamento para introduzir outras alterações, “inadmissíveis e escandalosas”
e que o partido considera que “nada tinham a ver com o objetivo inicial”.
Segundo o CDS/PP, só no dia 19 ficou claro que o
diploma seria votado no dia 21, pelo que o partido votou contra toda a lei no
Parlamento, já perto do Natal e apesar de ter tido conhecimento de todo o
processo no grupo de trabalho em que foram trabalhadas as propostas para mudar
a lei. As alterações que foram aprovadas com acordo de PSD, PS,BE e PCP e que
estão a causar polémica, visam a isenção do IVA para “a totalidade de
aquisições de bens e serviços para a sua [dos partidos] atividade” e o fim dos
tetos do financiamento privado, embora se mantenha o limite individual para
cada doação.
Sobre as questões processuais (o grupo de trabalho funcionou à porta fechada e não há atas escritas sobre
as reuniões, nem se sabe quem propôs cada alteração) o líder parlamentar do CDS, Nuno
Magalhães, admitiu que o partido esteve presente em todos os passos do processo,
mas disse que “até ao último minuto” o partido quis corrigir as alterações feitas
‘à boleia’ das que chegaram por sugestão do TC, normas que acabaram por
“quebrar o consenso”. E, segundo o deputado do CDS António Carlos Monteiro, “a
insistência dos demais partidos levou a que o CDS saltasse fora do acordo
inicial”.
Foi ainda referido que “o CDS tem um histórico de
autorregulação”, que o leva a manter esta posição, “frontalmente contra”. E o
partido espera que o momento da promulgação “não chegue”, para o que apela à
intervenção do Presidente da República.
Agora, a batata
quente está nas mãos de Marcelo Rebelo de Sousa para promulgação – ou não –, que,
no dia 26, à noite, prometeu analisar a nova
lei com atenção e relembrou a situação que deu origem a esta reformulação
necessária, mas disse que não teve tempo de ver outras questões de pormenor,
que vai analisar.
***
Pelos vistos, as conta dos partidos em 2011 desmentem o histórico de autorregulação
de qualquer dos partidos com assento parlamentar, com exceção do Bloco de
Esquerda.
Por outro lado, o CDS não tem outra força que não seja o apelo ao veto
político do Presidente. Se tivesse 46 deputados (um quinto) poderia suscitar a fiscalização preventiva da
constitucionalidade do diploma…
Porém, o veto presidencial pode ser ineficaz. A lei foi aprovada pela
maioria esmagadora dos deputados. O Dr. Mário Soares e o Prof. Cavaco vetaram
diplomas aprovados por unanimidade no Parlamento. Irá Marcelo fazer coisa
semelhante? É que a maioria que votou o diploma pode confirmá-lo sem qualquer
alteração!
***
Todavia, o partido de Catarina Martins reagiu em comunicado
à polémica das alterações de financiamento partidário. E refere que, embora o diploma não espelhe totalmente as posições do Bloco de Esquerda,
o partido aprovou-o para permitir que medidas que apertam o controlo e
fiscalização do financiamento dos partidos pudessem avançar.
Na nota
enviada à imprensa, o BE justifica que queria aprovar as alterações que foram
inicialmente sugeridas pelo TC, no sentido de apertar a fiscalização.
Entretanto, surgiram – os partidos não esclareceram de quem partiram as
iniciativas – as propostas relativas ao IVA e às doações no seio do grupo de
trabalho dedicado ao assunto. E, para não quebrar o consenso, “o voto do Bloco
foi a forma de garantir que os partidos não ficavam, por incapacidade de
acordo, sem fiscalização”.
No
entanto, segundo os bloquistas, a lei ainda pode ser melhorada. E aproveitam
para recordar que se mantêm “os cortes nas subvenções partidárias já
anteriormente decididas e votadas pelo Bloco de Esquerda” e que “os donativos
individuais continuam limitados anualmente a 25 vezes o valor do IAS (Indexante dos Apoios Sociais) por doador”.
E o
partido congratula-se por, no diploma aprovado antes do Natal na Assembleia da
República, ser “clarificada a forma de utilização de espaços e salas públicas,
garantindo regras de igualdade no tratamento de candidaturas”. No entanto, no
que toca ao IVA, os bloquistas garantem que a decisão tomada – a isenção para
todas as atividades – “não espelha a posição de fundo do BE sobre esta matéria”,
porque a devolução do imposto pode ser discriminatória para candidaturas
independentes sem os mesmos benefícios.
O
partido respondeu ainda às acusações sobre um processo pouco transparente, à
porta fechada e sem atas disponíveis, assegurando que o processo “seguiu o
curso normal na Assembleia da República” com a constituição de um grupo de
trabalho que colaborou com o TC. E assegura que não quer colaborar em estratégias
para a “incapacidade de fiscalização da atividade e das contas partidárias”,
aguardando agora a avaliação de Marcelo.
***
Marcelo lembra que o
Primeiro-Ministro e os deputados (um quinto) podem pedir fiscalização da constitucionalidade
da lei de financiamento dos partidos.
Em nota de hoje, dia 27, publicada no site
da Presidência, pode ler-se:
“Foi recebido no Palácio de Belém na passada sexta-feira, 22 de
dezembro, o Decreto da Assembleia da República n.º 177/2017, que altera a Lei
n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da organização, funcionamento e processo do
Tribunal Constitucional), a Lei Orgânica n.º 2/2003, de 22 de agosto (Lei dos
Partidos Políticos), a Lei n.º 19/2003, de 20 de junho (Lei de financiamento
dos Partidos Políticos e das campanhas eleitorais) e a Lei Orgânica n.º 2/2005,
de 10 de janeiro (Lei da organização e funcionamento da Entidade das Contas e
Financiamentos Políticos.
Trata-se,
portanto de uma Lei Orgânica, ou seja, de um diploma sobre o qual o Presidente
da República não se pode pronunciar antes de decorridos oito dias após a sua
receção, nos termos do Artigo 278.º, n.º 7, da Constituição da República.
Como
previsto no mesmo artigo, durante este período de oito dias e após a
notificação pelo Presidente da Assembleia da República, têm o Primeiro-Ministro
e um quinto dos Deputados em funções, o direito de requerer a fiscalização
preventiva da constitucionalidade do decreto.”.
A nota explicita todo o âmbito do decreto parlamentar sobre o qual Marcelo tem
de se pronunciar e não apenas sobre o financiamento dos partidos. O dossiê é,
pois, mais complexo.
Tratando-se de uma
lei orgânica, o Presidente terá de esperar 8 dias – isto é, até dia 30 de dezembro – para poder pronunciar-se sobre as
alterações e processo que geraram polémica.
Marcelo recorda aos partidos que assiste ao Primeiro-Ministro e aos
deputados “o direito” de pedir a fiscalização preventiva da constitucionalidade
do decreto.
Como era de prever, os partidos não vão fazer nada.
Com efeito, partidos que estiveram envolvidos nas
alterações fizeram um comunicado conjunto (que o Bloco não assinou por ter
uma posição autónoma), já depois da
reação presidencial, onde atiram para o Chefe de Estado a
responsabilidade de “decidir ou não” pela promulgação da lei. Uma fonte do
PS diz: “Se tivéssemos dúvidas de constitucionalidade
não tínhamos aprovado”.
O comunicado vem assinado por José
Silvano (PSD), Ana Catarina Mendes (PS), António Filipe (PCP) e José Luís Ferreira (PEV). Os deputados, que são alguns dos que participaram no grupo de
trabalho que preparou as alterações à lei, afirmam que o trabalho foi feito “no quadro de um consenso alargado que apenas
não teve acolhimento pontual por parte do CDS”. E dizem que “o grupo de
trabalho informal” foi constituído para “encontrar soluções legislativas que
fossem ao encontro” das questões suscitadas pelo Tribunal Constitucional.
Segundo os deputados, existiam “dúvidas
de constitucionalidade sobre o regime jurídico institucional do
financiamento partidário, bem como das disfuncionalidades que tal regime
acarretava”.
Numa resposta às questões sobre a transparência, o texto refere os passos
processuais que foram sendo dados (e dos quais não há
registos), referindo audições do
presidente e do vice-presidente do Tribunal Constitucional e a entrega
do anteprojeto ao presidente da comissão parlamentar de
Assuntos Constitucionais – que agora diz que pode vir a atuar, não sei porquê
nem para quê. Atuava antes! Também garantem que foi “por consenso” que se
decidiu o agendamento da discussão e aprovação do projeto em plenário da
Assembleia da República, para o dia 21.
O texto encerra com a garantia – apesar de a questão não ter sido suscitada
por ninguém até agora – que “da lei aprovada não resulta nenhum aumento da subvenção estatal ou
quaisquer encargos públicos adicionais para com os partidos”.
***
E é assim: muita
parra, pouca uva. Até agora, Marcelo está a fazer o que deve: analisar e
esperar oito dias para promulgar ou vetar. É o que a CRP impõe tratando-se de
lei orgânica. Os partidos cumpriram de um modo ou de outro e vence a posição
maioritária. Não gostam os eleitores? Decidam em 2019 de outra maneira!
2017.12.27 – Louro de Carvalho
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