quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

A polémica da nova lei do financiamento partidário

Pelos vistos, era necessário mexer no ordenamento jurídico do financiamento dos partidos, pois, segundo o alerta do Presidente do Tribunal Constitucional (TC), em abril pp., não era plausível, do lado da constitucionalidade, que o mesmo órgão fosse instrutor do processo e fiscalizador.
Ora, os partidos aproveitaram a oportunidade para, em sede legislativa, procederem a uma alteração mais aprofundada da lei em vigor e de outras com ela conexas, o que suscita críticas quer em termos de processo quer em termos de conteúdo. E, por conseguinte, no Parlamento, no dia 21 de dezembro, PS, PSD, PCP e BE estiveram de acordo para aprovar a lei. CDS e PAN mostraram-se contra, votando desfavoravelmente todo o diploma.
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Quanto ao conteúdo, é discutível quer a opção em vigor sobre os limites estabelecidos na lei quanto a donativos de particulares e quanto a resultados das atividades de angariação de fundos – tal como seria discutível que a fonte do financiamento dos partidos fosse apenas o orçamento do Estado. Os partidos são associações; e as associações vivem também das quotas dos associados e de outros donativos, legados, subvenções e atividades.
Porém, agora, além da abolição dos limites consignados na lei ainda vigente, levanta-se uma outra questão: a recuperação do IVA por aquisições de bens e serviços por parte dos partidos. Tal disposição levanta ondas a muita gente, que se esquece de que os partidos são associações que, no quadro da sua ideologia e/ou da pragmática, perseguem, à sua maneira, o interesse público, pelo que, segundo alguns, deveriam gozar das regalias reconhecidas às entidades privadas de utilidade pública.
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Para lá das questões de conteúdo, levantam-se problemas de caráter procedimental, de que ressaltam a obscuridade e o secretismo de que se revestiu o processo legislativo.
A nova lei do financiamento partidário, aprovada na Assembleia da República a 21 de dezembro, foi preparada durante nove meses num jogo de sombras e às escondidas, sem se saber que partido é que contribuiu com qual ideia. Neste processo, não se encontra nenhuma ata, nenhum documento oficial, como revela o “Público” do dia 26. Segundo este diário, todas as reuniões do grupo de trabalho dito “informal” (mas que no site do Parlamento aparece como formal) foram conduzidas à porta fechada, sem que os jornalistas pudessem acompanhar as discussões.
A este respeito, José Silvano, o deputado do PSD que coordenou os trabalhos, justificou:
Se é um grupo informal, não há propostas [oficiais]. Os partidos sugeriram essas propostas, mas não sei qual e em que pontos. […]. Não existem atas, de documental só existe a lei que foi aprovada. No grupo de trabalho não havia votação e as propostas eram apresentadas oralmente.”.
O Presidente da Associação Portuguesa Transparência e Integridade (APTI), João Paulo Batalha, em declarações ao “I”, de hoje, dia 27, diz que a nova lei nasceu com duas medidas “bónus” feitas quase à medida dos principais partidos políticos: o fim do valor máximo para os fundos angariados – reclamação antiga do PCP, devido à festa do Avante, e do PSD no Chão da Lagoa – e a garantia que os partidos políticos passam a ter devolução do IVA de todas as suas despesas – medida que interessa ao PS, tendo em conta algumas disputas com o Fisco que ainda correm. Diz ele que se trata de “um negócio cozinhado pelos partidos para benefício próprio e feito de forma premeditada nas costas dos cidadãos”. E reiterou que “isto foi feito pela calada, foi premeditado para ser feito pela calada e foi votado em vésperas de Natal para que os portugueses não percebessem”.
Parece-me que tem razão em afirmar que se trata de satisfazer os interesses dos partidos. Resta discutir se esses interesses são ou não legítimos ou se era preferível o “faz de conta”.
Quanto à votação final ter sido antes do Natal, não vejo que os cidadãos andem tão distraídos como parece. Os cidadãos não estão motivados para a intervenção cívica e política. É isso o que acontece: estão divorciados da causa pública, exceto em situações de tragédia. E a ATPI teve nove meses para denunciar esta falta de escrutínio. Fê-lo só agora, porquê?
Não vejo razão para que as propostas tenham de ser apresentadas por escrito ou crismadas com o nome de cada autor, uma vez que o projeto de lei saiu de um grupo de trabalho constituído por deputados de todas as bancadas parlamentares (que assume a autoria). No entanto, confesso que é estranho o Parlamento – habitualmente tão aberto e documentando tudo e tudo discutindo – se tenha refugiado na discussão à porta fechada em torno duma matéria politicamente sensível.
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Agora, não se dando por vencido, o CDS/PP pede a Marcelo que vete alterações à lei de financiamento dos partidos. Assunção Cristas, falando no final da manhã de hoje na sede do CDS, diz que alterações são “inadmissíveis e escandalosas”. Por isso, deixou um apelo direto ao Presidente a que “vete o diploma, devolvendo-o ao Parlamento, na esperança de que os restantes partidos possam rever as suas posições”.
Os centristas frisam que durante todo o processo foram “contra o aproveitamento” da iniciativa do TC para apertar o controlo do financiamento para introduzir outras alterações, “inadmissíveis e escandalosas” e que o partido considera que “nada tinham a ver com o objetivo inicial”.
Segundo o CDS/PP, só no dia 19 ficou claro que o diploma seria votado no dia 21, pelo que o partido votou contra toda a lei no Parlamento, já perto do Natal e apesar de ter tido conhecimento de todo o processo no grupo de trabalho em que foram trabalhadas as propostas para mudar a lei. As alterações que foram aprovadas com acordo de PSD, PS,BE e PCP e que estão a causar polémica, visam a isenção do IVA para “a totalidade de aquisições de bens e serviços para a sua [dos partidos] atividade” e o fim dos tetos do financiamento privado, embora se mantenha o limite individual para cada doação.
Sobre as questões processuais (o grupo de trabalho funcionou à porta fechada e não há atas escritas sobre as reuniões, nem se sabe quem propôs cada alteração) o líder parlamentar do CDS, Nuno Magalhães, admitiu que o partido esteve presente em todos os passos do processo, mas disse que “até ao último minuto” o partido quis corrigir as alterações feitas ‘à boleia’ das que chegaram por sugestão do TC, normas que acabaram por “quebrar o consenso”. E, segundo o deputado do CDS António Carlos Monteiro, “a insistência dos demais partidos levou a que o CDS saltasse fora do acordo inicial”.
Foi ainda referido que “o CDS tem um histórico de autorregulação”, que o leva a manter esta posição, “frontalmente contra”. E o partido espera que o momento da promulgação “não chegue”, para o que apela à intervenção do Presidente da República.
Agora, a batata quente está nas mãos de Marcelo Rebelo de Sousa para promulgação – ou não –, que, no dia 26, à noite, prometeu analisar a nova lei com atenção e relembrou a situação que deu origem a esta reformulação necessária, mas disse que não teve tempo de ver outras questões de pormenor, que vai analisar.
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Pelos vistos, as conta dos partidos em 2011 desmentem o histórico de autorregulação de qualquer dos partidos com assento parlamentar, com exceção do Bloco de Esquerda.
Por outro lado, o CDS não tem outra força que não seja o apelo ao veto político do Presidente. Se tivesse 46 deputados (um quinto) poderia suscitar a fiscalização preventiva da constitucionalidade do diploma…
Porém, o veto presidencial pode ser ineficaz. A lei foi aprovada pela maioria esmagadora dos deputados. O Dr. Mário Soares e o Prof. Cavaco vetaram diplomas aprovados por unanimidade no Parlamento. Irá Marcelo fazer coisa semelhante? É que a maioria que votou o diploma pode confirmá-lo sem qualquer alteração!
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Todavia, o partido de Catarina Martins reagiu em comunicado à polémica das alterações de financiamento partidário. E refere que, embora o diploma não espelhe totalmente as posições do Bloco de Esquerda, o partido aprovou-o para permitir que medidas que apertam o controlo e fiscalização do financiamento dos partidos pudessem avançar.
Na nota enviada à imprensa, o BE justifica que queria aprovar as alterações que foram inicialmente sugeridas pelo TC, no sentido de apertar a fiscalização. Entretanto, surgiram – os partidos não esclareceram de quem partiram as iniciativas – as propostas relativas ao IVA e às doações no seio do grupo de trabalho dedicado ao assunto. E, para não quebrar o consenso, “o voto do Bloco foi a forma de garantir que os partidos não ficavam, por incapacidade de acordo, sem fiscalização”.
No entanto, segundo os bloquistas, a lei ainda pode ser melhorada. E aproveitam para recordar que se mantêm “os cortes nas subvenções partidárias já anteriormente decididas e votadas pelo Bloco de Esquerda” e que “os donativos individuais continuam limitados anualmente a 25 vezes o valor do IAS (Indexante dos Apoios Sociais) por doador”.
E o partido congratula-se por, no diploma aprovado antes do Natal na Assembleia da República, ser “clarificada a forma de utilização de espaços e salas públicas, garantindo regras de igualdade no tratamento de candidaturas”. No entanto, no que toca ao IVA, os bloquistas garantem que a decisão tomada – a isenção para todas as atividades – “não espelha a posição de fundo do BE sobre esta matéria”, porque a devolução do imposto pode ser discriminatória para candidaturas independentes sem os mesmos benefícios.
O partido respondeu ainda às acusações sobre um processo pouco transparente, à porta fechada e sem atas disponíveis, assegurando que o processo “seguiu o curso normal na Assembleia da República” com a constituição de um grupo de trabalho que colaborou com o TC. E assegura que não quer colaborar em estratégias para a “incapacidade de fiscalização da atividade e das contas partidárias”, aguardando agora a avaliação de Marcelo.
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Marcelo lembra que o Primeiro-Ministro e os deputados (um quinto) podem pedir fiscalização da constitucionalidade da lei de financiamento dos partidos.
Em nota de hoje, dia 27, publicada no site da Presidência, pode ler-se:
Foi recebido no Palácio de Belém na passada sexta-feira, 22 de dezembro, o Decreto da Assembleia da República n.º 177/2017, que altera a Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional), a Lei Orgânica n.º 2/2003, de 22 de agosto (Lei dos Partidos Políticos), a Lei n.º 19/2003, de 20 de junho (Lei de financiamento dos Partidos Políticos e das campanhas eleitorais) e a Lei Orgânica n.º 2/2005, de 10 de janeiro (Lei da organização e funcionamento da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos.
Trata-se, portanto de uma Lei Orgânica, ou seja, de um diploma sobre o qual o Presidente da República não se pode pronunciar antes de decorridos oito dias após a sua receção, nos termos do Artigo 278.º, n.º 7, da Constituição da República.
Como previsto no mesmo artigo, durante este período de oito dias e após a notificação pelo Presidente da Assembleia da República, têm o Primeiro-Ministro e um quinto dos Deputados em funções, o direito de requerer a fiscalização preventiva da constitucionalidade do decreto.”.
A nota explicita todo o âmbito do decreto parlamentar sobre o qual Marcelo tem de se pronunciar e não apenas sobre o financiamento dos partidos. O dossiê é, pois, mais complexo.
Tratando-se de uma lei orgânica, o Presidente terá de esperar 8 dias – isto é, até dia 30 de dezembro – para poder pronunciar-se sobre as alterações e processo que geraram polémica.
Marcelo recorda aos partidos que assiste ao Primeiro-Ministro e aos deputados “o direito” de pedir a fiscalização preventiva da constitucionalidade do decreto.
Como era de prever, os partidos não vão fazer nada. Com efeito, partidos que estiveram envolvidos nas alterações fizeram um comunicado conjunto (que o Bloco não assinou por ter uma posição autónoma), já depois da reação presidencial, onde atiram para o Chefe de Estado a responsabilidade de “decidir ou não” pela promulgação da lei. Uma fonte do PS diz: Se tivéssemos dúvidas de constitucionalidade não tínhamos aprovado.
O comunicado vem assinado por José Silvano (PSD), Ana Catarina Mendes (PS), António Filipe (PCP) e José Luís Ferreira (PEV). Os deputados, que são alguns dos que participaram no grupo de trabalho que preparou as alterações à lei, afirmam que o trabalho foi feito “no quadro de um consenso alargado que apenas não teve acolhimento pontual por parte do CDS”. E dizem que “o grupo de trabalho informal” foi constituído para “encontrar soluções legislativas que fossem ao encontro” das questões suscitadas pelo Tribunal Constitucional. Segundo os deputados, existiam “dúvidas de constitucionalidade sobre o regime jurídico institucional do financiamento partidário, bem como das disfuncionalidades que tal regime acarretava”.
Numa resposta às questões sobre a transparência, o texto refere os passos processuais que foram sendo dados (e dos quais não há registos), referindo audições do presidente e do vice-presidente do Tribunal Constitucional e a entrega do anteprojeto ao presidente da comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais – que agora diz que pode vir a atuar, não sei porquê nem para quê. Atuava antes! Também garantem que foi “por consenso” que se decidiu o agendamento da discussão e aprovação do projeto em plenário da Assembleia da República, para o dia 21.
O texto encerra com a garantia – apesar de a questão não ter sido suscitada por ninguém até agora – que “da lei aprovada não resulta nenhum aumento da subvenção estatal ou quaisquer encargos públicos adicionais para com os partidos”.
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E é assim: muita parra, pouca uva. Até agora, Marcelo está a fazer o que deve: analisar e esperar oito dias para promulgar ou vetar. É o que a CRP impõe tratando-se de lei orgânica. Os partidos cumpriram de um modo ou de outro e vence a posição maioritária. Não gostam os eleitores? Decidam em 2019 de outra maneira!

2017.12.27 – Louro de Carvalho

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