No
dia 18 de dezembro, Sara R. Oliveira, num artigo intitulado “A cultura da ficha e o ensinar para o teste”
(eu prefiro o título em epígrafe),
dá conta do estudo sobre o panorama do ensino em Portugal, nomeadamente no
atinente à avaliação, abordado num congresso
sobre avaliação das aprendizagens e sucesso escolar, que teve lugar na
Universidade do Minho, organizado por quatro investigadores do CIEC (Centro de
Investigação em Estudos da Criança), Maria
Assunção Flores, Maria Palmira Alves, Eusébio André Machado e Sandra Fernandes
– com a participação de vários países e que encerrou com a presença do Secretário
de Estado da Educação, João Costa.
Neste encontro, foi ainda lançado um livro sobre
avaliação e sucesso escolar numa perspetiva internacional, que reúne
contributos de diferentes países e continentes.
Concluem
os mais de 200 congressistas que “a avaliação
dos alunos continua centrada nos testes e nos exames nacionais” e que “a
obsessão pelos resultados, pelos rankings que
ganham projeção pública, acentua a competição entre professores e entre escolas”.
Dizem os doutos participantes que a avaliação se
tornou um imperativo universal, sendo que “tudo
é avaliado, todos são avaliados, todos são avaliadores”. Ora, tudo depende
do tipo de avaliação que se pretende e que se faz e daquilo que pretende cada
um avaliar. E pergunto-me quem é que avalia o que se faz um teste ou num exame
nacional. Não é certamente o aluno ou o seu encarregado de educação, a quem, em
certas circunstâncias, cabe o direito de reclamação.
Num teste de escola, o professor avalia a prestação do
aluno, mas já vem essa avaliação formatada por uns critérios plasmados numa
matriz, que não passa, tantas vezes, de um instrumento de constrição, afastando
a cultura duma avaliação holística. Mas nos exames nacionais é pior: os
critérios que entalam os professores-corretores e as diretrizes verbais que
intervém a torto e a direito durante o processo promovem uma avaliação em
fragmentos, interessando o que o aluno escreveu, mesmo que mostre não perceber
nada do que fez, ou sendo penalizado porque mostra um domínio assaz suficiente
do tema, mas falhou na resposta a fragmentos. Então as questões com resposta de
escolha múltipla são um exemplo do que a sorte ou as sofisticadas formas de
contacto são capazes de fazer.
Muitas vezes, confunde-se, na escola, a expressão
“intervenientes na avaliação” com “avaliadores”. Por exemplo, o diretor
intervém na avaliação, garantindo o serviço, os materiais, o espaço e o tempo,
mas não é avaliador, apesar de alguns se arrogarem episodicamente essa
prerrogativa; os pais intervêm prestando informações sobre as caraterísticas
dos filhos, mas não são avaliadores; e os conselhos de turma, que avaliam sobre
a informação que o professor dá, entram muitas vezes em situação abusiva e
condicionadora.
É óbvio que a avaliação é “caraterizada pela
complexidade, multidimensionalidade e abrangência” e que “as políticas de
avaliação foram substituídas pela própria avaliação como principal política no
campo da educação”. Porém, é legítimo questionar que abrangência e que
multidimensionalidade podem evidenciar-se na avaliação que consiste em fichas,
testes e exames. A multiplicidade e diversidade de itens não garantem a multidimensionalidade
e abrangência. E a complexidade da avaliação reside basicamente no seu pendor
subjetivo, que acontece, por mais critérios que se definam para conseguir
objetividade. Outros tipos de complexidade são criados pelo legislador e pelo
administrador.
Se efetivamente os professores deixarem de ser
obrigados a promover a aprendizagem para o teste, exame e ranking (que é aqui que os pais e a opinião pública fazem juízo
de valor sobre a escola), a
avaliação naturalmente integrará várias componentes que abrangem vários saberes
– conhecimentos, capacidades e atitudes. E a multiplicidade não é sinónimo de
complexidade. Porém, quando Ministério da Educação, Editores, Pais e Centros de
Estudo se unem na cultura da ficha, do teste e do exame e se comprazem na
preparação dos alunos pelo formulário do teste, obviamente a avaliação nem é
complexa, nem multidimensional nem abrangente. Promove-se o estudo mecânico para
exame. E as disciplinas que não têm exame, mas que não querem ficar para trás
na importância escolar, deixam-se arrastar pela mesma onda.
***
Não é obrigatório por lei, mas em todas ou quase todas
as escolas, “há testes em todos os períodos letivos, há exames nacionais em
todas as escolas, divulgam-se resultados, fazem-se rankings, que têm muita atenção mediática”. Há
conselhos pedagógicos que, no âmbito dos critérios de avaliação, determinam
quantos testes se devem fazer por período em cada disciplina, que peso
percentual devem ter na avaliação das aprendizagens, quantos se podem ou não
aplicar por semana. Ora, os critérios definidos por aquele órgão de gestão
pedagógica deveriam consistir na convergência equânime das propostas de cada
disciplina em consonância com o respetivo programa e no âmbito da sua índole e metodologia.
Deixemo-nos de tretas e burocracias. A avaliação
deveria decorrer seriamente da dinâmica das aprendizagens e fazer-se para
promover a melhoria das aprendizagens. E, aqui, será importante articular
programa operacionalizado pela planificação com o ritmo do aluno, mas
obviamente puxando por este. E, para assegurar o pendor formativo da avaliação,
deveriam utilizar-se vários tipos de instrumentos, de oralidade (mas sem
crivar esta de regras e formulários), escrita,
manufatura, dramatização, trabalhos de grupo, trabalhos individuais…
Só que isto, que já esteve em prática, britaria a
lógica do exame nacional e do ranking.
E os alunos que hoje ambicionam uma boa nota final acham que estas práticas são
um desperdício. Por outro lado, os pais e a opinião pública em geral esquecem
que é dever e proveito do aluno estudar todos os dias e labutam pelo estudo de
preparação para o teste ou exame. E, quanto mais fichas o explicador ou o
professor lhe derem, mais bem preparados se julgam – quando o que mais importa
é raciocinar, confrontar-se com novas situações, responder à novidade e ao
imprevisto. Tudo se baralha quando querem que as matrizes do teste ou do exame
exibam o que vai sair e como vai sair ou quando facilmente se pode faltar a
aulas que não são de teste.
É óbvio: no estado atual das coisas, “comparam-se
prestações, notas, escolas”. E a “ênfase na mensurabilidade e na obsessão pelos
resultados origina uma acentuação da competição entre professores e entre
escolas” e, tantas vezes, “uma visão redutora daquilo que conta como qualidade
da educação”. Porém, com isto, não se pretende a desvalorização dos testes ou exames.
Pretende, antes, olhar-se para eles “como um indicador que pode e deve ser
complementado por outros elementos e fatores que constituem a essência do ato
educativo”.
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Este caldo de cultura leva para a escola “a adoção de
práticas curriculares e avaliativas por parte dos professores que tendem a
reproduzir a avaliação externa” marcada pela uniformização. A ‘cultura da
ficha’ e do ‘ensinar/aprender para o teste’, a introdução de materiais
padronizados e o treino de conhecimentos são exemplos bastantes do modo como a
lógica do controlo se sobrepõe à visão holística e flexível de currículo e de
avaliação.
Os congressistas sustentam que avaliação e sucesso andam
a par e que a avaliação regula e monitoriza desempenhos de alunos e escolas. E,
depois de verificarem que, “há 10 anos, por exemplo, o Japão introduziu o teste
nacional” e que “o Brasil tem uma bateria de provas de avaliação ao nível do
governo federal, estadual e municipal”, reconhecem que a medição do sucesso dos
sistemas educativos com base nos testes em larga escala, resultados e rankings, “tem levado, em muitos casos, à adoção de
estratégias de sobrevivência e a alterações no trabalho das escolas e dos
professores, entre os quais está a redução de conteúdos, o estreitamento de
práticas curriculares, a cristalização do currículo e a naturalização de
práticas uniformizadas e rotineiras”.
***
Para melhorar os indicadores de qualidade dos sistemas
educativos e elevar os resultados dos alunos em testes internacionais, os
governos introduziram mudanças na avaliação das aprendizagens que se pautam por
diferentes modelos e que permitem questionar distintos modos de almejar o sucesso
escolar. Porém, questiona-se se esse é sucesso artificial ou real e em que
medida o sucesso se traduz na melhoria da qualidade do ensino e das
aprendizagens na escola.
É certo que a avaliação assumiu lugar de destaque nas
políticas educativas e curriculares e tem impacto nas práticas de ensino-aprendizagem.
Mas há perguntas em torno do tema:
“Que papel têm os testes e exames nacionais
na avaliação e aprendizagem? Que conceções de avaliação e de aprendizagem
subjazem às políticas de avaliação das aprendizagens? Que dizem os quadros
normativos da avaliação? De que modo os sistemas de avaliação informam os sistemas
educativos, sobretudo no atinente ao desenvolvimento do currículo e à melhoria
das aprendizagens?”.
No rescaldo do congresso internacional, os
investigadores sustentam:
“A sinalização das transformações atuais da
avaliação das aprendizagens permite também a recolha de informação sobre um dos
pontos mais críticos das políticas educativas, das mudanças nas escolas e das
profundas tensões que professores e alunos vivem diariamente nas salas de aula.
É fundamental conhecer as políticas de avaliação das aprendizagens dos alunos e
perceber as tendências e os desafios do panorama internacional e também do
nosso país.”.
Todavia a questão de fundo é: Dá-se mais importância à
avaliação da aprendizagem do que à avaliação para aprendizagem e à avaliação
como aprendizagem?
Entende-se como paradigmático o caso da Finlândia. A
este respeito, uma especialista deste país partilhou experiências no encontro.
O seu sistema de avaliação “é orientado por uma lógica formativa”, sendo que “a
avaliação para a aprendizagem surge alinhada com um modelo de currículo mais
flexível, com métodos de avaliação diversificados e versáteis, associada a uma
autonomia curricular e pedagógica dos professores”. Diz ela:
“Os princípios e as práticas de avaliação no
Ensino Básico no contexto finlandês assentam, assim, na promoção da
aprendizagem dos alunos e no seu desenvolvimento contínuo assim como na busca
da equidade educativa”.
De resto, à exceção da Finlândia, o que “surge
claramente no panorama internacional” é “a centralidade dos resultados
escolares dos alunos com base em testes e exames nacionais”. É a evidência da “lógica
da mensurabilidade” e da “dimensão normativa da avaliação” que está bem
presente, por exemplo, no contexto brasileiro, com toda a panóplia de provas,
mas também no contexto japonês, luxemburguês, suíço e belga.
***
Regista-se, em consequência, a forte tensão entre a
avaliação interna e a avaliação externa. Dum lado, o argumento de criar
instrumentos de avaliação em larga escala que permitam a comparação e a
competição – a Croácia é um caso exemplar nesse aspeto; do outro, a necessidade
de uma avaliação interna centrada no aluno, reguladora e formativa. A este
propósito, os investigadores salientam a mimetização e a tensão:
“Das avaliações externas, como sucede com o
PISA, tem resultado um efeito de mimetização que se traduz no incremento e até
na obsessão da avaliação externa nas escolas. O que tem acontecido com este
processo de ‘globalização’ da avaliação das aprendizagens é uma profunda
reconfiguração das lógicas e práticas de avaliação interna. […] As avaliações
externas, tal como estão implementadas, tendem a agudizar as próprias tensões
relacionadas com a autonomia das escolas, especialmente no domínio do
currículo.”.
E os congressistas não esquecem o panorama português,
quando asseguram:
“Em Portugal, a avaliação interna é
consensual em vários aspetos, nomeadamente na lógica da aprendizagem dos alunos
como objeto de avaliação, na conceção alargada relativamente aos intervenientes
no processo, na avaliação global feita no final de cada período, no caráter
excecional da retenção, e ainda nas três modalidades, ou seja, diagnóstica,
formativa e sumativa. Na avaliação externa, tem havido várias mudanças ao longo
do tempo: provas globais, provas de aferição, exames nacionais realizados nos
anos terminais de ciclo. As mudanças têm exigido adaptações de alunos, escolas,
professores. Os defensores da avaliação externa realçam a importância de dar
atenção aos conhecimentos adquiridos pelos alunos em determinadas disciplinas
consideradas nucleares, e que as provas externas podem assumir um caráter
formativo.”.
Ora, do meu ponto de vista, é cada vez menos verdade o
que os ilustres dizem sobre a saúde da avaliação interna. Ela está minada pela
lógica da valorização do teste. É o referente obrigatório do encarregado de
educação e de muitos professores que precisam de sobreviver. Aliás, estão em
contradição com o que mais acima disseram da influência da avaliação externa na
interna.
E como podem as provas externas assumir caráter
formativo fora da lógica da uniformização, para a qual trabalham as escolas, as
editoras e os centros de estudos, que, em vez da explicação, fazemos os
trabalhos do aluno que os dá como seus sem, tantas vezes, saber o que lhe
fizeram.
***
O congresso discutiu ainda outro ponto relevante: as
mudanças na área da avaliação das aprendizagens não têm sido acompanhadas de
uma reconfiguração do trabalho docente, da formação inicial e do
desenvolvimento profissional”. Por conseguinte, “as práticas de avaliação são
ainda marcadas, a nível internacional, por um modelo de organização da escola
assente no trabalho individual, no isolamento disciplinar e no currículo
fragmentado”. Por isso, é preciso introduzir várias mudanças nas escolas para a
criação de outras dinâmicas de trabalho.
É certo que a formação inicial e contínua é um pilar relevante
para a transformação da avaliação das aprendizagens. Porém, em países como o português,
o corpo docente é relativamente envelhecido (É verdade!), com formação inicial em matéria de avaliação
incipiente e socialização profissional “muito marcada por lógicas de trabalho
individualista” (injustas
estas acusações).
Assim, os congressistas entendem que, na formação de
professores, há aspetos a ter em conta como a criação de espaços de
ressocialização do trabalho de docente, enfatizando a necessidade de
experimentar formas alternativas de avaliação, por um lado, e criando condições
para um suporte colaborativo da avaliação das aprendizagens dos alunos, por
outro. E dizem:
“Neste âmbito, será seguramente fundamental
um trabalho coletivo no sentido de uma consolidação científica do processo de
avaliação, designadamente no que se refere à construção, aplicação e uso dos
instrumentos de avaliação”.
Mais foi dito:
“Em termos de investigação no nosso país,
ainda há poucos estudos no domínio da avaliação das aprendizagens focados no
que se faz na sala de aula. Verifica-se que as práticas oscilam entre a
avaliação sumativa e a avaliação formativa, ou seja, avaliação com sentido de
medida e classificação e a avaliação com sentido de negociação, monitorização e
construção. E, além disso, existe um turbilhão legislativo em relação à avaliação
externa que tem gerado ‘entropia’ nas dinâmicas escolares.”.
***
O Congresso o diz, nem sempre com acerto. Será que ME
e escolas o assumirão como convém?
2017.12.30 – Louro de Carvalho
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