sábado, 30 de dezembro de 2017

A cultura da ficha e do estudo para o teste

No dia 18 de dezembro, Sara R. Oliveira, num artigo intitulado “A cultura da ficha e o ensinar para o teste” (eu prefiro o título em epígrafe), dá conta do estudo sobre o panorama do ensino em Portugal, nomeadamente no atinente à avaliação, abordado num congresso sobre avaliação das aprendizagens e sucesso escolar, que teve lugar na Universidade do Minho, organizado por quatro investigadores do CIEC (Centro de Investigação em Estudos da Criança), Maria Assunção Flores, Maria Palmira Alves, Eusébio André Machado e Sandra Fernandes – com a participação de vários países e que encerrou com a presença do Secretário de Estado da Educação, João Costa.
Neste encontro, foi ainda lançado um livro sobre avaliação e sucesso escolar numa perspetiva internacional, que reúne contributos de diferentes países e continentes. 
Concluem os mais de 200 congressistas que “a avaliação dos alunos continua centrada nos testes e nos exames nacionais” e que “a obsessão pelos resultados, pelos rankings que ganham projeção pública, acentua a competição entre professores e entre escolas”.
Dizem os doutos participantes que a avaliação se tornou um imperativo universal, sendo que “tudo é avaliado, todos são avaliados, todos são avaliadores”. Ora, tudo depende do tipo de avaliação que se pretende e que se faz e daquilo que pretende cada um avaliar. E pergunto-me quem é que avalia o que se faz um teste ou num exame nacional. Não é certamente o aluno ou o seu encarregado de educação, a quem, em certas circunstâncias, cabe o direito de reclamação.
Num teste de escola, o professor avalia a prestação do aluno, mas já vem essa avaliação formatada por uns critérios plasmados numa matriz, que não passa, tantas vezes, de um instrumento de constrição, afastando a cultura duma avaliação holística. Mas nos exames nacionais é pior: os critérios que entalam os professores-corretores e as diretrizes verbais que intervém a torto e a direito durante o processo promovem uma avaliação em fragmentos, interessando o que o aluno escreveu, mesmo que mostre não perceber nada do que fez, ou sendo penalizado porque mostra um domínio assaz suficiente do tema, mas falhou na resposta a fragmentos. Então as questões com resposta de escolha múltipla são um exemplo do que a sorte ou as sofisticadas formas de contacto são capazes de fazer.
Muitas vezes, confunde-se, na escola, a expressão “intervenientes na avaliação” com “avaliadores”. Por exemplo, o diretor intervém na avaliação, garantindo o serviço, os materiais, o espaço e o tempo, mas não é avaliador, apesar de alguns se arrogarem episodicamente essa prerrogativa; os pais intervêm prestando informações sobre as caraterísticas dos filhos, mas não são avaliadores; e os conselhos de turma, que avaliam sobre a informação que o professor dá, entram muitas vezes em situação abusiva e condicionadora. 
É óbvio que a avaliação é “caraterizada pela complexidade, multidimensionalidade e abrangência” e que “as políticas de avaliação foram substituídas pela própria avaliação como principal política no campo da educação”. Porém, é legítimo questionar que abrangência e que multidimensionalidade podem evidenciar-se na avaliação que consiste em fichas, testes e exames. A multiplicidade e diversidade de itens não garantem a multidimensionalidade e abrangência. E a complexidade da avaliação reside basicamente no seu pendor subjetivo, que acontece, por mais critérios que se definam para conseguir objetividade. Outros tipos de complexidade são criados pelo legislador e pelo administrador.
Se efetivamente os professores deixarem de ser obrigados a promover a aprendizagem para o teste, exame e ranking (que é aqui que os pais e a opinião pública fazem juízo de valor sobre a escola), a avaliação naturalmente integrará várias componentes que abrangem vários saberes – conhecimentos, capacidades e atitudes. E a multiplicidade não é sinónimo de complexidade. Porém, quando Ministério da Educação, Editores, Pais e Centros de Estudo se unem na cultura da ficha, do teste e do exame e se comprazem na preparação dos alunos pelo formulário do teste, obviamente a avaliação nem é complexa, nem multidimensional nem abrangente. Promove-se o estudo mecânico para exame. E as disciplinas que não têm exame, mas que não querem ficar para trás na importância escolar, deixam-se arrastar pela mesma onda.
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Não é obrigatório por lei, mas em todas ou quase todas as escolas, “há testes em todos os períodos letivos, há exames nacionais em todas as escolas, divulgam-se resultados, fazem-se rankings, que têm muita atenção mediática”. Há conselhos pedagógicos que, no âmbito dos critérios de avaliação, determinam quantos testes se devem fazer por período em cada disciplina, que peso percentual devem ter na avaliação das aprendizagens, quantos se podem ou não aplicar por semana. Ora, os critérios definidos por aquele órgão de gestão pedagógica deveriam consistir na convergência equânime das propostas de cada disciplina em consonância com o respetivo programa e no âmbito da sua índole e metodologia.
Deixemo-nos de tretas e burocracias. A avaliação deveria decorrer seriamente da dinâmica das aprendizagens e fazer-se para promover a melhoria das aprendizagens. E, aqui, será importante articular programa operacionalizado pela planificação com o ritmo do aluno, mas obviamente puxando por este. E, para assegurar o pendor formativo da avaliação, deveriam utilizar-se vários tipos de instrumentos, de oralidade (mas sem crivar esta de regras e formulários), escrita, manufatura, dramatização, trabalhos de grupo, trabalhos individuais…   
Só que isto, que já esteve em prática, britaria a lógica do exame nacional e do ranking. E os alunos que hoje ambicionam uma boa nota final acham que estas práticas são um desperdício. Por outro lado, os pais e a opinião pública em geral esquecem que é dever e proveito do aluno estudar todos os dias e labutam pelo estudo de preparação para o teste ou exame. E, quanto mais fichas o explicador ou o professor lhe derem, mais bem preparados se julgam – quando o que mais importa é raciocinar, confrontar-se com novas situações, responder à novidade e ao imprevisto. Tudo se baralha quando querem que as matrizes do teste ou do exame exibam o que vai sair e como vai sair ou quando facilmente se pode faltar a aulas que não são de teste.
É óbvio: no estado atual das coisas, “comparam-se prestações, notas, escolas”. E a “ênfase na mensurabilidade e na obsessão pelos resultados origina uma acentuação da competição entre professores e entre escolas” e, tantas vezes, “uma visão redutora daquilo que conta como qualidade da educação”. Porém, com isto, não se pretende a desvalorização dos testes ou exames. Pretende, antes, olhar-se para eles “como um indicador que pode e deve ser complementado por outros elementos e fatores que constituem a essência do ato educativo”.
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Este caldo de cultura leva para a escola “a adoção de práticas curriculares e avaliativas por parte dos professores que tendem a reproduzir a avaliação externa” marcada pela uniformização. A ‘cultura da ficha’ e do ‘ensinar/aprender para o teste’, a introdução de materiais padronizados e o treino de conhecimentos são exemplos bastantes do modo como a lógica do controlo se sobrepõe à visão holística e flexível de currículo e de avaliação.
Os congressistas sustentam que avaliação e sucesso andam a par e que a avaliação regula e monitoriza desempenhos de alunos e escolas. E, depois de verificarem que, “há 10 anos, por exemplo, o Japão introduziu o teste nacional” e que “o Brasil tem uma bateria de provas de avaliação ao nível do governo federal, estadual e municipal”, reconhecem que a medição do sucesso dos sistemas educativos com base nos testes em larga escala, resultados e rankings, “tem levado, em muitos casos, à adoção de estratégias de sobrevivência e a alterações no trabalho das escolas e dos professores, entre os quais está a redução de conteúdos, o estreitamento de práticas curriculares, a cristalização do currículo e a naturalização de práticas uniformizadas e rotineiras”. 
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Para melhorar os indicadores de qualidade dos sistemas educativos e elevar os resultados dos alunos em testes internacionais, os governos introduziram mudanças na avaliação das aprendizagens que se pautam por diferentes modelos e que permitem questionar distintos modos de almejar o sucesso escolar. Porém, questiona-se se esse é sucesso artificial ou real e em que medida o sucesso se traduz na melhoria da qualidade do ensino e das aprendizagens na escola.
É certo que a avaliação assumiu lugar de destaque nas políticas educativas e curriculares e tem impacto nas práticas de ensino-aprendizagem. Mas há perguntas em torno do tema:
Que papel têm os testes e exames nacionais na avaliação e aprendizagem? Que conceções de avaliação e de aprendizagem subjazem às políticas de avaliação das aprendizagens? Que dizem os quadros normativos da avaliação? De que modo os sistemas de avaliação informam os sistemas educativos, sobretudo no atinente ao desenvolvimento do currículo e à melhoria das aprendizagens?”.
No rescaldo do congresso internacional, os investigadores sustentam:
A sinalização das transformações atuais da avaliação das aprendizagens permite também a recolha de informação sobre um dos pontos mais críticos das políticas educativas, das mudanças nas escolas e das profundas tensões que professores e alunos vivem diariamente nas salas de aula. É fundamental conhecer as políticas de avaliação das aprendizagens dos alunos e perceber as tendências e os desafios do panorama internacional e também do nosso país.”. 
Todavia a questão de fundo é: Dá-se mais importância à avaliação da aprendizagem do que à avaliação para aprendizagem e à avaliação como aprendizagem?
Entende-se como paradigmático o caso da Finlândia. A este respeito, uma especialista deste país partilhou experiências no encontro. O seu sistema de avaliação “é orientado por uma lógica formativa”, sendo que “a avaliação para a aprendizagem surge alinhada com um modelo de currículo mais flexível, com métodos de avaliação diversificados e versáteis, associada a uma autonomia curricular e pedagógica dos professores”. Diz ela:
Os princípios e as práticas de avaliação no Ensino Básico no contexto finlandês assentam, assim, na promoção da aprendizagem dos alunos e no seu desenvolvimento contínuo assim como na busca da equidade educativa”. 
De resto, à exceção da Finlândia, o que “surge claramente no panorama internacional” é “a centralidade dos resultados escolares dos alunos com base em testes e exames nacionais”. É a evidência da “lógica da mensurabilidade” e da “dimensão normativa da avaliação” que está bem presente, por exemplo, no contexto brasileiro, com toda a panóplia de provas, mas também no contexto japonês, luxemburguês, suíço e belga.
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Regista-se, em consequência, a forte tensão entre a avaliação interna e a avaliação externa. Dum lado, o argumento de criar instrumentos de avaliação em larga escala que permitam a comparação e a competição – a Croácia é um caso exemplar nesse aspeto; do outro, a necessidade de uma avaliação interna centrada no aluno, reguladora e formativa. A este propósito, os investigadores salientam a mimetização e a tensão:
Das avaliações externas, como sucede com o PISA, tem resultado um efeito de mimetização que se traduz no incremento e até na obsessão da avaliação externa nas escolas. O que tem acontecido com este processo de ‘globalização’ da avaliação das aprendizagens é uma profunda reconfiguração das lógicas e práticas de avaliação interna. […] As avaliações externas, tal como estão implementadas, tendem a agudizar as próprias tensões relacionadas com a autonomia das escolas, especialmente no domínio do currículo.”.
E os congressistas não esquecem o panorama português, quando asseguram:
Em Portugal, a avaliação interna é consensual em vários aspetos, nomeadamente na lógica da aprendizagem dos alunos como objeto de avaliação, na conceção alargada relativamente aos intervenientes no processo, na avaliação global feita no final de cada período, no caráter excecional da retenção, e ainda nas três modalidades, ou seja, diagnóstica, formativa e sumativa. Na avaliação externa, tem havido várias mudanças ao longo do tempo: provas globais, provas de aferição, exames nacionais realizados nos anos terminais de ciclo. As mudanças têm exigido adaptações de alunos, escolas, professores. Os defensores da avaliação externa realçam a importância de dar atenção aos conhecimentos adquiridos pelos alunos em determinadas disciplinas consideradas nucleares, e que as provas externas podem assumir um caráter formativo.”.
Ora, do meu ponto de vista, é cada vez menos verdade o que os ilustres dizem sobre a saúde da avaliação interna. Ela está minada pela lógica da valorização do teste. É o referente obrigatório do encarregado de educação e de muitos professores que precisam de sobreviver. Aliás, estão em contradição com o que mais acima disseram da influência da avaliação externa na interna.
E como podem as provas externas assumir caráter formativo fora da lógica da uniformização, para a qual trabalham as escolas, as editoras e os centros de estudos, que, em vez da explicação, fazemos os trabalhos do aluno que os dá como seus sem, tantas vezes, saber o que lhe fizeram.
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O congresso discutiu ainda outro ponto relevante: as mudanças na área da avaliação das aprendizagens não têm sido acompanhadas de uma reconfiguração do trabalho docente, da formação inicial e do desenvolvimento profissional”. Por conseguinte, “as práticas de avaliação são ainda marcadas, a nível internacional, por um modelo de organização da escola assente no trabalho individual, no isolamento disciplinar e no currículo fragmentado”. Por isso, é preciso introduzir várias mudanças nas escolas para a criação de outras dinâmicas de trabalho.
É certo que a formação inicial e contínua é um pilar relevante para a transformação da avaliação das aprendizagens. Porém, em países como o português, o corpo docente é relativamente envelhecido (É verdade!), com formação inicial em matéria de avaliação incipiente e socialização profissional “muito marcada por lógicas de trabalho individualista” (injustas estas acusações).
Assim, os congressistas entendem que, na formação de professores, há aspetos a ter em conta como a criação de espaços de ressocialização do trabalho de docente, enfatizando a necessidade de experimentar formas alternativas de avaliação, por um lado, e criando condições para um suporte colaborativo da avaliação das aprendizagens dos alunos, por outro. E dizem:
Neste âmbito, será seguramente fundamental um trabalho coletivo no sentido de uma consolidação científica do processo de avaliação, designadamente no que se refere à construção, aplicação e uso dos instrumentos de avaliação”.
Mais foi dito:
Em termos de investigação no nosso país, ainda há poucos estudos no domínio da avaliação das aprendizagens focados no que se faz na sala de aula. Verifica-se que as práticas oscilam entre a avaliação sumativa e a avaliação formativa, ou seja, avaliação com sentido de medida e classificação e a avaliação com sentido de negociação, monitorização e construção. E, além disso, existe um turbilhão legislativo em relação à avaliação externa que tem gerado ‘entropia’ nas dinâmicas escolares.”.
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O Congresso o diz, nem sempre com acerto. Será que ME e escolas o assumirão como convém?

2017.12.30 – Louro de Carvalho

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