sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

O sentido teofânico e antropofânico da Solenidade da Imaculada Conceição

A Solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, colocada na liturgia quando está em marcha o Advento, como tempo forte de preparação para o Natal do Senhor, em que nós somos chamados a reorientar a nossa vida pelo desígnio de Deus, contra os nossos projetos e preocupações individualistas, mesquinhas e débeis – às vezes, até pecaminosas –, é uma impressionante manifestação de Deus (teofania) no seu amor e na sua ternura pelas suas criaturas e um apelo à aceitação do dom da graça divina. Mas também constitui a revelação de que é o homem, para onde caminha e com que vai (antropofania).
O espelho é Maria de Nazaré, a que se tonou a primeira na espera do Messias, porque foi escolhida para ser a morada e o alimento do Filho de Deus, a mãe que gera com esperança, que amamenta como o olhar enlevado e o gesto carinhoso e complacente e a educadora na infância, adolescência e juventude do seu Filho Jesus, o Filho de Deus.
A virtude dela não está em ter sido escolhida, porque a escolha é um dom gratuito de Deus, mas na aceitação livre e generosa do dom. Deus dispõe, a criatura aceita e Deus resolve o problema encontrando o modo como o seu desígnio será realizado. Basta que a criatura aceite dar a sua cooperação permanente com a graça de Deus. E Maria acreditou, confiante em que tudo o que lhe foi dito da parte de Deus seria cumprido através da simplicidade e pobreza das suas criaturas: operou maravilhas na sua humilde serva e a sua misericórdia se estende de geração em geração (cf Lc 1,48.50).
A teofania de Deus é marcada de formas bem expressas e eloquentes na liturgia da Imaculada Conceição. Logo a 1.ª Leitura da Missa (Gn 3,9-15-20), em resposta ao pecado e à autossuficiência do ser humano, que se diz enganado, o Senhor garante o tempo da inimizade entre o espírito do mal e a descendência da mulher, sendo que a descendência da mulher e a própria mulher esmagarão a cabeça do tentador, para que o bem, querido por Deus, se evidencie como vencedor.
Já por este motivo, o Povo de Deus irrompe num canto novo ao Senhor pelas maravilhas que operou e pelas quais, na sua bondade e fidelidade, deu a conhecer a salvação e a sua justiça a todo os povos, que, por isso, são convidados a exultar de alegria e a cantar (cf Sl 98, 1.2-3ab.3cd-4).
Depois, vem o Evangelho de Lucas (Lc 1,26-38), em que por amor e ternura, Deus contempla a criatura que elegeu desde toda a eternidade para digna morada do Filho e para que o desse ao mundo. Para tanto, cumulou-a da sua graça e fê-la dócil à Palavra vinda dos Céus, disponível sem reservas para vontade de Deus. Ora, contemplando nela e por ela as maravilhas do amor e da ternura de Deus, que desejou fazer-Se um de nós, é salutar que aceitemos esta sublime teofania e O adoremos e glorifiquemos em permanente ação de graças – sabendo que Maria é a concretização daquilo que Deus tinha em arquétipo e se torna modelo da nossa caminhada. A seu exemplo, temos de aceitar o dom de Deus e procurar ser dignos da sua graça; e temos de acolher como sua morada o Deus das misericórdias, a revolução da ternura do seu Cristo e deixar-nos mover pelo Espírito Santo. E, em certa medida à maneira de Maria, temos de oferecer Jesus ao mundo e o Seu Evangelho, fazendo sempre tudo o que e como Ele disser. E, em contraponto, devemos aceitar testemunhar junto de Deus os dramas e as alegrias da humanidade, dando voz ao grito calado dos pobres.
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Na verdade, se a Solenidade da Imaculada Conceição é a teofania em tempo de Advento com o Presépio no horizonte, ela constitui, por outro lado e ao mesmo tempo, um apelo à nossa reorientação de vida. Como dizia o padre Manuel Caridade Pires, na sua homilia da Solenidade, é preciso aproveitar este tempo forte de reflexão para deixarmos as nossas preocupações mesquinhas, individualistas, por vezes de pecado, prazer, arrogância e sobreposição aos demais, para sintonizarmos com as preocupações Deus, do Reino e assumirmos conscientemente a nossa missão neste mundo. Para tanto, deveremos saber quem somos, aonde queremos chegar e com quem pretendemos fazer esta caminhada. É a antropofania na sua essência.
Ora, nós somos imagem e semelhança de Deus; não somos uma coisa qualquer. Somos pessoas a quem está inerente a dignidade, que ninguém pode tirar, a liberdade que nos leva a discernir e a optar, e a responsabilidade por construirmos, em sintonia com Deus, a nossa felicidade, intervindo com a palavra sábia, o silêncio ouvinte e o testemunho eloquente. Nós somos réplica de Deus e devemos chegar aonde ele quer que cheguemos. Assim, o nosso objetivo tem de ser a santificação do nome de Deus e do nosso nome, o ingresso no seu reino e o cumprimento cabal da sua vontade. E temos de escolher com quem queremos fazer esta caminhada, nunca sozinhos, mas temos de optar pela maior incidência na família ou na comunidade, sempre num contexto de Igreja. E aí devemos saber rogar o pão de cada dia e partilhá-lo com os demais, sobretudo com os mais pobres, pedir e conceder o perdão sempre, rogar ao Senhor que nos afaste a todos da tentação e, sobretudo, que nos livre de todo o mal. Não foi assim que Jesus ensinou?
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Nesta perspetiva teofânica de Deus e da consciência e assunção da nossa missão, a liturgia da Imaculada Conceição coloca em destaque o Plano divino da Salvação. O cântico paulino da carta aos efésios (Ef 1,3-10) é tomado como segunda leitura da Missa e como cântico da Hora Litúrgica de Vésperas I e de Vésperas II:
Bendito seja Deus, *
Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo,
que do alto do Céu nos abençoou, *
com todas as bênçãos espirituais em Cristo.

Ele nos escolheu, antes da criação do mundo, *
para sermos santos e irrepreensíveis, †
em caridade, na sua presença.
Ele nos predestinou, de sua livre vontade, *
para sermos seus filhos adotivos, por Jesus Cristo,

para que fosse enaltecida a glória da sua graça, *
com a qual nos favoreceu em seu amado Filho;
n’Ele temos a redenção, pelo seu Sangue, *
a remissão dos nossos pecados;

segundo a riqueza da sua graça, *
que Ele nos concedeu em abundância,
com plena sabedoria e inteligência, *
deu-nos a conhecer o mistério da sua vontade:

segundo o beneplácito que n’Ele de antemão estabelecera, *
para se realizar na plenitude dos tempos:
instaurar todas as coisas em Cristo, *
tudo o que há nos céus e na terra.
Na verdade, Ele não nos deixou entregues à nossa sorte, mas abençoou-nos com todas as bênçãos espirituais em Cristo (Cristo é inseparável do Pai e, por misericórdia, inseparável de nós).
Depois, sabemos que não somos produto do acaso, mas escolhidos por Deus “antes da criação do mundo”, não para nos comportarmos de qualquer maneira, mas para sermos sempre imagem e semelhança de Deus – “para sermos santos e irrepreensíveis, em caridade, na sua presença”. Fomos predestinados para filhos adotivos e herdeiros em e com Cristo. Ele concedeu-nos em abundância a riqueza da sua graça e, nela, nos deu a conhecer o mistério e o projeto da sua vontade. E a finalidade última é “instaurar todas as coisas em Cristo”.
Este é o cântico de bênção, adoração e ação de graças, mas é também e sobretudo um guia para a nossa vida tal como as bem-aventuranças ou o duplo mandamento do amor.
Este desígnio realizou-se em Maria, a Mãe; e há-se realizar-se também nos filhos. Somos obra de Deus, para Ele caminhamos e com Ele e com os demais irmãos e irmãs (que somos uns dos outros) havemos de alcançar o Fim.
E a teofania de Deus realiza-se na Igreja – corpo de Cristo, esposa de Cristo e novo povo de Deus – que, segundo o Prefácio da Missa da imaculada Conceição tem início em Maria:
Vós a preservastes de toda a mancha de pecado original, para que, enriquecida com a plenitude da vossa graça, fosse a digna Mãe do vosso Filho. Nela, destes início à santa Igreja, esposa de Cristo, sem mancha e sem ruga, resplandecente de beleza e santidade. Dela, Virgem puríssima, devia nascer o vosso Filho, Cordeiro inocente que tira o pecado do mundo. Vós a destinastes, acima de todas as criaturas, a fim de ser para o vosso Povo, advogada da graça e modelo de santidade.”.
Se aqui se podem contemplar as prerrogativas do mistério de Deus espelhado em Maria, não é menos verdade que Ela é colocada acima de todos e de todas para ser advogada da graça e modelo de santidade. E, com Ela e como Ela, nós devemos ser santos e facilitadores da santidade para os outros e defensores em vez de acusadores, para que, em Igreja e pela Igreja, todas as coisas se instaurem em Cristo, assim se realizando os frutos da nossa missão no mundo.
Por tudo isto, em dia da Imaculada Conceição, devemos rezar, por intercessão da Cheia de Graça, a Deus para que oriente para a glória de Cristo o nosso coração de filhos, conceda remédio aos enfermos, consolação aos tristes, perdão aos pecadores e faça com que todos os que vivem em perigo sintam o amor da Mãe, todas as mães fomentem nos seus lares o amor e a santidade e todos os defuntos alcancem a alegria do Reino (cf Preces de Vésperas II).  

2017.12.08 – Louro de Carvalho 

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