A revista Sábado
de 30 de novembro abordou o tema dos padres com filhos na atualidade num
artigo/reportagem de difícil consecução, a que dei algum contributo. Porém,
como este versava um caso mais antigo, aqui o deixo com o enquadramento da
época, não sem refletir sobre situações da atualidade postas na ribalta por um
caso do Funchal e outro de Vila Real.
***
Já não o conheci pessoalmente, dados os meus 66 anos e
bastantes meses. Porém, na minha adolescência falava-se muito do Padre Manco,
cujo nome próprio era João e que efetivamente se deslocava de muletas. Pelos
vistos, a batina do pároco até nem era fechada como a dos outros, mas era mais
parecida com uma opa preta. Paramentava-se por si próprio para os atos
litúrgicos embora, como os outros padres, com a ajuda do sacristão.
Entre 1935 e 1942, o Bispo da diocese fez a visita pastoral
à paróquia de Pendilhe, no concelho de Vila Nova de Paiva, evento que o Padre
Manco nunca tinha presenciado. E o Bispo terá feito questão de lhe frisar o
facto diante de quem estava. Como a paróquia não tinha estradas e as duas
estradas nacionais mais próximas ficavam, cada uma, a cerca de 12 quilómetros,
o Bispo Dom Agostinho de Jesus e Sousa e a sua comitiva, dessa vez, entraram a
cavalo, como tinha de ser, vindos dos lados de Almofala, tendo deixado o
transporte automóvel ali por São João de Tarouca.
Não o tendo conhecido pessoalmente – sei que faleceu antes de
1942 e eu nasci em 1951 – o que sei dele ouvi-o às pessoas da minha terra. Dos
9 filhos que a mulher com quem vivia lhe deu, sempre a mesma e na mesma
paróquia, conheci dois e conversei muitas vezes com a senhora Etelvina, mulher
de fé e trabalho. Conheci também um neto seu, que foi o último regedor da
freguesia, já depois da revolução abrilina.
Também a campa rasa do Padre João, com uma tampa trabalhada
em granito da terra, está localizada no corredor central da parte mais antiga
do atual cemitério, que à morte dele e à da mulher com quem vivia maritalmente
(cuja campa
rasa, mas também com tampa trabalhada em granito da terra, está num dos
canteiros laterais), não existia ainda. Pelo que os corpos dos dois cônjuges
práticos foram trasladados, com outros, pela paróquia e pela família de forma
pacífica e respeitosa desde o cemitério localizado à beira do adro da igreja
paroquial, cemitério que hoje não se reconhece no lugar (ainda me lembro de no
seu lugar estar plantado um jardim, hoje larga rampa de acesso ao templo), para o atual no
lugar da Forca.
O sacerdote vivia da vida paroquial que administrava:
emolumentos referentes aos atos de culto, côngrua, folar e um pequeno quintal
hortícola e outros terrenos de regadio e de sequeiro; a mulher, na mesma casa,
vivia do comércio de retalho – mercearia/taberna. Além disso, a D. Custodinha (assim se chamava) fazia as malas do
correio – com base nas encomendas entregues em mão e das cartas ou bilhetes
postais depositados na caixa do correio exterior ao edifício ou entregues em
mão – e despachava-as, de manhã, por estafetas (a pé e/ou de animal de carga) para a sede do
concelho, Vila Nova de Paiva, que distava desta freguesia uns 15 quilómetros, e
para Castro Daire, a vila sede de concelho limítrofe, mas que ficava mais
próxima desta freguesia, dela distando uns 13 quilómetros (medidas distanciais de
então). À tardinha
desselava as malas, lia em voz alta o correio vindo nas duas malas e guardava o
das pessoas que não estavam presentes. Não havia nem telégrafo nem telefone. O
telefone público foi instalado em 29 de abril de 1956.
As coisas foram evoluindo e começou a haver estrada em
terra batida de Vila Cova à Coelheira até perto de Vila Nova de Paiva, no
entroncamento com a que vinha de Touro (atual n.º 329 que vem de São João de Tarouca
para Sátão)
para a sede do concelho e que passou a ser de piso em mac-dam. E havia
camioneta de passageiros para e de Vila Nova de Paiva às terças-feiras e
sábados. Mais tarde, passou a haver estrada de terra batida de Pendilhe a Vila
Cova à Coelheira e, mais tarde ainda, estrada do mesmo tipo entre Pendilhe e
castro Daire passando por São Joaninho.
Em 1966, veio a corrente elétrica para a freguesia, que já
tinha vindo para Vila Cova à Coelheira há bastantes mais anos. E, depois da
revolução abrilina, a estrada nacional n.º 225, bem betuminada, liga
perfeitamente Castro Daire e Vila Nova de Paiva passando por São Joaninho,
Pendilhe e Vila Cova à Coelheira.
***
Presumo que foi quase logo no princípio da paroquialidade
daquela freguesia que o Padre Manco inaugurou a sua condição de paternidade. E,
como foram nove filhos, a situação era de continuidade e conhecida de todos.
Tanto assim que muitos casais lhe seguiam o exemplo: juntavam-se sem se
casarem. Obviamente, segundo o que diziam meus pais e outras pessoas, ele dizia
que era mal, mas não passava disso. Foi, após a sua morte, que um padre de
freguesia vizinha, o Padre Rafael indo ali temporariamente e por empréstimo,
empreendeu a campanha do casamento católico dos ditos amancebados ou amigados.
Hoje diríamos “unidos de facto”.
Como disse, a paróquia encontrava-se isolada de vias de
comunicação. O fontismo não chegara ali. Ali chegavam os correios a pé ou de
besta e os almocreves. Sou do tempo em que se construíram estradas em terra
batida para acesso às duas freguesias vizinhas, numa delas apanhava-se, como
disse, um autocarro de carreira às terças-feiras e sábados. Numa das estradas
nacionais, na n.º 2, havia carreira regular de autocarro diária de Castro Daire
para Lamego e Régua e vice-versa, mas na outra, na 329, que ia do Touro para
Vila nova de Paiva nem isso. Tudo mudou com o 25 de Abril. A terra é
atravessada por uma boa estrada nacional para uma e outra das vilas, e ficando
perto, a 10 quilómetros de uma nova autoestrada. Estamos em plena Beira Alta,
no distrito de Viseu e diocese de Lamego.
Aquele tempo, muitas vezes, me fez recordar o que pedia o
arcebispo de Braga Dom (hoje, Beato) Frei Bartolomeu dos Mártires no Concílio
de Trento: quando o Concílio estava a votar a lei do celibato dos padres
obrigatório na Igreja Latina, o arcebispo clamava: ‘Parcite saltem barrosanis meis’ (Poupai ao menos os meus barrosanos)!
A relação de pai e mãe com os filhos era de convivência
familiar, alimentação e educação segundo os critérios da época, sendo que, no
caso, não se falava em estudos, mas apetência agrícola e hipoteticamente comercial.
Ademais, filhos de padre, ao tempo, não podiam ser padres e filhas de padre não
podiam ser freiras. Registe-se apenas que hipocritamente induziam os filhos a
chamar padrinho ao pai, o que não aconteceu com Aquilino Ribeiro e irmãos. Mas
os filhos, que em casa chamavam padrinho ao pai, sabiam que era pai pelos de
fora.
Segundo diziam, o pároco sempre teimou em manter as funções
sacerdotais, alegadamente para sustentar os filhos. Não estava suspenso, pois
não intentara formalmente cerimónia de matrimónio nem católico nem civil. E os
superiores hierárquicos tinham conhecimento de que ele tinha os filhos e vivia
com a mulher, mas apenas tentaram questioná-lo, mas, com a resposta supra,
faziam vista grossa. Ele, por causa da situação, tinha o seu sentido de culpa, mas não tentava
abafar o escândalo, resignava-se à inevitabilidade. Os colegas colaboravam no
serviço religioso, nomeadamente as confissões da “desobriga anual” e no canto
do Ofício de Defuntos, quando eram “rogados” para o efeito.
Os paroquianos conheciam diretamente o seu pároco, respeitavam-no
iuxta modum e pagavam-lhe os serviços
paroquiais, bem como o ajudavam com a provisão de lenhas e adubos orgânicos
para o quintal e outros terrenos. Naquele tempo não se falava de apoio
psicossocial. Socialmente, os sacerdotes, por mais próximos que estivessem,
eram sempre tratados com distância. Era também esse o conceito de respeito.
A vida mãe solteira era semelhante à do padre.
Ela não era considerada mãe solteira, casual, mas mãe de família e dona de casa.
O envolvimento com o padre terá começado um pouco pela simpatia e,
depois, a submissão: era o padre. A relação que mantinha com o padre era notória,
só se pode considerar clandestina se isso for sinónimo de contrário à lei
canónica. A vizinhança e a paróquia tinham conhecimento da situação e lidavam
normalmente com ela. Não havia propriamente a relação de colegas de trabalho de
que hoje se fala, mas de famílias independentes que se ajudavam quando
necessário.
A mulher habituou-se à situação; não podia
sentir-se traída por alegadas falsas promessas do padre, porque ao tempo
ninguém na terra pensava no casamento do padre, sobretudo o casamento católico.
Se intentasse matrimónio civil, seria excluído do sacerdócio.
Os filhos conheciam o pai como tal, mas
tratavam-no como padrinho, por obrigação, pois fora de casa ensinavam-lhes que
eles eram filhos e tinham outro padrinho. A relação dos filhos com o
pai e com a mãe era normal no contexto agrário Os filhos comportavam-se como os
outros e os paroquianos tratavam-nos como os outros. E o padre não só dava
apoio emocional e financeiro com vivia com a mulher e com os filhos. Ela continuou
mãe solteira, mas mãe de família como se fosse casada. Penso que nem chegou a
pôr a hipótese de ir viver sozinha.
***
Hoje uma situação destas dificilmente seria admissível. Um
caso fortuito de paternidade e manutenção do exercício das ordens é possível
socialmente, sobretudo se houver mudança de paróquia, que pode ser mais por
hipocrisia que recato ou remoção do escândalo. A convivência marital e
paternidade em regime de continuidade e o exercício do sacerdócio seriam caso
impensável. Toda a gente inventa soluções: que saia do sacerdócio e se case;
que trabalhe como os outros; se não quer ou não pode casar, que assuma as responsabilidades
como pai e pague alimentos à mulher; e outras sugestões, algumas delas mais
atrevidas.
Antigamente, apesar de tudo, havia mais tolerância. Hoje as
vidas estão mais escrutinadas. Mais exigência, mas mais crueldade e menos
solidariedade. Por isso é que se tenta esconder mais e alguns vivem uma vida
dupla até sem filhos. Fala-se em apoio e ajuda, mas julga-se demasiado e
marginaliza-se muito, mesmo quando se diz que são homens como os outros. O
apoio propalado é um chavão que se propõe em todas as situações tidas como
problemáticas, muitas vezes não passando de lugar comum.
Conheci casos em que, quando o padre se sentia hesitante, o
Bispo recomendava cuidado aos padres mais próximos, contrastando com colegas
que redobravam apoio e amizade. E muitos, ao abandonarem o ministério ou
pedirem dispensa das obrigações presbiterais, sentiam dificuldades em emprego e
eram ostracizados. Precisavam de espírito de luta e força anímica bem reforçados.
Não era bem assim antanho.
Digo isto pelo que tenho visto e sei, embora não tenha
pessoalmente razão de queixa, antes pelo contrário. Por mim, vou alimentando o
espírito, vivendo a fé, o tempo e a vida, à minha maneira e procurando ser
útil, consciente de que o que sou na vida o devo fundamentalmente à Igreja Católica
e suas instituições, obviamente também com o meu esforço e o de outros e
outras.
2017.12.01
– Louro de Carvalho
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