O povo hebreu pensava que a salvação estava reservada única e
exclusivamente para si, dado que Deus o escolhera como povo da conquista e da
sua predileção. Esquecia-se de que Deus o escolhera para fazer a experiência
visível de salvação, tendo-o como seu povo e o povo tendo-O como seu Deus,
único, vivo e verdadeiro, pois os demais deuses eram falsos, mortos e plurais,
ou seja, não eram deus nem deuses. Porém, tal experiência era exemplar para
todas as nações
Contra esta mentalidade cerrada e exclusivista vem a Liturgia
da Palavra deste 21.º domingo do Tempo Comum no Ano C. Deus, nosso Salvador, que
não faz aceção de pessoas, quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao
conhecimento da verdade (cf At 10,34; Rm 2,11; 1Tm 2,4-5).
Começando pela célebre passagem do profeta Isaías (Is 66,18-21), é de acentuar que o hagiógrafo considera que
todas as nações são chamadas a integrar o Povo de Deus. E, nessa ótica, intenta
compor a visão escatológica que o texto patenteia: no mundo novo que vai
chegar, são todos convocados por Deus para integrar o seu Povo. Na verdade, diz
o Senhor: “Eu virei
reunir todas as nações e todas as línguas, para
que venham contemplar a minha glória. Eu
lhes darei um sinal e de entre eles
enviarei sobreviventes às nações.”.
A predita visão escatológica compreende as seguintes etapas:
primeiro, Deus virá para iniciar o processo de reunião das nações (v. 18); a seguir, dará um sinal e enviará missionários (escolhidos de entre os povos estrangeiros) para que
anunciem a glória do Senhor, mesmo às nações mais distantes (v. 19); depois, as nações responderão ao sinal do Senhor e
dirigir-se-ão ao monte santo de Jerusalém (Jerusalém
é, na teologia judaica, o centro do mundo, o lugar onde Deus reside no meio do
Povo e onde irromperá a salvação definitiva, o texto de Lucas prévio à Ascensão
o assume), trazendo como oferenda ao Senhor os israelitas dispersos no meio das
nações (v. 20); por fim, o Senhor escolherá de entre os que chegam (dos judeus regressados da Diáspora e dos pagãos que escutaram
o convite do Senhor para integrar a comunidade da salvação) sacerdotes e
levitas para O servirem (v. 21).
O contexto político que envolvia o povo não facilitava
uma visão tolerante e acolhedora em relação às outras nações. Dizer que todos
os povos são convocados por Deus, que a todos oferece a salvação era algo de
escandaloso para os judeus; e era inaudito dizer que Jahwéh escolheria de entre
eles missionários para os enviar ao encontro das nações e inconcebível dizer
que Deus escolheria, de entre os pagãos, sacerdotes e levitas que entrassem no
espaço sagrado e reservado do Templo (onde
um pagão que entrasse era réu de morte) para o serviço do Senhor.
Assim, esta passagem bíblica proclama a universalidade da
salvação, que reclama o espírito ecuménico, o afã missionário e a escolha de
sacerdotes e levitas também de entre os missionados. É o paralelismo e a
reciprocidade na missão universal.
Depois, vem o texto da Carta aos Hebreus (Heb 12,5-7.11-13). Depois de apelar aos crentes a esforçarem-se, como
atletas, para chegarem à vitória, a exemplo de Jesus Cristo (cf Heb 12,1-4), o emissor epistolar convida os cristãos, que são todos
filhos de Deus, a aceitar as correções e repreensões de Deus, como atos
pedagógicos do Pai preocupado com a felicidade dos filhos. A questão
fundamental gravita em torno do sentido do sofrimento e das provas que os crentes
têm de suportar (sobretudo incompreensões
e perseguições). A mentalidade religiosa popular considerava o sofrimento
como castigo de Deus para o pecado do homem (cf
Jo 9,1-3); mas, segundo a Carta aos Hebreus, o sofrimento não é castigo, mas
medicina, pedagogia, que Deus utiliza para nos amadurecer e ensinar. Deus
serve-Se desses meios para nos mostrar o sem sentido de certos comportamentos;
desse modo, demonstra a sua solicitude paternal. Os sofrimentos, como sinais do
amor que Deus nos tem, são uma prova da nossa condição de “filhos de Deus”. De
facto, além de nos mostrarem o amor de Deus, as provas aperfeiçoam-nos,
transformam-nos, levam-nos a mudar a nossa vida. Por essa transformação, pouco
a pouco nos tornamos interiormente capazes da santidade de Deus, aptos para
recebê-la. Por isso, quando chegam, devem ser consideradas como parte do
projeto salvador de Deus para todos nós, portadoras de paz e de salvação. E
devem levar-nos ao agradecimento e à alegria.
A conclusão apresenta-se em forma de exortação. Citando Is
35,3, o autor da Carta aos Hebreus convida todos os crentes a confiar e a
vencer o temor que desalenta e paralisa – o que se faz levantando as nossas
mãos fatigadas e os nossos joelhos vacilantes e dirigindo os nossos passos por
caminhos direitos.
***
Por fim, o pequeno texto do Evangelho de Lucas (Lc 13,22-30) apresenta-nos
Jesus a dirigir-Se para Jerusalém ensinando nas cidades e aldeias por onde
passava. E, na perspetiva da
catequese lucana, as palavras de Jesus, a partir da questão “Senhor, são poucos os que se salvam?”,
posta na boca de alguém não identificado, constituem uma reflexão sobre a
salvação (vd Am 5,3; Is 10,19-22). A pergunta
pode ser um recurso estilístico de Lucas, que reconstruiu a seguinte secção
sobretudo com base na fonte Q.
A salvação era, na realidade, uma questão muito debatida nos
ambientes rabínicos. Para os fariseus da época de Jesus, a “salvação” era uma
realidade reservada ao Povo eleito e só a ele; e, nos círculos apocalípticos, a
visão era mais pessimista, sustentando que muito poucos estavam destinados à
felicidade eterna. Porém, como Jesus falava de Deus como o Pai cheio de
misericórdia, cuja bondade acolhia a todos, especialmente os pobres e os
débeis, era legítimo tentar saber o que pensava Jesus sobre a matéria.
Jesus não responde diretamente à pergunta, pois, mais do que
falar em números, como todos querem (e no
nosso tempo são os números em absoluto ou em percentagens e em estatísticas que
mandam), a propósito da “salvação”, é importante definir as condições de
pertença ao “Reino” e estimular nos discípulos a decisão pelo “Reino”. Ora, na
ótica de Jesus, entrar no “Reino” implica, em primeiro lugar, o esforço por
“entrar pela porta estreita” (v. 24) – imagem sugestiva
para significar a renúncia a uma série de fardos que “engordam” o homem e que o
impedem de viver na lógica do “Reino”. Estão neste caso o egoísmo, o orgulho, a
riqueza, a ambição, o desejo de poder e de domínio, enfim, tudo aquilo que
impede o homem de embarcar numa lógica de serviço, de entrega, de amor, de
partilha, de dom da vida, impede a adesão ao “Reino”.
Para significar aquele esforço, Lucas utiliza o verbo agônízomai, que implica luta, dispêndio de
forças (cf Jo 18,36; 1Cor 9,25; 1Tm 4,10). Deus quer a
salvação de todos e tomou a iniciativa de a conceder, mas não dispensa o que
pode cada um fazer em prol dessa salvação, pois ninguém a tem por direito de nascimento
ou por qualquer outro critério que não o da fé.
Para explicitar melhor o ensinamento acerca da entrada do
“Reino”, Lucas põe na boca de Jesus uma parábola em que o “Reino” é descrito na
linha da tradição judaica, como o banquete em que os eleitos estarão lado a
lado com os patriarcas e os profetas (vv.
25-29).
Quem se sentará à mesa do “Reino”? Todos aqueles
que acolherem o convite de Jesus à salvação, aderirem ao seu projeto e aceitarem
viver, no seguimento de Jesus, uma vida de doação, de amor e de serviço. Nenhum
critério de raça, geografia, laços étnicos ou cultura barrará a alguém a
entrada no banquete do “Reino”: a única coisa verdadeiramente decisiva é a
adesão a Jesus. Os que não acolherem o convite ficarão, logicamente, fora do
banquete do “Reino”, ainda que se considerem muito santos e tenham pertencido,
institucionalmente, ao Povo eleito. Jesus está a falar para os judeus e a
sugerir que não é pelo facto de pertencerem a Israel que têm a entrada no
“Reino assegurada”. E a parábola aplica-se igualmente aos “discípulos” que, na
vida real, não queiram despir-se do orgulho, do egoísmo, da ambição, para
percorrerem, com Jesus, o caminho do amor e do dom da vida. Por isso, garante:
“Hão de vir do Oriente e do Ocidente, do
Norte e do Sul,
e sentar-se-ão à mesa do reino de Deus. Há últimos que serão dos primeiros e primeiros que serão dos últimos.”.
No atinente à
universalidade da salvação é pertinente citar o apóstolo Paulo:
“Recomendo,
pois, antes de tudo, que se façam preces, orações, súplicas e ações de graças
por todos os homens, pelos reis e por todos os que estão constituídos em
autoridade, a fim de que levemos uma vida serena e tranquila, com toda a
piedade e dignidade. Isto é bom e agradável diante de Deus, nosso
Salvador, que quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao
conhecimento da verdade. (1Tm 2,1-4). Deus não faz aceção
de pessoas. (Rm 2,11).
E Pedro
declara:
“Reconheço, na verdade, que Deus não faz aceção de pessoas, mas que, em
qualquer povo, quem o teme e põe em prática a justiça, lhe é agradável” (At 10,34-35).
***
Na manhã
deste domingo, dia 25, antes da Oração Mariana do Angelus, o Papa comentou o Evangelho do dia e convidou os cristãos
a terem uma vida coerente: aproximar-se de Jesus e dos Sacramentos, como também
ir à igreja. Isto, porque para entrar no Paraíso é preciso passar por uma
‘porta estreita’, a da fé, aberta a todos, mas que exige uma dedicação pelo bem
e pelo próximo, contra o mal e a injustiça.
Os milhares
de peregrinos que acompanharam a oração com Francisco na Praça São Pedro ou ao
redor do mundo viram a preocupação do Pontífice em relação aos incêndios na
Amazónia, mas também meditaram sobre o Evangelho (cf Lc13,22-30).
O trecho de
Lucas, como foi dito acima, “apresenta Jesus que passa ensinando pelas cidades
e povoados, até Jerusalém, onde sabe que vai morrer na cruz para a salvação de
todos os homens”. Nesse contexto, alguém perguntou a Ele se era verdade que
poucos se salvariam, uma questão muito debatida naquele período, devido às
diversas maneiras de interpretação das Escrituras. E Jesus respondeu,
convidando “a usar bem o tempo presente” e fazendo “todo o esforço possível
para entrar pela porta estreita”. E o Papa Francisco inferiu:
“Com essas palavras, Jesus mostra que não é
questão de número, não existe o ‘número fechado’ no Paraíso! Mas trata-se de
atravessar, desde já, a passagem certa, e essa passagem certa é para todos, mas
é estreita.”.
E o Santo Padre alarga-se no comentário:
“Esse é o problema. Jesus não quer nos
iludir, dizendo: ‘Sim, ficai tranquilos, é fácil, existe uma bonita estrada e,
lá no final, um grande portão...’. Não diz isso: fala-nos da porta estreita. Diz-nos
as coisas como são: a passagem é estreita. Em que sentido? No sentido de que,
para se salvar, é preciso amar a Deus e ao próximo, e isso não é confortável! É
uma ‘porta estreita’ porque é exigente, o amor é exigente sempre, requer
empenho, ou melhor, ‘esforço’, isto é, uma vontade decidida e perseverante de
viver segundo o Evangelho. São Paulo chama isso de ‘o bom combate da fé’ (1Tm
6,12). É preciso o esforço de todos os dias, de cada dia para mar Deus e o
próximo."
Jesus usa uma
parábola para se explicar melhor e para insistir em fazer o bem nesta vida,
independentemente do título e do cargo que se exerce:
“O Senhor vai-nos reconhecer não pelos
nossos títulos. ‘Mas olha, Senhor, que eu participava daquela associação, que
eu era amigo de tal monsenhor, de tal cardeal, de tal padre...’. Não, os
títulos não contam, não contam. O Senhor vai-nos reconhecer somente por uma
vida humilde, uma vida boa, uma vida de fé que se traduz nas obras.”.
O Papa,
então, continua motivando-nos e conduzindo-nos para esse percurso diário.
“Para nós, cristãos, isso significa que somos
chamados a instaurar uma verdadeira comunhão com Jesus, rezando, indo à igreja,
aproximando-nos dos Sacramentos e nutrindo-nos com a sua Palavra. Isso mantém-nos
na fé, nutre a nossa esperança, reaviva a caridade. E, assim, com a graça de
Deus, podemos e devemos dedicar a nossa vida pelo bem dos irmãos, lutar contra
qualquer forma de mal e de injustiça.”.
Maria, Porta
do céu
E, a
finalizar, uma referência a Maria, Porta do Céu. O Papa diz que a primeira
pessoa a ajudar- nos nessa dedicação pelo bem é a Nossa Senhora:
“Ela atravessou a porta estreita que é
Jesus, acolheu-O com todo o coração e seguiu-O todo todos os dias da sua vida,
inclusive quando não entendia, inclusive quando uma espada perfurava a sua
alma. Por isso, invocamo-La como ‘Porta do céu’: Maria, Porta do céu; uma porta
que reflete exatamente a forma de Jesus: a porta do coração de Deus, coração exigente,
mas aberto a todos nós.”.
***
Também o Cardeal
Dom António Marto, Bispo da diocese de Leiria-Fátima, que presidiu à eucaristia
dominical no Recinto de Oração do Santuário de Fátima, disse que “Deus
não quer cristãos de etiqueta ou de fachada, para quem a fé é apenas um adorno”.
O purpurado
convidou os peregrinos presentes a fazerem uma reflexão sobre a liturgia deste
domingo e começou por lembrar a situação retratada no Evangelho, em que alguém
no meio do povo coloca a questão: “São
muitos ou poucos os que se salvam?”. E explicou:
“Jesus desloca a questão de outra forma para
não nos deixar distrair do essencial; e o mais importante não é saber se são
muitos ou se são poucos os que se salvam, o mais importante é saber o caminho
que conduz à salvação e à verdadeira vida, e como nós hoje e aqui recebemos
este fruto da salvação”.
Jesus usa
uma imagem “simples” para responder à questão: “procurai por entrar pela porta estreita que leva à vida” e prelado
leiriense-fatimita questionou “Que porta
é esta? Onde se encontra?”. E continuou aduzindo que a imagem da porta
“evoca imediatamente a porta da nossa casa, do nosso lar, da nossa família,
porque quando atravessamos essa porta entramos num ambiente familiar onde
sentimos o calor do amor, da ternura e do acolhimento”. E disse:
“É em casa, em família que sentimos
segurança e proteção, e Jesus é a porta que nos introduz na família de Deus,
onde sentimos o calor do amor e misericórdia de Deus muito próximo de nós”.
O Bispo de
Leiria-Fátima disse que essa porta de Jesus “está sempre aberta a todos sem distinção e sem exclusão, e o Senhor
espera-nos sempre à Sua porta, como um pai ou uma mãe que abre a porta da casa
aos seus filhos”.
Na liturgia,
a porta apresentada é estreita, porque requer que “deixemos de fora aquilo que nos impede de entrar por ela, os nossos
egoísmos, comodismos, orgulhos, atitudes soberbas, ressentimentos, ódios,
rancores que se acumularam no nosso coração, a nossa indiferença para com os
outros, as injustiças, as omissões de atenção, amor e solidariedade”. “É
uma porta de misericórdia, uma porta da conversão, mesmo daquelas falsas
seguranças onde por vezes apoiamos a nossa vida, que pensamos que asseguram a
nossa salvação” – reiterou.
Dom António
Marto alertou os 10 grupos de peregrinos, que se anunciaram no Santuário, para
o facto de que “Deus não quer cristãos de etiqueta ou de fachada, para quem a
fé é apenas um adorno, como quem traz algo na lapela”; Deus apela à “vida, à
relação fraterna, em casa, nas obras de misericórdia, na promoção da justiça e
bem comum”.
***
Enfim, tal como
o profeta, os apóstolos, os evangelistas, também o Papa e o Bispo de Leiria-Fátima
falam da universalidade da Salvação e do caminho de autenticidade que pela
vontade de Deus e pelo esforço dos crentes leva à vida plena de cada homem e
mulher e de todos, pois todos somos filhos do mesmo Deus, que nos quer fazer
imergir na sua comunidade de amor.
2019.08.25 –
Louro de Carvalho
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