domingo, 11 de agosto de 2019

A sabedoria é o reflexo da vontade e do desígnio de Deus



Na homilia da Missa do 19.º domingo do Tempo Comum no Ano C, o reitor do Santuário de Fátima a partir do Evangelho dominical (Lc 12,32-48), exortou a assembleia de peregrinos presentes no Recinto de Oração a viver a relação com Deus de um modo “vigilante e desinstalado”, a não “ceder ao comodismo” e a perseverar na fé. E alertou para o perigo de “secundarizar Deus” através do comodismo e da rotina.
O padre Carlos Cabecinhas falava aos participantes na celebração, na sua maioria,  peregrinos oriundos do território nacional e do estrangeiro, designadamente de: Espanha, França, Itália, Reino Unido, Alemanha, Bélgica, Polónia, Malta, Suécia, Brasil, Costa do Marfim, Síria, Vietname e Indonésia – com para um grupo da iniciativa do Santuário “Vem para o meio”, que oferece férias para pais de filhos com deficiência.
Baseado na “riqueza das imagens sugestivas” presentes na perícopa evangélica em referência, o presidente da celebração começou por esclarecer o significado da vigilância:
Estarmos preparados para acolher Deus não significa não deixarmos que a nossa fé se acomode numa atitude passiva de quem se limita a esperar que Ele Se revele; implica, antes, uma atitude ativa de conversão de coração e compromisso efetivo com a vontade de Deus, que nos permite reconhecer a Sua presença na nossa vida.”.
E alertou para o perigo dos “dos valores secundários” que nos impedem de assumir esta atitude de perseverança na fé e permanência na comunhão com Deus, explicitando:  
Com muita facilidade nos prendemos àquilo que é passageiro, por causa da rotina que se instala, pela sedução dos caminhos fáceis e das preocupações que nos desviam do essencial e nos levam, muitas vezes, a fazer com que Deus e os outros fiquem esquecidos e secundarizados”.
No final, com referência à fé, apresentada na carta aos Hebreus (Heb 11,1-2.8-19) como “garantia dos bens que se esperam e certeza de realidades que não se veem”, o presidente da celebração reforçou a importância da atenção e vigilância que a fé traz à relação com Deus, lembrando o convite que a Mensagem de Fátima faz à “descoberta de Deus como o tesouro que dá sentido pleno à vida”. E concluiu, reforçando o lado positivo da vigilância acima referido:
Estarmos vigilantes e atentos significa olhar com atenção a nossa vida, à luz de Deus e da sua Palavra, para percebermos o que pode ser obstáculo a acolher este Senhor que vem e a reconhecê-Lo presente em nós”.
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Entretanto, é de destacar a perícopa do Livro da Sabedoria (Sb 18,6-9) tomada para 1.ª leitura.
O texto proposto para proclamação e meditação pertence à 3.ª parte do livro (10,1-19,22). Aí, recorrendo a factos concretos e a exemplos de figuras históricas, o hagiógrafo exalta as maravilhas operadas pela “sabedoria” na história do Povo de Deus. Nos últimos capítulos desta 3.ª parte (16-19), passando do geral ao particular, o autor sagrado mostra como a natureza divinizada pelos ímpios se volta contra eles, enquanto essa natureza se torna salvação para o Povo de Deus. O cenário desta reflexão é a comparação entre o que um dia (no Êxodo) sucedeu aos egípcios e o que, em contraste, aconteceu ao Povo de Deus: as pragas de animais castigaram os egípcios, mas as codornizes alimentaram os israelitas (cf 16,1-4); moscas e gafanhotos atormentaram os egípcios, mas a serpente de bronze erguida por Moisés no deserto salvou o Povo de perecer (cf 16,5-15); chuvas e granizo destruíram as culturas egípcias, mas o maná alimentou o Povo de Deus (cf 16,15-29); as trevas cegaram os egípcios que perseguiam os israelitas, mas a coluna de fogo iluminou a caminhada do Povo de Deus para a liberdade (cf 17,1-18,4); os primogénitos dos egípcios foram mortos, mas Deus salvou a vida do seu Povo (cf 18,5-25); e assim por diante. O texto em causa evoca, em concreto, a noite em que foram mortos os primogénitos dos egípcios, à noite do êxodo (cf Ex 12,29-30).
O autor inspirado interpreta essa noite (cf Sb 18,5) como a resposta de Deus ao decreto do faraó que ordenava a matança das crianças hebreias do sexo masculino (cf Ex 1,22). Para os egípcios, foi uma noite trágica, de ruína, pesadelo, destruição, morte e luto; para os judeus, foi noite de salvação, glória e louvor do Deus libertador. Na perspetiva do hagiógrafo, Deus esteve na origem da libertação e, por Moisés, fez saber com antecedência aos hebreus os acontecimentos da noite pascal (cf Ex 12,21-28), para que ganhassem ânimo. Tudo isto foi entendido pelo Povo como ação de Deus. E, confrontado com a atuação de Deus em favor do seu Povo, Israel encontrou forma de responder a Jahwéh e de Lhe manifestar o seu louvor e agradecimento: os sacrifícios (alude-se ao sacrifício do cordeiro pascal, entendido como celebração da libertação operada por Deus) e a solidariedade (remonta ao momento do Êxodo das leis sobre a participação de todas as tribos na conquista – cf Nm 32,16-24 – e sobre a partilha igual dos despojos – cf Nm 31,27; Js 22,8), o cântico de hinos, alusão ao Hallel – Sl 113-118 – cantados todos os anos durante a ceia pascal) definem a resposta do Povo à ação de Deus. E é óbvia a conclusão: enquanto os egípcios (que divinizavam a natureza e que corriam atrás dos deuses falsos) se deixaram conduzir por esquemas de opressão e de injustiça e receberam de Jahwéh o justo castigo, os israelitas (fiéis a Jahwéh e à Lei, que sempre louvaram Deus e Lhe agradeceram seus dons e benefícios) viram Deus atuar em seu favor e encontraram a liberdade e a paz.
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O livro da Sabedoria (Sophía) situa-nos no fim do AT (Antigo Testamento), num tempo fundamental do diálogo entre o judaísmo e a o helenismo. É, neste sentido, um bom predecessor do NT (Novo Testamento). Por isso, a língua é o grego e pertence aos chamados livros Deuterocanónicos, por se encontrar só na Bíblia grega e, consequentemente, não entrar nem no Cânone judaico (da Bíblia hebraica) nem, mais tarde, no Cânone das igrejas protestantes.
É um dos livros sapienciais em que surge a sabedoria, mas neste vem a Sabedoria personificada e como protagonista. A redação e o vocabulário (culto e filosófico) elevam o livro acima do restante texto dos Setenta. Trata-se duma escrita expressiva e magnífica, que homenageia o estilo septuagintístico, através da opção por um discurso poético que não alinha com os padrões gregos clássicos, mas por aquele registo que tanto pode ser prosa poética como poesia em prosa (cf Frederico Lourenço, Bíblia, Vol IV, Tomo I, Quetzal,2018)  
O termo “sabedoria” é polissémico. Pode ser descrito como: aplicação da mente à aquisição de conhecimentos, a partir da experiência humana; habilidade prática no exercício duma atividade profissional ou na fuga a situações de perigo; prudência na linguagem e no comportamento; discernimento em ajuizar o que é bom ou mau para o ser humano; capacidade para detetar as formas de sedução e de engano…
A sabedoria bíblica é o conhecimento baseado na experiência acumulada ao longo da vida e enriquecida através das gerações, que se fixou gradualmente em máximas, sentenças e provérbios breves e ritmados, recheados de imagens ou comparações.
O povo de Deus apercebeu-se da importância da sabedoria para a vida, pois não era possível regulamentar todas as áreas da vida só pela lei de Moisés e pela palavra dos profetas. Havia espaços a preencher por opções e iniciativas pessoais, pelo que era preciso adquirir conhecimentos e capacidade crítica para avaliar pessoas e coisas, situações e acontecimentos.
Cotejado o conjunto da sabedoria de Israel com outros corpos literários do AT, não é difícil verificar que os Livros Sapienciais formam um mundo à parte, caraterizado pela fé na sabedoria divina que rege o universo e cada pessoa em particular.
Ah! A sabedoria bíblica remete para a sabedoria divina. Deus é a sabedoria por excelência, a Santa Sophia, a Sabedoria incriada. Porém, embora veicule o ponto de vista judeu, o livro da Sabedoria apresenta muitos pontos de contacto com a literatura greco-latina coeva, sobretudo ao nível do ideário. Frederico Lourenço considera-o herdeiro da poesia didática (de que é exemplo Fenómenos, de Arato), que descende de Teogonia e Trabalhos e Dias, de Hesíodo, e que estimulou, em Roma, a composição de poesia didática de relevo e de grande alcance filosófico, como o De Rerum Natura, de Lucrécio.
No âmbito sapiencial, o centro de interesse e de atenção desloca-se do povo, enquanto tal, para a pessoa indivídua; da História para o quotidiano; da situação peculiar de Israel para a condição humana universal; das vicissitudes históricas do povo da Aliança para a existência no mundo da criação; das intervenções prodigiosas de Deus para as relações entre causa e efeito; da esfera da Lei e do culto para o mundo das opções livres e da iniciativa pessoal; da autoridade de Deus para a esfera da experiência e da tradição humana; dos oráculos dos profetas, proclamados como palavra de Deus para o uso de todos os recursos da razão e da prudência, em ordem à orientação da própria vida; da imposição da Lei para a força persuasiva do conselho e da exortação; do castigo apresentado como sanção externa para a consequência negativa, resultante de uma escolha errada ou de um ato insensato, da morte não por culpa de Deus, mas como resultado do pecado. Assim, a sabedoria faz-se filosofia (enquanto gosto do saber, sabor do conhecimento), faz-se teologia, faz-se universalidade e interioridade, tira-nos do narcisismo coletivo, faz-nos assim como pessoas a mergulhar em Deus, tira-nos das fronteiras étnicas e geográficas para nos abrir ao mundo. E a sabedoria divina, cósmica (que esteve na criação do mundo e o rege), é o que em hebraico se chama “hokmah”; mas o seu conceito pode também ser expresso por “sedaqah” = “justiça”. Ao invés da palavra profética, a sabedoria exige o empenho de todas as capacidades e dons de que o ser humano dispõe (Sir 15,14-20; 17,1-14). Mais do que procedendo do alto, como a Lei, a Profecia e a própria História, a sabedoria surge e cresce a partir de baixo, da experiência humana. Sábio (ou sensato) é quem sabe adaptar-se ao sistema cósmico, descobre o seu mecanismo operativo e entra na sua essência. “Insensato” (ou mesmo “ímpio”) – o que não tem sabedoria e piedade – é quem não descortina as regras desse jogo ou não se interessa por elas.
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Atribuído a Salomão por algumas versões e manuscritos antigos, o livro é da responsabilidade de um autor anónimo bem distante de Salomão no tempo, que não pode situar-se para cá do ano 50 a.C. (entre 150 e 50 a.C.). Isso manifesta-se nos indícios literários e históricos. A atribuição do livro a Salomão, nos cap 6-9 (e só implicitamente) deve-se ao facto de a tradição bíblico-judaica situar este monarca na origem do género literário sapiencial, o que faz dele o Sábio (7,1-21; 8,14-16; 9; vd 1Rs 3,5-9; 5,9-14; 10,23-61). Provavel­­mente, a autoria humana é de um judeu de Alexandria, no Egito – onde residia uma forte comu­nidade judaica (um dos centros culturais mais importantes da Diáspora judaica) – que utilizou a pseudonímia. Como fruto dessa comuni­dade, o livro está marcado culturalmente por forte influência helenista. De facto, como diz Lourenço, a filosofia grega faz parte do horizonte do livro da Sabedoria através do vocabulário, que nos coloca em frente dum escritor que parece conhecer Platão (que valoriza a sophía na República) e o estoicismo.
Mas o autor conhece sobretudo a História do seu povo e a fé num Deus sem­pre presente e pronto a intervir nela; e sente a forte atração que as principais filosofias helenísticas e as diversas religiões exercem na vida dos seus irmãos de raça e de fé. Por isso, pretende estabelecer o diálogo entre fé e cultura gregas (6-8), de modo a sublinhar que a sabedoria que brota da fé e conduz a vida dos israelitas é superior à que inspira o modo de viver dos habitantes de Alexandria. Com o livro, o autor dirige-se a dois destinatários diferentes: os judeus de Alexandria, direta ou indiretamente perseguidos pelo paga­nismo do ambiente; e os pagãos, sobretudo os intelectuais helenis­tas, mais abertos à cultura hebraica, intentando convertê-los ao Deus único, vivo e verdadeiro. Dirigindo-se aos judeus (que vivem cercados por um ambiente de idolatria e imoralidade), o autor faz o elogio da “sabedoria” israelita, a fim de animar os israelitas fiéis e fazer voltar ao bom caminho os que tinham abandonado os valores da sua fé; dirigindo-se aos pagãos, o escritor (que se exprime em termos e conceções do mundo helénico, para que a sua mensagem chegue a todos) apresenta-lhes a superioridade da cultura e da religião israelitas, ridicularizando os ídolos e convidando, implicitamente, à adesão a uma fé mais pura, que é a fé judaica.
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Em termos de estrutura e conteúdo, a proposta de vida, assente na revela­ção de Deus, manifestada na História e no mundo criado, é desenvolvida em três partes: “I. A Sabedoria e o destino do homem (1,1-5,23), em que se descreve a sorte dos justos e dos ímpios, à luz da fé; sendo a justiça imortal (1,16) e reservando Deus a imortalidade aos justos; “II. Elogio da Sabedoria (6,1-9,18), com a origem, natureza, propriedades e dons que acompanham a sabedoria (7,22-8,1), como personificação de Deus (vd Pr 8; Sir 24) e o elogio da sabedoria, elevando-a acima dos valores mais apreciados neste mundo; e “III. A Sabedoria na História de Israel(10,1-19,22), em que se descreve a presença e a atividade da sabedoria em toda a História do povo de Israel com especial incidência no Êxodo (11,1-19,17), em forma de midrache e de contrastes, que caraterizam o estilo desta 3.ª parte (11,4-15,19; 16,1-4.5-14.15-29; 17,1-18,4; 18,5-25; 19,1-21). Todavia, o autor manifesta conhecimentos profundos de outros livros: Génesis, Provérbios, Ben Sirah e Isaías. Merece um relevo especial a brilhante polémica contra a idolatria. E o estilo da obra inclui recursos estilísticos hebraicos (paralelismo, parataxe, comentário midráchico, alusões a motivos do AT) e gregos (abundância de sinónimos, adjetivação rebuscada, aliterações, rimas e jogos de palavras). Tudo isto faz do livro um modelo do grego da Bíblia dos Setenta.
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No âmbito da teologia e leitura cristã do livro, ressalta que muitos judeus seriam tentados a seguir o caminho da impiedade e a renegar a fé, quer pela perseguição, quer pelo ridículo a que eram sujeitos por via das práticas da fé, quer pela vida moral fácil que os alexandrinos levavam, em contraste com as exigências apontadas pela Lei de Moisés (2,1-20). Mais que uma categoria de pessoas, os “ímpios” (o contraponto dos “justos” ao longo de todo o livro) personificam um estilo de vida oposto e hostil ao que deveria constituir o do judeu crente. Esta temática pode caraterizar-se pela ideia de justiça, nos três sentidos bíblicos: virtude da equidade, dando a cada um o que lhe pertence; cumprimento perfeito da vontade de Deus; e força ou ação de Deus, que nos livra de toda a espécie de mal. O hagiógrafo resolve o problema da felicidade dos justos e infelicidade dos ímpios com a retribuição ultra­ter­rena para os justos. Face a um ambiente religioso, filosófico e cultural, que apresentava um estilo de vida atraente, era imperioso dar razões fortes da fé em termos racionais e vitais, para que ela não aparecesse inferiorizada como proposta ou estilo de vida. Por isso, o livro mostra exce­cio­­nais conhecimentos de toda a Bíblia e da vida cultural helenística.
Uma segunda ideia teológica fundamental do livro é a personificação da Sabedoria divina. Enquanto, para os gregos, a sabedoria era meio para o conhecimento e contemplação divina, para o livro, é proposta de vida e alguém que está presente em toda a vida e que preside à vida toda, falando, estimulando e argumentando. A sabedoria é assim porque é o reflexo da vontade e do desígnio de Deus (9,13.17); partilha da própria vida de Deus e está associada a todas as suas obras (8,3-4); e tem a ver com o espírito de Deus (1,6; 7,7.22-23; 9,17). É ela que torna a religião judaica muito superior às religiões idólatras (cap. 13-15). Enfim, a sabedoria é um outro modo da revelação de Deus, isto é, o próprio Deus que age na História de Israel (cap. 11-12; 16-19) e no mundo criado. Ela prefigura o amor e a sabedoria de Deus que culmina em Jesus Cristo, também chamado “Sabedoria de Deus” (vd 1Cor 1,24.30). (cf Bíblia Sagrada, Difusora Bíblica, 2018).
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Deus nos dê a sua Sabedoria ou, melhor, nos refaça à sua imagem e semelhança e nos faça vez a sua vontade e o seu desígnio!
2019.08.11 – Louro de Carvalho

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