Na homilia
da Missa do 19.º domingo do Tempo Comum no Ano C, o reitor do Santuário de
Fátima a partir do Evangelho dominical
(Lc 12,32-48), exortou a assembleia de peregrinos
presentes no Recinto de Oração a viver a relação com Deus de um modo “vigilante
e desinstalado”, a não “ceder ao comodismo” e a perseverar na fé. E alertou para o perigo de “secundarizar Deus”
através do comodismo e da rotina.
O padre Carlos
Cabecinhas falava aos participantes na celebração, na sua maioria, peregrinos
oriundos do território nacional e do estrangeiro, designadamente de: Espanha,
França, Itália, Reino Unido, Alemanha, Bélgica, Polónia, Malta, Suécia, Brasil,
Costa do Marfim, Síria, Vietname e Indonésia – com para um grupo da iniciativa
do Santuário “Vem para o meio”, que
oferece férias para pais de filhos com deficiência.
Baseado na
“riqueza das imagens sugestivas” presentes na perícopa evangélica em referência,
o presidente da celebração começou por esclarecer o significado da vigilância:
“Estarmos preparados para acolher Deus não
significa não deixarmos que a nossa fé se acomode numa atitude passiva de quem
se limita a esperar que Ele Se revele; implica, antes, uma atitude ativa de
conversão de coração e compromisso efetivo com a vontade de Deus, que nos
permite reconhecer a Sua presença na nossa vida.”.
E alertou
para o perigo dos “dos valores secundários” que nos impedem de assumir esta atitude
de perseverança na fé e permanência na comunhão com Deus, explicitando:
“Com muita facilidade nos prendemos àquilo
que é passageiro, por causa da rotina que se instala, pela sedução dos caminhos
fáceis e das preocupações que nos desviam do essencial e nos levam, muitas
vezes, a fazer com que Deus e os outros fiquem esquecidos e secundarizados”.
No final,
com referência à fé, apresentada na carta aos Hebreus (Heb 11,1-2.8-19) como “garantia dos bens que se esperam e certeza
de realidades que não se veem”, o presidente da celebração reforçou a
importância da atenção e vigilância que a fé traz à relação com Deus, lembrando
o convite que a Mensagem de Fátima faz à “descoberta de Deus como o tesouro que
dá sentido pleno à vida”. E concluiu, reforçando o lado positivo da vigilância
acima referido:
“Estarmos vigilantes e atentos significa
olhar com atenção a nossa vida, à luz de Deus e da sua Palavra, para
percebermos o que pode ser obstáculo a acolher este Senhor que vem e a reconhecê-Lo
presente em nós”.
***
Entretanto,
é de destacar a perícopa do Livro da Sabedoria (Sb 18,6-9) tomada para 1.ª leitura.
O texto proposto para proclamação e meditação pertence à 3.ª
parte do livro (10,1-19,22). Aí, recorrendo a factos concretos
e a exemplos de figuras históricas, o hagiógrafo exalta as maravilhas operadas
pela “sabedoria” na história do Povo de Deus. Nos últimos capítulos desta 3.ª
parte (16-19), passando do geral ao particular, o
autor sagrado mostra como a natureza divinizada pelos ímpios se volta contra
eles, enquanto essa natureza se torna salvação para o Povo de Deus. O cenário
desta reflexão é a comparação entre o que um dia (no Êxodo) sucedeu aos egípcios e o que, em contraste,
aconteceu ao Povo de Deus: as pragas de animais castigaram os egípcios, mas as
codornizes alimentaram os israelitas (cf 16,1-4); moscas e gafanhotos atormentaram os egípcios, mas a serpente de bronze
erguida por Moisés no deserto salvou o Povo de perecer (cf 16,5-15); chuvas e granizo destruíram as
culturas egípcias, mas o maná alimentou o Povo de Deus (cf 16,15-29); as trevas cegaram os egípcios que
perseguiam os israelitas, mas a coluna de fogo iluminou a caminhada do Povo de
Deus para a liberdade (cf
17,1-18,4); os
primogénitos dos egípcios foram mortos, mas Deus salvou a vida do seu Povo (cf 18,5-25); e assim por diante. O texto em causa evoca, em concreto, a noite em que foram
mortos os primogénitos dos egípcios, à noite do êxodo (cf Ex 12,29-30).
O autor inspirado interpreta essa noite (cf Sb 18,5) como a resposta de Deus ao decreto
do faraó que ordenava a matança das crianças hebreias do sexo masculino (cf Ex 1,22). Para os egípcios, foi uma noite
trágica, de ruína, pesadelo, destruição, morte e luto; para os judeus, foi noite
de salvação, glória e louvor do Deus libertador. Na perspetiva do hagiógrafo,
Deus esteve na origem da libertação e, por Moisés, fez saber com antecedência
aos hebreus os acontecimentos da noite pascal (cf Ex 12,21-28), para que ganhassem ânimo. Tudo isto foi entendido pelo
Povo como ação de Deus. E, confrontado com a atuação de Deus
em favor do seu Povo, Israel encontrou forma de responder a Jahwéh e de Lhe
manifestar o seu louvor e agradecimento: os sacrifícios (alude-se ao sacrifício do cordeiro
pascal, entendido como celebração da libertação operada por Deus) e a solidariedade (remonta ao momento do Êxodo das leis
sobre a participação de todas as tribos na conquista – cf Nm 32,16-24 – e sobre
a partilha igual dos despojos – cf Nm 31,27; Js 22,8), o cântico de hinos,
alusão ao Hallel – Sl 113-118 – cantados todos os anos durante a ceia pascal) definem a resposta do Povo à ação
de Deus. E é óbvia a conclusão: enquanto os
egípcios (que
divinizavam a natureza e que corriam atrás dos deuses falsos) se
deixaram conduzir por esquemas de opressão e de injustiça e receberam de Jahwéh
o justo castigo, os israelitas (fiéis a Jahwéh e à Lei, que sempre louvaram Deus e Lhe
agradeceram seus dons e benefícios) viram Deus atuar em
seu favor e encontraram a liberdade e a paz.
***
O livro da
Sabedoria (Sophía) situa-nos no fim do AT (Antigo
Testamento), num tempo fundamental do diálogo
entre o judaísmo e a o helenismo. É, neste sentido, um bom predecessor do NT (Novo Testamento). Por isso, a língua é o grego e pertence aos
chamados livros Deuterocanónicos, por se encontrar só na Bíblia grega e, consequentemente,
não entrar nem no Cânone judaico (da Bíblia hebraica) nem, mais tarde, no Cânone das igrejas protestantes.
É um dos
livros sapienciais em que surge a sabedoria, mas neste vem a Sabedoria
personificada e como protagonista. A redação e o vocabulário (culto e filosófico) elevam o livro acima do restante texto dos Setenta. Trata-se
duma escrita expressiva e magnífica, que homenageia o estilo septuagintístico,
através da opção por um discurso poético que não alinha com os padrões gregos clássicos,
mas por aquele registo que tanto pode ser prosa poética como poesia em prosa (cf Frederico
Lourenço, Bíblia, Vol IV, Tomo I,
Quetzal,2018)
O termo “sabedoria” é polissémico. Pode ser descrito como:
aplicação da mente à aquisição de conhecimentos, a partir da experiência
humana; habilidade prática no exercício duma atividade profissional ou na fuga
a situações de perigo; prudência na linguagem e no comportamento; discernimento
em ajuizar o que é bom ou mau para o ser humano; capacidade para detetar as
formas de sedução e de engano…
A sabedoria
bíblica é o conhecimento baseado na experiência acumulada ao longo da vida
e enriquecida através das gerações, que se fixou gradualmente em máximas,
sentenças e provérbios breves e ritmados, recheados de imagens ou comparações.
O povo de Deus apercebeu-se
da importância da sabedoria para a vida, pois não era possível regulamentar
todas as áreas da vida só pela lei de Moisés e pela palavra dos profetas. Havia
espaços a preencher por opções e iniciativas pessoais, pelo que era preciso
adquirir conhecimentos e capacidade crítica para avaliar pessoas e coisas,
situações e acontecimentos.
Cotejado o conjunto da
sabedoria de Israel com outros corpos literários do AT, não é difícil verificar
que os Livros Sapienciais formam um mundo à parte, caraterizado pela fé na
sabedoria divina que rege o universo e cada pessoa em particular.
Ah! A sabedoria
bíblica remete para a sabedoria divina. Deus é a sabedoria por excelência, a
Santa Sophia, a Sabedoria incriada. Porém, embora veicule o ponto de vista
judeu, o livro da Sabedoria apresenta muitos pontos de contacto com a
literatura greco-latina coeva, sobretudo ao nível do ideário. Frederico
Lourenço considera-o herdeiro da poesia didática (de que é exemplo Fenómenos, de Arato), que descende de Teogonia e Trabalhos e Dias, de Hesíodo, e que
estimulou, em Roma, a composição de poesia didática de relevo e de grande
alcance filosófico, como o De Rerum Natura,
de Lucrécio.
No âmbito sapiencial, o
centro de interesse e de atenção desloca-se do povo, enquanto tal, para a
pessoa indivídua; da História para o quotidiano; da situação peculiar de Israel
para a condição humana universal; das vicissitudes históricas do povo da Aliança
para a existência no mundo da criação; das intervenções prodigiosas de Deus
para as relações entre causa e efeito; da esfera da Lei e do culto para o mundo
das opções livres e da iniciativa pessoal; da autoridade de Deus para a esfera
da experiência e da tradição humana; dos oráculos dos profetas, proclamados
como palavra de Deus para o uso de todos os recursos da razão e da prudência,
em ordem à orientação da própria vida; da imposição da Lei para a força
persuasiva do conselho e da exortação; do castigo apresentado como sanção
externa para a consequência negativa, resultante de uma escolha errada ou de um
ato insensato, da morte não por culpa de Deus, mas como resultado do pecado. Assim,
a sabedoria faz-se filosofia (enquanto gosto do saber, sabor do conhecimento), faz-se teologia, faz-se
universalidade e interioridade, tira-nos do narcisismo coletivo, faz-nos assim como
pessoas a mergulhar em Deus, tira-nos das fronteiras étnicas e geográficas para
nos abrir ao mundo. E a sabedoria divina, cósmica (que esteve na criação do mundo e o rege), é o que em hebraico se chama “hokmah”; mas o seu conceito pode também
ser expresso por “sedaqah” =
“justiça”. Ao invés da palavra profética, a sabedoria exige o empenho de todas
as capacidades e dons de que o ser humano dispõe (Sir 15,14-20; 17,1-14). Mais do que procedendo do alto,
como a Lei, a Profecia e a própria História, a sabedoria surge e cresce a
partir de baixo, da experiência humana. Sábio (ou sensato) é quem sabe adaptar-se ao sistema cósmico, descobre o seu
mecanismo operativo e entra na sua essência. “Insensato” (ou mesmo “ímpio”) – o que não tem sabedoria e piedade
– é quem não descortina as regras desse jogo ou não se interessa por elas.
***
Atribuído a
Salomão por algumas versões e manuscritos antigos, o livro é da
responsabilidade de um autor anónimo bem distante de Salomão no tempo, que não
pode situar-se para cá do ano 50 a.C. (entre 150 e 50 a.C.). Isso manifesta-se nos indícios literários e históricos. A
atribuição do livro a Salomão, nos cap 6-9 (e só implicitamente) deve-se ao facto de a tradição bíblico-judaica situar este
monarca na origem do género literário sapiencial, o que faz dele o Sábio (7,1-21; 8,14-16; 9; vd 1Rs 3,5-9;
5,9-14; 10,23-61). Provavelmente,
a autoria humana é de um judeu de Alexandria, no Egito – onde residia uma forte comunidade
judaica (um dos centros
culturais mais importantes da Diáspora judaica) – que utilizou a pseudonímia. Como fruto dessa
comunidade, o livro está marcado culturalmente por forte influência helenista.
De facto, como diz Lourenço, a filosofia grega faz parte do horizonte do livro
da Sabedoria através do vocabulário, que nos coloca em frente dum escritor que
parece conhecer Platão (que
valoriza a sophía na República) e o estoicismo.
Mas o autor
conhece sobretudo a História do seu povo e a fé num Deus sempre presente e
pronto a intervir nela; e sente a forte atração que as principais filosofias
helenísticas e as diversas religiões exercem na vida dos seus irmãos de raça e de
fé. Por isso, pretende estabelecer o diálogo entre fé e cultura gregas (6-8), de modo a sublinhar que a sabedoria que brota da fé
e conduz a vida dos israelitas é superior à que inspira o modo de viver dos habitantes
de Alexandria. Com o livro, o autor dirige-se a dois destinatários diferentes: os
judeus de Alexandria, direta ou indiretamente perseguidos pelo paganismo do
ambiente; e os pagãos, sobretudo os intelectuais helenistas, mais abertos à
cultura hebraica, intentando convertê-los ao Deus único, vivo e verdadeiro. Dirigindo-se aos judeus (que
vivem cercados por um ambiente de idolatria e imoralidade), o autor faz o elogio da
“sabedoria” israelita, a fim de animar os israelitas fiéis e fazer voltar ao
bom caminho os que tinham abandonado os valores da sua fé; dirigindo-se aos
pagãos, o escritor (que se exprime em termos e conceções do
mundo helénico, para que a sua mensagem chegue a todos) apresenta-lhes a superioridade
da cultura e da religião israelitas, ridicularizando os ídolos e convidando,
implicitamente, à adesão a uma fé mais pura, que é a fé judaica.
***
Em termos de
estrutura
e conteúdo, a proposta de vida, assente na revelação de Deus,
manifestada na História e no mundo criado, é desenvolvida em três partes: “I. A Sabedoria e o destino do homem” (1,1-5,23), em que se descreve a sorte dos justos e dos ímpios,
à luz da fé; sendo a justiça imortal (1,16) e reservando Deus a imortalidade aos justos; “II. Elogio da Sabedoria”
(6,1-9,18), com a origem, natureza, propriedades e dons que
acompanham a sabedoria (7,22-8,1), como
personificação de Deus (vd Pr 8; Sir 24) e o elogio
da sabedoria, elevando-a acima dos valores mais apreciados neste mundo; e “III. A Sabedoria na História de Israel” (10,1-19,22), em que se descreve a presença e a atividade da
sabedoria em toda a História do povo de Israel com especial incidência no
Êxodo (11,1-19,17), em forma de midrache e de contrastes, que caraterizam
o estilo desta 3.ª parte (11,4-15,19; 16,1-4.5-14.15-29; 17,1-18,4; 18,5-25;
19,1-21). Todavia, o autor manifesta conhecimentos profundos de outros livros: Génesis, Provérbios, Ben Sirah e Isaías. Merece um
relevo especial a brilhante polémica contra a idolatria. E o estilo da obra
inclui recursos estilísticos hebraicos (paralelismo, parataxe, comentário
midráchico, alusões a motivos do AT) e gregos (abundância de sinónimos, adjetivação rebuscada, aliterações, rimas e jogos de palavras). Tudo isto faz do livro um modelo do grego da Bíblia
dos Setenta.
***
No âmbito da
teologia
e leitura cristã do livro, ressalta que muitos judeus seriam tentados a seguir o caminho da impiedade e a renegar a fé, quer pela perseguição, quer
pelo ridículo a que eram sujeitos por via das práticas da fé, quer pela vida
moral fácil que os alexandrinos levavam, em contraste com as exigências apontadas pela Lei de Moisés (2,1-20). Mais que
uma categoria de pessoas, os “ímpios” (o contraponto dos “justos” ao longo
de todo o livro) personificam um estilo de vida oposto e hostil ao que deveria constituir o do judeu crente.
Esta temática pode caraterizar-se pela ideia de justiça, nos três sentidos bíblicos: virtude da equidade, dando a cada um o que lhe pertence; cumprimento perfeito da vontade de Deus; e força ou ação de Deus, que nos livra de toda a
espécie de mal. O hagiógrafo resolve o problema da felicidade dos justos e
infelicidade dos ímpios com a retribuição ultraterrena para os justos. Face a
um ambiente religioso, filosófico e cultural, que apresentava um estilo de
vida atraente, era imperioso dar razões fortes da fé em termos racionais e
vitais, para que ela não aparecesse inferiorizada como proposta ou estilo de
vida. Por isso, o livro mostra excecionais conhecimentos de toda a Bíblia e
da vida cultural helenística.
Uma segunda
ideia teológica fundamental do livro é a personificação da Sabedoria
divina. Enquanto, para os gregos, a sabedoria era meio para o conhecimento e contemplação
divina, para o livro, é proposta de vida e alguém que está presente em toda a
vida e que preside à vida toda, falando, estimulando e argumentando. A
sabedoria é assim porque é o reflexo da vontade e do desígnio de Deus (9,13.17); partilha da própria vida de Deus e está associada a
todas as suas obras (8,3-4); e tem a
ver com o espírito de Deus (1,6; 7,7.22-23; 9,17). É ela que torna a religião judaica muito superior às religiões idólatras
(cap. 13-15). Enfim, a sabedoria é um outro modo da revelação de
Deus, isto é, o próprio Deus que age na História de Israel (cap. 11-12;
16-19) e no mundo criado. Ela prefigura o
amor e a sabedoria de Deus que culmina em Jesus Cristo, também chamado “Sabedoria de Deus” (vd 1Cor
1,24.30). (cf Bíblia Sagrada, Difusora Bíblica, 2018).
***
Deus nos dê
a sua Sabedoria ou, melhor, nos refaça à sua imagem e semelhança e nos
faça vez a sua vontade e o seu desígnio!
2019.08.11 –
Louro de Carvalho
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