segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Portugueses querem Igreja afastada de questões políticas


É o título de primeira página do JN de 4 de agosto, o qual, nas páginas 4 a 6, retém muitos dados de uma sondagem da “Pitagórica” sobre os ‘Os Portugueses e a Religião’, que mostra um país religioso, de maioria católica, em que mais de um terço vai à igreja (templo) uma vez por mês ou mais, continuando os sacramentos a ser seguidos, mas cada vez menos.
Obviamente trata-se dum estudo de opinião em que, em termos genéricos, ressalta que os portugueses são católicos e devotos de Fátima, mas liberais nos costumes; e, sendo admiradores do Papa Francisco, revelam-se não seguidores acríticos das posições da Igreja, como no caso do fecho de shoppings e hipermercados ao domingo. Este dado, fornecido como exemplo do não seguidismo, é um remoque à sugestão do Bispo do Porto na Páscoa; e eu gostaria de saber se estão os portugueses a favor do regime de turnos de trabalho não necessários, sob o único ditame da ganância e do lucro, como também disse Dom Manuel Linda, que muito aprecio.
São os portugueses devotos de Fátima, assíduos no santuário e divididos quanto ao Islão. Talvez não saibam que, se o topónimo Cova da Iria é uma referência a Santa Iria ou Santa Irene em homenagem à qual temos a grande cidade do gótico de nome Santarém (etapa atual da evolução fonética de Santa Irene),o topónimo Fátima é uma referência ao antropónimo Fátima, a filha de Maomé, o que mostra resquícios do islão em terras cristãs.  
São os portugueses liberais nos costumes? Não sei. É certo que estão em vigor leis que levam à prática o consumo da pílula, mesmo a do dia seguinte, o uso do preservativo (também para evitar o HIV e as hepatites), a interrupção voluntária da gravidez (?), a tolerância explícita da relação homossexual, o casamento de pessoas do mesmo sexo, a procriação médica assistida, a excessiva proteção dos animais. Ficam pelo caminho a eutanásia, o suicídio assistido, as barrigas de aluguer, a adoção de crianças por casais homossexuais. Resta saber se estes casos – admitidos ou não por lei – são tipicamente e liberais ou se resultam da onda libertária (quase iconoclasta) e hedonista ou de relaxamento social.     
São os portugueses críticos dos abusos sexuais por clérigos e membros de institutos religiosos. Resta saber se fazem o mesmo tipo de crítica a outros setores da sociedade.
Afirmar-se católico ou católica pode ser uma declaração de fé professa e isso é de aplaudir pela Igreja Católica, mas pode significar o reconhecimento da pertença a um povo com a matriz identitária católica, o que é de apreciar, mas é muito pobre. Em todo o caso, é essa a religião indicada por 74% das pessoas, com maior incidência nas mulheres, nas classes sociais desfavorecidas e no Centro e Norte (incluindo o urbano Grande Porto). A exceção são os jovens até aos 24 anos: pouco mais de metade se dizem católicos ou até crem num Deus, mas 73% respondem “sim” a existência de alguma forma de espírito, força de vida ou energia.
Diz a professora da Universidade do Minho Helena Vilaça, socióloga da religião, que o mundo ocidental é marcado por uma “modernidade líquida”, pela “dificuldade em aderir a uma instituição”, marcada pela “bricolage religiosa” – aliás aspetos denunciados, em tempos, pelo Cardeal Patriarca em entrevista à Ecclesia. Com efeito, segundo refere a predita académica, não é nos ritos de passagem (como batizados, casamentos ou funerais), mas na família que a religião se transmite. Esquece que há tantos e tantas cujas famílias não são cristãs e que adquirem a formação cristã nas catequeses de iniciação cristã fornecidas pelas paróquias e grupos de apostolado, sobretudo juvenis. Dom Américo Aguiar confessou que aquilo que o levou à frequência das catequeses foi, não a família, mas o desejo e a necessidade que sentiu de ingressar no escutismo e, como se tratava de escutismo católico, impunha-se como conditio sine qua non a frequência das catequeses.  
Embora os ritos não sejam determinantes, são precisamente os sacramentos que mais levam os portugueses à igreja (34%). Somando os 21% que lá vão uma a duas vezes por ano, é mais de metade da população. Olhando para outros países europeus, Portugal continua a ter assíduos frequentadores dos ritos católicos: 17% vão à igreja todas as semanas e 36% vão, pelo menos, uma vez por mês. Os valores fazem de Portugal um dos países mais católicos da Europa, a seguir à Polónia e perto da Itália e Irlanda. É certo que são, sobretudo, as pessoas acima dos 65 anos quem mais segue os ritos católicos: só 14% nunca se confessaram e 20% fizeram-no há menos de um ano. Em contraste, quase metade dos menores de 24 anos nunca se abeirou dum confessionário (substituí “entrou” por “se abeirou”, pois só o confessor e que entra no confessionário). Além disso, 25% das pessoas com mais de 65 anos vai à igreja todas as semanas. Em sacramentos como o batismo, até os mais novos têm indicadores acima dos 90% e mais de metade fizeram a 1.ª comunhão – mas até aos 34 anos de idade, já não casam pela Igreja nem batizam os filhos.
Quase todos os portugueses já visitaram um santuário e um terço fez uma promessa. Em peregrinação ou em turismo, o Santuário de Fátima já foi visitado, pelo menos uma vez, por 9 em cada 10 portugueses, e 60% das pessoas fizeram a viagem nos últimos cinco anos. Muitas serão atraídas pela “energia espiritual muito forte” que lá encontram (87% dos inquiridos), incluindo uma parte significativa (79%) de quem professa outras religiões.
Contudo, como adverte Helena Vilaça, este é um dado a ser lido com cautela: se é certo que já rezaram em Fátima metade das pessoas vinculadas a outras religiões, também é certo que muitas poderão ter pedido a recristianização do santuário, encarado por alguns crentes não católicos como um lugar de paganismo. Assim, “para os protestantes evangélicos”, exemplifica a docente, Maria é um apóstolo de Jesus, pelo que não deve receber o culto que lhe é prestado (hiperdulia). Mas para as religiões orientais o santuário pode ser um especial espaço promotor de diálogo inter-religioso. Vilaça lembra que o Budismo e o Hinduísmo integraram a figura de Maria como a “mãe de todos os budas” ou a “santíssima mãe”, que é também mencionada no Corão, pelo que é propiciada a visita ao santuário por muçulmanos, sobretudo xiitas, muitos vindos do Irão.
Em termos globais, “Fátima continua a ser muito marcada pela religiosidade popular” – disse a investigadora. Os seguidores são sobretudo pessoas de mais idade e com menor capacidade económica, que são as que mais professam o Catolicismo e aderem aos ritos da Igreja.
Quem mais acredita na existência de “Nossa Senhora, mãe de Jesus”, tem mais do que 35 anos, enquadra-se sobretudo na classe média-baixa e baixa e vive nas ilhas, Norte (exceto Grande Porto) e Centro. Grosso modo são também estas as pessoas que mais rezam no santuário (70% dos portugueses já o fizeram), que mais creem nos milagres de Maria (média de 60%) e que mais promessas fazem.
Quanto a visitas ao santuário, a capacidade económica para suportar a deslocação pode explicar o facto de 97,7% das famílias abastadas já o terem feito, contra só 87% das mais pobres – apesar de tudo, uma percentagem expressiva. Há também uma diferença entre idades: 99% das pessoas com mais de 65 anos já foram a Fátima e a percentagem vai diminuindo à medida que se desce no escalão até chegar aos 70% de quem tem menos de 24 anos. Falta saber se os mais novos só não foram ao santuário porque ainda não tiveram tempo para isso. E, a meu ver, a sondagem não abarca as atividades recorrentemente feitas com jovens e crianças, os congressos, encontros, círculos de estudos e institutos religiosos ali presentes e atuantes. Se assim fosse, os resultados seriam diferentes. 
***
Os portugueses também não seguem a doutrina oficial da Igreja em assuntos como o casamento de padres. Isto não é doutrina, Senhoras e Senhores. Isto é lei para a Igreja Católica latina, que integra no sacerdócio católico homens casados que se convertem de outras religiões em que eram pastores ou sacerdotes, deixando-os continuar casados e eventualmente com filhos, como ordena de padres homens viúvos. Até os católicos mais velhos, por norma mais conservadores, são esmagadores a aceitar o casamento de padres e o casamento religioso de homossexuais (quase 50% dos idosos e mais de 80% dos jovens aprovam).
A linha é igual para a possibilidade de freiras celebrarem eucaristias: qualquer que seja a idade, a classe social dos inquiridos/as (exceto a mais desfavorecida), a religião professa e a região do país, 70% ou mais aprovam a ideia. Com a crise de vocações católicas, acontece em povoações mais pequenas só haver missa quando um padre lá pode ir. Porque hão de ser as freiras a celebrar missa e não as mulheres em geral, desde que sujeitas a módulos de formação adequados e suficientes? É que, por maior respeito que se tenha pelas freiras, elas não pertencem ao clero. Não são simples leigas como código de direito canónico parece considerá-las como aos religiosos não padres, mas, apesar de a constituição dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium reconhecer um estatuto especial aos religiosos e religiosas e aos membros dos institutos seculares em virtude do estado de consagrados e consagradas, não integram o clero. E isto é doutrina e não só lei. Resolver-se-ia, pois, a questão com a ordenação sacerdotal de homens casados e de mulheres (freiras ou não).  
Desagrada a interferência da Igreja em assuntos mundanos, bem como a inação da instituição que a maioria quer ver afastada da política. Para metade das pessoas, deve limitar-se a temas religiosos e para 10% pode pronunciar-se sobre tudo, menos política. Veja-se o caso da abertura de centros comerciais e hipermercados ao domingo: a Igreja é contra; a maioria é a favor.
Primeiro, além do que ficou dito sobre esta matéria, admito que a maioria seja a favor da abertura de centros comerciais e hipermercados ao domingo, mas pergunto porquê. Porque acham bem em termos sociais ou por comodismo e utilidade própria? Pelo lado da utilidade e do comodismo, também eu gostaria de ter transportes públicos em todo o território e que satisfizessem as minhas deslocações sempre que necessitasse. Comodidade nossa que esmaga a resistência física e psíquica de outros!
Relegar a Igreja Católica para dentro do templo ou para a sacristia (nesta até se pode conversar, comer, beber, fumar, fazer pagamentos devidos pela prestação de serviços religiosos) é não perceber as incidências vitais do Evangelho. Sempre se entendeu que, sendo a Igreja assembleia da comunidade, tem o dever de abordar todos os assuntos que digam respeito à comunidade e aos seus membros, seja a nível local, seja a nível universal. E isso também se chama política. Assim, por exemplo, no fim da celebração da Eucaristia, há um momento para os avisos de interesse comunitário, tal como podem ser afixados no escaparate no átrio do templo (igreja, com minúscula).
Embora a religião e a política, como dizia o general Vasco Gonçalves, sejam duas realidades diferentes, a fronteira entre elas é ténue, uma vez que a política é a ação em prol do bem comum e a religião é a aceitação ativa do zelo de Deus pelo homem, que se realiza na comunidade, ou seja, o crente sabe que a sua fé tem consequências na relação com Deus, que se quer intensa, e na relação o semelhante, que se quer denodada e solidária. É difícil encontrar um tema humano que não atraia o crente como é difícil abordar uma matéria que seja totalmente avessa à política. Por isso, querer que a Igreja só trate de temas religiosos é redutor e revela ignorância sobre a religião e a missão da Igreja, de que esta pode ter culpa em virtude de não ter apostado na formação integral das pessoas; e admitir que trate de tudo menos de política sabe a ignorância saloia sobre o que é política e a culpa pode ser dos políticos, que não fazem formação correta e completa do que é a política, sua abrangência e suas incidências.
Depois, é preciso distinguir entre Igreja e autoridade da Igreja. Se a Igreja é “o povo que Deus convoca e reúne de todos os confins da Terra, para constituir a assembleia daqueles que, pela fé e pelo Batismo, se tornam filhos de Deus, membros do Corpo de Cristo e templo do Espírito Santo” (É realidade universal que subsiste com vitalidade na realidade local – pois universal aplica-se a todo e a cada um identice et divisim), impedir os cristãos de intervir politicamente seria deixar que mais de meio mundo em Portugal ficasse arredado da ação política. Ao invés, a doutrina da Igreja acentua que os cristãos devem estar presentes em todas as realidades como fermento de Evangelho na massa humana (e arautos incansáveis do Reino) e não delas divorciados, como não podem ali estar acorrentados sem terem uma palavra a dizer e a liberdade de agir. Os crentes são chamados à liberdade de consciência, culto, expressão e ação – em privado e em público.
Por outro lado, há que falar da autoridade da Igreja onde se inscrevem os que têm na Igreja funções de liderança. Desde logo a hierarquia: diáconos, sacerdotes e bispos. Se usam da palavra no templo ou na ágora, essa palavra tem de ter consequências. Depois, é preciso considerar os que têm funções permanentes e eventuais de liderança: o Papa, Bispo de Roma, e seus colaboradores; o bispo em cada diocese com os seus colaboradores; o pároco em cada paróquia com os seus colaboradores; as conferências episcopais com os seus organismos; os superiores religiosos e as superioras religiosas; os responsáveis pelos diversos departamentos, serviços e movimentos eclesiais. Todos esses, perscrutando o sensus populi ou o sensus ecclesiae, devem pronunciar-se em termos de orientação ponderada (é dever e é direito) sobre todas as matérias que possam afetar as consciências e o senso comum, mesmo que incomodem, embora tolerando outras posições públicas. Nisso se incluem os temas ditos fraturantes na sociedade. A única limitação que sustento é a participação liderante em partidos políticos e órgãos da governação por parte de membros da hierarquia: Papa, Bispo, Pároco – que não devem ser foco de divisão na comunidade. Isto, se o país não se encontrar em situação de forte emergência. Porém, não me repugnaria que outros sacerdotes e religiosos/as militassem em partidos políticos e fossem governantes. De resto, detesto a hipocrisia de quem não quer padres e bispos na política, mas fica amuado quando estes não lhe satisfazem as vontades perto de eleições e em outros atos de propaganda através de obra feita ou a fazer!  
Por tudo isto, estará talvez na hora de reformular e intensificar a formação integral por parte da Igreja em Portugal e dizer às pessoas que autorizar casamento de padres com freiras, por serem freiras, é absurdo e não resolve qualquer problema a não ser o do casal. Ademais, quem se compromete com os conselhos evangélicos da pobreza voluntária, da obediência inteira e da castidade perpétua, se volta atrás, já não é frade ou freira. Modus in rebus!
 2019.08.05 – Louro de Carvalho

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