sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Polémica em torno do despacho sobre identidade de género


Pelo Despacho n.º 7247/2019, de 16 de agosto, a Secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade e o Secretário de Estado da Educação determinam as medidas administrativas para implementação do previsto no n.º 1 do art.º 12.º da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, que estabelece o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e o direito à proteção das caraterísticas sexuais de cada pessoa.
As preditas medidas administrativas a ter conta na escola sintetizam-se em quatro: prevenção e promoção da não discriminação; mecanismos de deteção e de intervenção sobre situações de risco; condições para uma proteção adequada da identidade de género, expressão de género e das caraterísticas sexuais das crianças e dos jovens; e formação dirigida a docentes e demais profissionais. E o despacho limita-se a desenvolver os quatro parâmetros definidos na lei, a que as ditas medidas correspondem.
No quadro da prevenção e promoção da não discriminação, a escola desenvolve, entre outras, as seguintes medidas: “ações de informação/sensibilização para crianças e jovens, alargadas a outros membros da comunidade escolar, para garantir a escola como espaço de liberdade e respeito, livre de pressões, agressões ou discriminações; e mecanismos de disponibilização de informação, incluindo o conhecimento de casos de discriminação, de forma a contribuir para a promoção do respeito pela autonomia, privacidade e autodeterminação de crianças e jovens que realizem transições sociais de género.
Quanto a mecanismos de deteção e intervenção, a escola define canais de comunicação e deteção, identificando o responsável ou responsáveis na escola a quem pode ser comunicada a situação de crianças e jovens que manifestem identidade ou expressão de género que não corresponde à identidade de género à nascença; e, após ter conhecimento da referida situação ou quando a observe em meio escolar, promove, em articulação com os pais, encarregados de educação ou os representantes legais, a avaliação da situação, para reunir toda a informação e identificar necessidades organizativas e formas possíveis de atuação, a fim de garantir o bem-estar e o desenvolvimento saudável da criança ou jovem.
No atinente às condições de proteção da identidade de género e de expressão, a escola, para assegurar o respeito pela autonomia, privacidade e autodeterminação das crianças e jovens, que realizem transições sociais de identidade e expressão de género, conforma os procedimentos administrativos de modo a: estabelecer a aplicação dos procedimentos para mudança nos documentos administrativos de nome e/ou género autoatribuído, em conformidade com o princípio do respeito pelo livre desenvolvimento da personalidade da criança ou jovem em processo de transição social de género, conforme a sua identidade autoatribuída; adequar a documentação de exposição pública e toda a que se dirija a crianças e jovens, designadamente, registo biográfico, fichas de registo da avaliação, fazendo figurar nessa documentação o nome adotado, de acordo com o previsto na susodita lei, garantindo que o mesmo não apareça de forma diferente da dos restantes alunos e alunas, sem prejuízo de nas bases de dados se poderem manter, sob confidencialidade, os dados de identidade registados; e garantir que a aplicação dos procedimentos definidos nas alíneas anteriores respeita a vontade expressa dos pais, encarregados de educação ou representantes legais da criança ou jovem. E, no concernente a medidas conducentes à adoção de práticas não discriminatórias, a escola emite orientações no sentido de: fazer respeitar o direito da criança ou jovem a utilizar o nome autoatribuído nas atividades escolares e extraescolares que se realizem na comunidade escolar, sem prejuízo de assegurar a adequada identificação da pessoa através do seu documento de identificação em situação que o exijam, tais como o ato de matrícula, exames ou situações similares; promover a construção de ambientes que na realização de atividades diferenciadas por sexo permitam que se considere o género autoatribuído, garantindo que as crianças e jovens possam optar por aquelas com que sentem maior identificação; e ser respeitada a utilização de vestuário no sentido de poderem as crianças e jovens escolher de acordo com a opção com que se identificam, entre outros, nos casos em que existe a obrigação de vestir uniforme ou qualquer outra indumentária diferenciada por sexo. Por outro lado, a escola garante que a criança ou jovem, no exercício dos seus direitos, aceda às casas de banho e balneários, tendo sempre em consideração a sua vontade expressa e assegurando a sua intimidade e singularidade.
Relativamente à formação, a escola promove a organização de ações de formação dirigidas ao pessoal docente e não docente, em articulação com os CFAE (Centros de Formação de Associação de Escolas), de forma a impulsionar práticas conducentes ao efetivo respeito pela diversidade de expressão e de identidade de género, que permitam ultrapassar a imposição de estereótipos e comportamentos discriminatórios.
Finalmente, a escola deve garantir a confidencialidade dos dados dos jovens que realizem o processo de transição de género.
Este é o teor do despacho em causa. A seguir vem a polémica.
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O líder do PSD critica o despacho “de perfil bloquista, semeando a confusão nas escolas” e sendo o assunto sido tratado com leviandade e pouco respeito pelas crianças. E diz no Twitter:
Em Agosto, a um mês do começo das aulas, o Governo faz um despacho de perfil bloquista, semeando a confusão nas escolas e nos pais. Uma coisa feita da forma mais insensata que se pode imaginar. Tratam com a maior leviandade um assunto sério e revelam pouco respeito pelas crianças.”.
Em causa está o susodito despacho sobre a aplicação da lei da identidade do género (aprovada no ano passado) que estipula que as escolas “devem garantir que a criança ou jovem, no exercício dos seus direitos, aceda às casas de banho e balneários, tendo sempre em consideração a sua vontade expressa e assegurando a sua intimidade e singularidade”. Veja-se o desplante. Rio tem o direito de concordar e de discordar, mas nunca fixando-se num único ponto do despacho, precisamente o que pode dar mais pasto a escândalo. Se concorda com a lei, promova o seu cumprimento; se discorda, deixe liberdade aos setores a que ela se destina e, entretanto, diligencie para que ela seja alterada ou substituída.   
Rui Rio criticou a suposta insensatez, leviandade e falta de respeito pelas crianças. Mas não é assim. Se alguma razão de queixa existe é a sobrecarga de trabalho para professores e funcionários, quando o tempo é deveras escasso.
Numa outra publicação na mesma rede social, o líder socialdemocrata partilha um artigo de Laurinda Alves, colunista do Observador, intitulado “Minorias de estimação”. E escreve apenas “vale a pena ler” e partilha o texto em que se defende:
No dia em que as casas de banho das escolas forem obrigatoriamente abertas a rapazes e raparigas de todas as idades, as agressões vão escalar e a ‘pressão dos pares’ poderá ser ainda mais perversa”.
Também, em pergunta ao ME (Ministério da Educação), o PSD criticou algumas medidas da lei sobre identidade do género, considerando potenciar “fenómenos de ‘bullying’ e violência escolar” e “em nada beneficiar o processo de aprendizagem”, tendo apontado uma “agenda ideológica de esquerda radical”.
O CDS considerou “desrespeitador da liberdade de ensino e irresponsável” o despacho sobre a aplicação da lei da identidade do género. Em declarações à Lusa, o centrista João Almeida disse que o despacho assim como a lei que está na sua base obriga as escolas a prosseguir um caminho limitando a possibilidade de ter o seu próprio projeto educativo (É excessivo). E disse:
É desrespeitador da liberdade porque há um princípio constitucional de liberdade de aprender e ensinar que pressupõe que cada escola tenha direito a desenvolver o seu projeto educativo”.
O deputado também defende que o despacho é irresponsável ao promover um experimentalismo social “que não faz sentido em meio escolar” e que devia ser revogado. E frisa:
Testa com crianças o que não existe em mais lado nenhum na sociedade. Isso é de uma irresponsabilidade extrema porque testar estas soluções com crianças não nos parece adequado.”.
Ademais, considera que o despacho se presta “ao ridículo tendo em conta a reação social”.
E, a 19 de julho, um grupo de 85 deputados do PSD e CDS entregou no Tribunal Constitucional um pedido de fiscalização sucessiva de parte da norma que determina a adoção de medidas no sistema educativo sobre identidade de género. Aí está uma prerrogativa de que os deputados usaram com toda a legitimidade constitucional. E aí, sim, podem impugnar toda a lei ou apenas um ou outro ponto.
A lei que estabeleceu o direito à autodeterminação da identidade e expressão de género, e o direito à proteção das caraterísticas sexuais de cada pessoa, foi aprovada em 12 de julho de 2018 e publicada em agosto seguinte. Agora só foram publicadas as medidas administrativas “que possam contribuir para garantir o livre desenvolvimento da personalidade das crianças e jovens e para a sua não discriminação em ambiente escolar, garantindo a necessária articulação com os pais, encarregados de educação ou representantes legais dos mesmos” (vd despacho em referência).
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O Secretário de Estado da Educação reage a críticas, como as de Rui Rio, sobre identidade de género pegando no tom dos críticos, nomeadamente de Rio, e dizendo que o despacho não vai significar que “uma menina, de repente, encontra um galifão de 16 anos ao seu lado na casa de banho”. Concorda-se que sejam falsas afirmações que induzem as pessoas a pensar isso, como clarificou o Secretário de Estado na tarde do dia 22, mas não tinha de responder no mesmo tom ou até em tom mais brejeiro. Um governante não desce ao nível da rua. E João Costa insiste com a bola na mesma baliza, ao referir que a ideia do despacho não é dizer que duas meninas vão ter “um rapaz na sua casa de banho”, mas que um rapaz em processo de transição de género “pode encontrar uma escola, em conjunto com a direção e a família, que tenha acesso privado a uma casa de banho disponível” nas instalações escolares.
A polémica  tem vindo a crescer e João Costa lamenta que algumas pessoas digam o que não está previsto no diploma e tentem “fazer disto um caso político”. O governante sublinhou que não se está ante “um processo de transformação das escolas” mas dum despacho que se aplica a “uma minoria das minorias das escolas”. Ressalvando que não existe “registo nacional de alunos transexuais”, adiantou serem cerca de 200 os alunos transexuais (número aproximado, já que foi obtido pelo contacto com as associações de pais e através das queixas que chegam ao ME).
“Não estamos a falar de uma imposição ou modelo em que cada aluno vai à casa de banho que quer quando lhe apetece”, diz João Costa, mas dum “conjunto de medidas administrativas que são decididas em conjunto, entre a escola e os encarregados da educação dos alunos transsexuais, para salvaguarda da sua intimidade e privacidade, sobretudo ao seu direito de utilizar o nome que adotou”. Por isso, não deixou de lançar uma farpa a Rio: achou interessante a publicação do líder do PSD por “ver como alguém consegue transformar uma medida antibullying numa ameaça de bullying, que é isto que Rio faz objetivamente.
João Costa sublinhou que “é um despacho que se aplica apenas às escolas que têm algum aluno ou aluna transsexual” e alertou para o ruído lançado “propositadamente” em torno da criação da lei. “De facto, o mais confortável é fazer de conta que [estes alunos] não existem, que é essa a alternativa proposta”. Ora, cabe a cada escola, que tem entre os alunos casos de transsexuais, encontrar as soluções e aplicações mais adequadas, frisou, dando o exemplo de uma escola com mais de “dois mil alunos, em que o aluno transsexual utiliza a casa de banho dos professores, que por acaso já é unissexo”. E o governante disse que o ideal seria que o aluno transsexual não fosse obrigado a frequentar o mesmo balneário dos outros alunos, já que “é de privacidade que estamos a falar”, levando em consideração o processo de transformação em que a criança se encontra, que inclui, “às vezes, até a rejeição do seu próprio corpo”.
Entre as medidas administrativas referidas, o governante destacou a possibilidade de o aluno ter o seu novo nome nas pautas da escola, lembrando o direito recém-adquirido da utilização do nome autoatribuído. “A única solução até agora era a de que no lugar do nome, não aparecesse nada. Um espaço em branco, como se [o aluno] não existisse”.  Ora, como explicou João Costa, “este recurso existe para crianças sob o programa de proteção de testemunhas ou de defesa, em casos de violência doméstica, para que não sejam identificadas pelos agressores”. E interrogou-se:  “Será digno uma criança ter o seu nome apagado como se não existisse?
Ao invés do defendido pela ILGA, João Costa considera que as escolas estão preparadas, já que o despacho fez-se “ouvindo escolas que já têm estes alunos e famílias com boas práticas”.
Perante a polémica gerada, João Costa marcou, para o dia 22, uma conferência de imprensa para responder a perguntas dos jornalistas acerca do diploma sobre a lei da identidade de género e lamentou o “clima de alarmismo social” quando se está a falar “de uma minoria de crianças e de escolas”, cerca de duas centenas. Não se trata de uma imposição de regras de uma minoria, mas de procurar que as escolas encontrem formas de salvaguardar essas crianças. E ridicularizar a situação é que “mostra um profundo desrespeito por essas crianças e as suas famílias” – diz.
Entretanto, sabe-se que as associações de diretores escolares concordam com o teor do despacho, mas querem que o ME se responsabilize pela formação de docentes e não docentes. Filinto Lima, presidente da ANDAEP (Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas), acredita que a escola encontrará a melhor solução, devendo confiar-se, acima de tudo, nas escolas e nos seus conselhos gerais que, em setembro se vão debruçar sobre isso. E atribui a polémica ao clima pré-eleitoral. Com efeito, o despacho não é uma surpresa, tratando-se apenas de legitimar as práticas que muitas escolas já vêm implementando. 
Por seu turno, a CONFAP, que representa muitas das federações de associações de pais, saúda o despacho e refere que não se deve falar de identidade de género, mas de respeito pela liberdade de orientação sexual também na linha de opção por sexo diferente do suposto.
E a FENPROF (Federação Nacional dos Professores) também veio a terreiro defender o despacho, lembrando que os jovens estão “muito mais habilitados a lidar com a diferença” do que muitos adultos, sabendo, não apenas, integrar, mas incluir”.
“Não é verdade que a aplicação deste despacho potencie fenómenos de bullying, eles são potenciados, isso sim, quando a sociedade ou a escola ignoram a realidade, deixando mais expostas, logo, mais fragilizadas, as minorias, sejam elas quais forem”, reagiu a FENPROF, que entende que o diploma “só pecou por tardio”, uma vez que foi publicado um ano após a publicação da lei, em pleno período de férias e a pouco mais de duas semanas do reinício da atividade das escolas. E lembrou que não basta publicar legislação e atribuir à escola a responsabilidade de a fazer cumprir, mas “é necessário criar condições para que a mesma se cumpra”, que passam por dar tempo aos docentes para ter formação e aumentar o número de assistentes operacionais nas escolas.
O despacho responder a uma realidade que a FENPROF considera que “não pode ser ignorada”, lembrando que em algumas escolas os professores e órgãos de gestão têm procurado dar a devida atenção, “apesar, até agora, de não terem tido o necessário apoio”. E a FENPROF sublinha que, apesar do esforço das escolas, ainda existe “um grande caminho a percorrer” em relação aos alunos, mas também ao pessoal docente e não docente. 
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Por fim, devo dizer duas coisas. Em primeiro lugar não sei se é verdade que as crianças e jovens estão mais motivados que os adultos para as diferenças e vejo que será difícil manter a singularidade, confidencialidade e privacidade na escola em relação aos casos que motivam o despacho. Em segundo lugar, o despacho que vem dar uma resposta condigna, embora com riscos, às diferenças envergonhadas, não merece críticas de fundo, mas talvez algumas de pormenor, desde que não se caia no brejeirismo. O que merece crítica pela marca ideológica do rasamento sexual e pela imposição do pensamento único sobre a pretensa identidade de género in radice, quando a ciência não é unívoca na matéria. Igualdade perante a lei e no quadro da dignidade humana não implica uniformismo e confusão, mas implica respeitar as diferenças e as opções pessoais. E a lei pode ser exagerada nestes aspetos.
Aliás a confusão é não de género, mas de sexo. Masculino, feminino e neutro como género são categorias gramaticais em termos de género, como há a de número, pessoa e voz. Do ponto de vista filosófico, pertencemos, segundo os escolásticos, ao género animal, como o leão, o cão, o gato, mas pertenceremos à espécie humana
Enfim, a lei tem de ser mais abstrata e universal e menos impressivo-repressiva.
2019.08.23 – Louro de Carvalho      

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