Pelo Despacho n.º 7247/2019, de 16 de agosto, a Secretária
de Estado para a Cidadania e a Igualdade e o Secretário de Estado da Educação
determinam as medidas
administrativas para implementação do previsto no n.º 1 do art.º 12.º da Lei
n.º 38/2018, de 7 de agosto, que estabelece
o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e o
direito à proteção das caraterísticas sexuais de cada pessoa.
As preditas medidas administrativas a ter conta
na escola sintetizam-se em quatro: prevenção
e promoção da não discriminação;
mecanismos de deteção e de intervenção
sobre situações de risco; condições
para uma proteção adequada da identidade de género, expressão de género e das
caraterísticas sexuais das crianças e dos jovens; e formação dirigida a docentes e demais profissionais. E o despacho
limita-se a desenvolver os quatro parâmetros definidos na lei, a que as ditas
medidas correspondem.
No quadro da prevenção e promoção da não discriminação, a escola desenvolve,
entre outras, as seguintes medidas: “ações de informação/sensibilização para crianças e jovens, alargadas a
outros membros da comunidade escolar, para garantir a escola como espaço de
liberdade e respeito, livre de pressões, agressões ou discriminações; e mecanismos de disponibilização de informação,
incluindo o conhecimento de casos de discriminação, de forma a contribuir para
a promoção do respeito pela autonomia, privacidade e autodeterminação de
crianças e jovens que realizem transições sociais de género.
Quanto a mecanismos de deteção e intervenção, a escola define canais de comunicação e deteção,
identificando o responsável ou responsáveis na escola a quem pode ser
comunicada a situação de crianças e jovens que manifestem identidade ou
expressão de género que não corresponde à identidade de género à nascença; e, após
ter conhecimento da referida situação ou quando a observe em meio escolar,
promove, em articulação com os pais, encarregados de educação ou os
representantes legais, a avaliação da
situação, para reunir toda a informação e identificar necessidades
organizativas e formas possíveis de atuação, a fim de garantir o bem-estar e o
desenvolvimento saudável da criança ou jovem.
No atinente às condições de proteção da identidade de género e de expressão, a
escola, para assegurar o respeito pela autonomia, privacidade e
autodeterminação das crianças e jovens, que realizem transições sociais de
identidade e expressão de género, conforma os procedimentos administrativos de
modo a: estabelecer a aplicação dos
procedimentos para mudança nos documentos administrativos de nome e/ou género
autoatribuído, em conformidade com o princípio do respeito pelo livre
desenvolvimento da personalidade da criança ou jovem em processo de transição
social de género, conforme a sua identidade autoatribuída; adequar a documentação de exposição pública e toda a que se dirija a
crianças e jovens, designadamente, registo biográfico, fichas de registo da
avaliação, fazendo figurar nessa documentação o nome adotado, de acordo com o
previsto na susodita lei, garantindo que o mesmo não apareça de forma diferente
da dos restantes alunos e alunas, sem prejuízo de nas bases de dados se poderem
manter, sob confidencialidade, os dados de identidade registados; e garantir
que a aplicação dos procedimentos definidos nas alíneas anteriores respeita a vontade expressa dos pais,
encarregados de educação ou representantes legais da criança ou jovem. E, no
concernente a medidas conducentes à adoção de práticas não discriminatórias, a
escola emite orientações no sentido de: fazer
respeitar o direito da criança ou jovem a utilizar o nome autoatribuído nas
atividades escolares e extraescolares que se realizem na comunidade escolar,
sem prejuízo de assegurar a adequada identificação da pessoa através do seu
documento de identificação em situação que o exijam, tais como o ato de
matrícula, exames ou situações similares; promover
a construção de ambientes que na realização de atividades diferenciadas por
sexo permitam que se considere o género autoatribuído, garantindo que as
crianças e jovens possam optar por aquelas com que sentem maior identificação;
e ser respeitada a utilização de
vestuário no sentido de poderem as crianças e jovens escolher de acordo com
a opção com que se identificam, entre outros, nos casos em que existe a
obrigação de vestir uniforme ou qualquer outra indumentária diferenciada por
sexo. Por outro lado, a escola garante que a criança ou jovem, no exercício dos
seus direitos, aceda às casas de banho e
balneários, tendo sempre em consideração a sua vontade expressa e
assegurando a sua intimidade e singularidade.
Relativamente à formação, a escola promove a organização de ações de formação
dirigidas ao pessoal docente e não docente, em articulação com os CFAE (Centros de Formação de Associação de
Escolas), de forma a
impulsionar práticas conducentes ao efetivo respeito pela diversidade de
expressão e de identidade de género, que permitam ultrapassar a imposição de
estereótipos e comportamentos discriminatórios.
Finalmente, a escola deve garantir a
confidencialidade dos dados dos jovens que realizem o processo de transição de
género.
Este é o teor do despacho em causa. A seguir vem
a polémica.
***
O líder do
PSD critica o despacho “de perfil bloquista, semeando a confusão nas escolas” e
sendo o assunto sido tratado com leviandade e pouco respeito pelas crianças. E diz no Twitter:
“Em Agosto, a um mês do começo das aulas, o
Governo faz um despacho de perfil bloquista, semeando a confusão nas escolas e
nos pais. Uma coisa feita da forma mais insensata que se pode imaginar. Tratam
com a maior leviandade um assunto sério e revelam pouco respeito pelas
crianças.”.
Em causa
está o susodito despacho sobre a aplicação da lei da identidade do género (aprovada no
ano passado) que
estipula que as escolas “devem garantir
que a criança ou jovem, no exercício dos seus direitos, aceda às casas de banho
e balneários, tendo sempre em consideração a sua vontade expressa e assegurando
a sua intimidade e singularidade”. Veja-se o desplante. Rio tem o direito
de concordar e de discordar, mas nunca fixando-se num único ponto do despacho,
precisamente o que pode dar mais pasto a escândalo. Se concorda com a lei,
promova o seu cumprimento; se discorda, deixe liberdade aos setores a que ela
se destina e, entretanto, diligencie para que ela seja alterada ou substituída.
Rui Rio
criticou a suposta insensatez, leviandade e falta de respeito pelas crianças. Mas
não é assim. Se alguma razão de queixa existe é a sobrecarga de trabalho para
professores e funcionários, quando o tempo é deveras escasso.
Numa outra
publicação na mesma rede social, o líder socialdemocrata partilha um artigo de
Laurinda Alves, colunista do Observador,
intitulado “Minorias de estimação”. E
escreve apenas “vale a pena ler” e partilha o texto em que se defende:
“No dia em que as casas de banho das escolas
forem obrigatoriamente abertas a rapazes e raparigas de todas as idades, as
agressões vão escalar e a ‘pressão dos pares’ poderá ser ainda mais perversa”.
Também, em pergunta
ao ME (Ministério
da Educação), o PSD criticou
algumas medidas da lei sobre identidade do género, considerando potenciar
“fenómenos de ‘bullying’ e violência escolar” e “em nada beneficiar o processo
de aprendizagem”, tendo apontado uma “agenda ideológica de esquerda radical”.
O CDS considerou “desrespeitador da liberdade de ensino e irresponsável”
o despacho sobre a aplicação da lei da identidade do género. Em declarações à Lusa, o centrista João Almeida disse
que o despacho assim como a lei que está na sua base obriga as escolas a
prosseguir um caminho limitando a possibilidade de ter o seu próprio projeto
educativo (É excessivo). E disse:
“É desrespeitador da liberdade porque há um
princípio constitucional de liberdade de aprender e ensinar que pressupõe que
cada escola tenha direito a desenvolver o seu projeto educativo”.
O deputado também defende que o despacho
é irresponsável ao promover um experimentalismo social “que não faz sentido em
meio escolar” e que devia ser revogado. E frisa:
“Testa com crianças o que não existe em mais
lado nenhum na sociedade. Isso é de uma irresponsabilidade extrema porque
testar estas soluções com crianças não nos parece adequado.”.
Ademais, considera que o despacho
se presta “ao ridículo tendo em conta a reação social”.
E, a 19 de
julho, um grupo de 85 deputados do PSD e CDS entregou no Tribunal
Constitucional um pedido de fiscalização sucessiva de parte da norma que
determina a adoção de medidas no sistema educativo sobre identidade de género.
Aí está uma prerrogativa de que os deputados usaram com toda a legitimidade
constitucional. E aí, sim, podem impugnar toda a lei ou apenas um ou outro
ponto.
A lei que
estabeleceu o direito à autodeterminação da identidade e expressão de género, e
o direito à proteção das caraterísticas sexuais de cada pessoa, foi aprovada em
12 de julho de 2018 e publicada em agosto seguinte. Agora só foram publicadas as
medidas administrativas “que possam contribuir para garantir o livre
desenvolvimento da personalidade das crianças e jovens e para a sua não
discriminação em ambiente escolar, garantindo a necessária articulação com os
pais, encarregados de educação ou representantes legais dos mesmos” (vd despacho
em referência).
***
O Secretário
de Estado da Educação reage a críticas, como as de Rui Rio, sobre identidade de
género pegando no tom dos críticos, nomeadamente de Rio, e dizendo que o
despacho não vai significar que “uma menina, de repente, encontra um galifão de
16 anos ao seu lado na casa de banho”. Concorda-se que sejam falsas afirmações
que induzem as pessoas a pensar isso, como clarificou o Secretário de Estado na
tarde do dia 22, mas não tinha de responder no mesmo tom ou até em tom mais
brejeiro. Um governante não desce ao nível da rua. E João Costa insiste com a
bola na mesma baliza, ao referir que a ideia do despacho não é dizer
que duas meninas vão ter “um rapaz na sua casa de banho”, mas que
um rapaz em processo de transição de género “pode encontrar uma escola, em
conjunto com a direção e a família, que tenha acesso privado a uma casa de
banho disponível” nas instalações escolares.
A polémica
tem vindo a crescer e João Costa lamenta que algumas pessoas digam o que não
está previsto no diploma e tentem “fazer disto um caso político”. O governante
sublinhou que não se está ante “um processo de transformação das escolas” mas dum
despacho que se aplica a “uma minoria das minorias das escolas”. Ressalvando que não existe
“registo nacional de alunos transexuais”, adiantou serem cerca
de 200 os alunos transexuais (número aproximado, já que foi obtido pelo contacto com
as associações de pais e através das queixas que chegam ao ME).
“Não
estamos a falar de uma imposição ou modelo em que cada aluno vai à casa de
banho que quer quando lhe apetece”, diz João Costa, mas dum “conjunto de
medidas administrativas que são decididas em conjunto, entre a escola e os
encarregados da educação dos alunos transsexuais, para salvaguarda da sua
intimidade e privacidade, sobretudo ao seu direito de utilizar o nome que
adotou”. Por isso, não deixou de lançar uma farpa a Rio: achou interessante a
publicação do líder do PSD por “ver como alguém consegue transformar uma medida
antibullying numa ameaça de bullying, que é isto que Rio faz
objetivamente.
João Costa
sublinhou que “é um despacho que se aplica apenas às escolas que têm algum
aluno ou aluna transsexual” e alertou para o ruído lançado “propositadamente”
em torno da criação da lei. “De facto, o mais confortável é fazer de conta que
[estes alunos] não existem, que é essa a alternativa proposta”. Ora, cabe a
cada escola, que tem entre os alunos casos de transsexuais, encontrar as
soluções e aplicações mais adequadas, frisou, dando o exemplo de uma escola com
mais de “dois mil alunos, em que o aluno transsexual utiliza a casa de banho
dos professores, que por acaso já é unissexo”. E o governante disse que o ideal
seria que o aluno transsexual não fosse obrigado a frequentar o mesmo balneário
dos outros alunos, já que “é de privacidade que estamos a falar”, levando em
consideração o processo de transformação em que a criança se encontra, que
inclui, “às vezes, até a rejeição do seu próprio corpo”.
Entre as
medidas administrativas referidas, o governante destacou a possibilidade de o
aluno ter o seu novo nome nas pautas da escola, lembrando o direito
recém-adquirido da utilização do nome autoatribuído. “A única solução até agora
era a de que no lugar do nome, não aparecesse nada. Um espaço em branco, como
se [o aluno] não existisse”. Ora, como explicou João Costa, “este recurso
existe para crianças sob o programa de proteção de testemunhas ou de defesa, em
casos de violência doméstica, para que não sejam identificadas pelos
agressores”. E interrogou-se: “Será
digno uma criança ter o seu nome apagado como se não existisse?”
Ao invés do
defendido pela ILGA, João Costa considera que as escolas estão preparadas, já
que o despacho fez-se “ouvindo escolas que já têm estes alunos e famílias com
boas práticas”.
Perante a polémica
gerada, João Costa marcou, para o dia 22, uma conferência de imprensa para
responder a perguntas dos jornalistas acerca do diploma sobre a lei da
identidade de género e lamentou o “clima de alarmismo social” quando se está a
falar “de uma minoria de crianças e de escolas”, cerca de duas centenas. Não se
trata de uma imposição de regras de uma minoria, mas de procurar que as
escolas encontrem formas de salvaguardar essas crianças. E ridicularizar a
situação é que “mostra um profundo desrespeito por essas crianças e as suas
famílias” – diz.
Entretanto,
sabe-se que as associações de diretores escolares concordam com o teor do
despacho, mas querem que o ME se responsabilize pela formação de docentes e não
docentes. Filinto Lima, presidente da ANDAEP (Associação
Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas), acredita que a escola
encontrará a melhor solução, devendo confiar-se, acima de tudo, nas escolas e
nos seus conselhos gerais que, em setembro se vão debruçar sobre isso. E
atribui a polémica ao clima pré-eleitoral. Com efeito, o despacho não é uma
surpresa, tratando-se apenas de legitimar as práticas que muitas escolas já vêm
implementando.
Por seu
turno, a CONFAP, que representa muitas das federações de associações de pais,
saúda o despacho e refere que não se deve falar de identidade de género, mas de
respeito pela liberdade de orientação sexual também na linha de opção por sexo
diferente do suposto.
E a
FENPROF (Federação
Nacional dos Professores)
também veio a terreiro defender o despacho, lembrando que os jovens estão “muito mais habilitados a lidar com a
diferença” do que muitos adultos, sabendo, não apenas, integrar, mas
incluir”.
“Não é
verdade que a aplicação deste despacho potencie fenómenos de bullying, eles são
potenciados, isso sim, quando a sociedade ou a escola ignoram a realidade,
deixando mais expostas, logo, mais fragilizadas, as minorias, sejam elas quais
forem”, reagiu a FENPROF, que entende que o diploma “só pecou por tardio”, uma
vez que foi publicado um ano após a publicação da lei, em pleno período de
férias e a pouco mais de duas semanas do reinício da atividade das escolas. E
lembrou que não basta publicar legislação e atribuir à escola a responsabilidade
de a fazer cumprir, mas “é necessário criar condições para que a mesma se
cumpra”, que passam por dar tempo aos docentes para ter formação e aumentar o
número de assistentes operacionais nas escolas.
O
despacho responder a uma realidade que a FENPROF considera que “não pode ser
ignorada”, lembrando que em algumas escolas os professores e órgãos de gestão
têm procurado dar a devida atenção, “apesar, até agora, de não terem tido o
necessário apoio”. E a FENPROF sublinha que, apesar do esforço das escolas,
ainda existe “um grande caminho a percorrer” em relação aos alunos, mas também
ao pessoal docente e não docente.
***
Por fim,
devo dizer duas coisas. Em primeiro lugar não sei se é verdade que as crianças
e jovens estão mais motivados que os adultos para as diferenças e vejo que será
difícil manter a singularidade, confidencialidade e privacidade na escola em
relação aos casos que motivam o despacho. Em segundo lugar, o despacho que vem
dar uma resposta condigna, embora com riscos, às diferenças envergonhadas, não
merece críticas de fundo, mas talvez algumas de pormenor, desde que não se caia
no brejeirismo. O que merece crítica pela marca ideológica do rasamento sexual
e pela imposição do pensamento único sobre a pretensa identidade de género in radice, quando a ciência não é unívoca
na matéria. Igualdade perante a lei e no quadro da dignidade humana não implica
uniformismo e confusão, mas implica respeitar as diferenças e as opções pessoais.
E a lei pode ser exagerada nestes aspetos.
Aliás a
confusão é não de género, mas de sexo. Masculino, feminino e neutro como género
são categorias gramaticais em termos de género, como há a de número, pessoa e
voz. Do ponto de vista filosófico, pertencemos, segundo os escolásticos, ao
género animal, como o leão, o cão, o gato, mas pertenceremos à espécie humana
Enfim, a
lei tem de ser mais abstrata e universal e menos impressivo-repressiva.
2019.08.23 –
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário