sábado, 10 de agosto de 2019

Gente que fala de mais ou que perde oportunidade de ficar calada



Pode acontecer a todos nós por vezes, mas alguns usam e abusam da circunstância. E estas semanas têm sido férteis neste abuso.
O Presidente da República, de quem era suposto esperar-se palavra oportuna em momentos-chave da vida do país, não perde uma oportunidade que se lhe ofereça para tomar a palavra e, como é dito, tantas vezes, para comentar tudo e todos. É para condicionar o Governo e a maioria parlamentar, é para condicionar o poder judiciário, é para condicionar os militares… e assim por diante. Ele explica as virtuosidades e as debilidades dos Orçamentos do Estado, as vicissitudes da diplomacia e das relações internacionais, da Europa e do Mundo; fala do Papa, dos cardeais e dos bispos, dos eventos desportivos; refere-se a mortos e a vivos; cola-se ao Governo e ao Parlamento e descola desses órgãos do poder; assume-se sempre que dá jeito como supremo comandante das forças armadas; impacienta-se com a morosidade da investigação; enfim, fala de tudo e de todos.
A propósito da greve dos motoristas veio dizer o óbvio, que a população se pode virar contra eles e disse uma coisa que não cola: “mesmo que os fins sejam legítimos, nem todos os meios o são”. É claro que um aumento salarial e a melhoria das condições de trabalho são fins legítimos, pelo que se dispensa a concessão; e a greve é um meio legítimo para conseguir tais fins, além de outros. Bem poderia deixar a ANTRAM, o Governo e os sindicatos a tratar do assunto e reservar-se ele para um eventual momento de crise aguda que viesse a decorrer da greve ou trabalhava, então, mais nos bastidores como faziam Eanes, Soares, Sampaio e Cavaco.
Ainda sobre a palavra presidencial sobre a greve, uma declaração de Marcelo soube a comentário heminarcisista: não comenta a greve, mas tem o depósito do seu carro atestado, ainda que depois tenha explicado que o faz sempre que vem de viagem. Faz lembrar, pelo contraste da sua autossuficiência com a miserabilidade de Cavaco Silva, quando este, tendo renunciado ao vencimento de Presidente, pôs a hipótese de a sua reforma e a da esposa não darem para pagar as contas.
Agora, alinhou com a infeliz recomendação do ministro que aconselhou a atestar de combustível os depósitos dos automóveis antes da greve. E viu-se o que deu o incitamento à prevenção excessiva: começou o combustível a faltar logo no primeiro dia em que o Governo anunciou a declaração de emergência energética.
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E, a propósito da promulgação do decreto do Parlamento que aprova o novo estatuto dos magistrados judiciais, comenta em nota da Presidência da República:
1 – Desde 1990 que os escalões mais elevados da carreira da Magistratura Judicial recebem vencimentos de base mais elevados que o do Primeiro-Ministro. 2 – Com o presente diploma alarga-se e acentua-se essa disparidade. 3 – Corresponde tal facto a orientação parlamentar de valorização, em termos absolutos, da Magistratura Judicial, orientação que se compreende e aceita. Daí a razão de ser da promulgação do diploma. 4 – Chama, no entanto, o Presidente da República a atenção para dois outros factos merecedores de ponderação global e inadiável. Um é a multiplicação de responsáveis públicos com vencimento de base superior ao do Primeiro-Ministro, indo de autoridades reguladoras e de supervisão a entidades públicas empresariais e empresas públicas, passando por outras entidades administrativas. O outro, ainda mais complexo, é o acentuar da desigualdade de tratamento em relação a outras carreiras com mais evidentes afinidades, nomeadamente a das Forças Armadas e as das Forças de Segurança. Certamente que tal desigualdade virá a ser encarada na próxima legislatura.
Foi com tal convicção e atendendo à relevância da valorização, em termos absolutos, da Justiça, e daqueles que a servem que o Presidente da República promulgou o Decreto da Assembleia da República que procede à décima sexta alteração ao Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30 de junho.
Então não teria sido melhor ter promulgado o diploma sem comentários? Justamente porque deixa para a próxima legislatura – para um parlamento que não existe e um governo que não existe – o encaramento da desigualdade ora cavada entre os magistrados e as Forças Armadas e as Forças de Segurança, o que levou os militares, considerando o seu comandante supremo como o seu provedor (o que seria impensável: e só não o é porque Marcelo tem feito de conta que sim) a protestar sugerindo que deveria ter vetado o diploma.
Ora, o veto não seria razoável depois de todo o processo negocial a que os portugueses assistiram. Por outro lado, os militares deveriam ter urgido a melhoria do seu estatuto remuneratório aquando da discussão do EMFA (estatuto dos militares das forças armadas) e do EMGNR (estatuto dos militares da GNR). Acresce que os militares não são titulares de órgãos de soberania.
Todavia, devo dizer que o Presidente da República e o Primeiro-Ministro têm um vencimento muito baixo. Também por aí a governança deveria estar mais ativa. Isto, sem deixar de dizer que não se justifica que os membros de entidades reguladoras percebam remuneração francamente maior que o dos dois mencionados detentores de cargos políticos. Se a política deve ser encarada como uma missão ou um serviço temporário, também a regulação e a gestão de empresa pública o devem ser.
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Mas não foram apenas estes que falaram sem o deverem fazer ou fazendo-o nos modos em que o fizeram.
O Ministro da Defesa Nacional respondeu torto às críticas e lamentos do CEMGFA (Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas) insinuando que, se não está contente, que se demita. Ora não é assim que se resolvem os problemas. Que as forças armadas estão deficitárias em efetivos e em recursos é verdade e não vale a pena tentar tapar o sol com a peneira; e, se elas têm de garantir a defesa militar da República, acudir à população em situações de emergência como agora na crise energética e de abastecimento ou nas missões humanitárias internacionais, precisam de gente e de recursos. E o poder político tem de ceder e acautelar este complexo de missões. Porém, o CEMGFA sabia que a situação era esta quando foi designado e sabe que estas coisas não se debatem em frente do pelourinho. E Ministro e CEMGFA falaram ambos em excesso e mal em público. Que Deus lhes perdoe se tiver por onde!
E, no caso da greve que está iminente, além do porta-voz do SMMMP, que se carpiu como um menino porque o dia do anúncio de que o Governo iria decretar a emergência energética e definiu os serviços mínimos em tempo de greve, de forma que desagradou aos sindicatos, deveria ser dia feriado porque representa o regresso à ditadura e à repressão, também os polícias disseram coisas que eram dispensáveis.
De facto, não faz parte do conteúdo funcional da GNR e da PSP fazer transporte de matérias perigosas ou conduzir camiões TIR e que a formação para esse efeito leva 35 horas. Ora bem. A formação de 35 horas é global e para tudo. Os elementos das forças de segurança conduzem, pelo que conhecem o código de estrada e as técnicas e regras de condução automóvel; os que têm carta de veículos pesados dispõem de conhecimentos de mecânica. A estes só lhes falta afazer-se à condução de emergência em camião adequado ao respetivo transporte. Não é isto do seu conteúdo funcional, pois não. Mas também poderiam dizer que não é do seu conteúdo funcional rebocar automóveis mal estacionados e fazem-no. Não lhes cabe aplicar multas/coimas de estacionamento que deve ser pago e fazem-no, como policiam esses aparcamentos em tempo de serviço e recebem remuneração da empresa juntamente com o vencimento de polícia. Não é seu conteúdo funcional fazer segurança a bares e discotecas e dizem que há quem o faça em tempo de folga. Ora, como em tempo de guerra não se limpam armas, em caso de emergência e perturbação da ordem pública, não se discutem os meios, desde que proporcionados, finalidade para a qual existe a cadeia de comando em que uns pensam para que outros obedeçam de pronto.
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O Governo pediu parecer ao Conselho Consultivo da PGR (Procuradoria-Geral da República) sobre a legalidade desta greve. Num parecer denso e extenso, o Conselho refere não ter elementos que lhe permitam avaliar da legalidade ou da ilegalidade da greve que se desenhou e diz que só os tribunais têm competência para julgar da legalidade das greves (o que, no limite, todos sabemos), mas que o Governo pode fazer a requisição civil preventiva.
Trata-se de um parecer jurídico que o Conselho pode dar e cuja eficácia dependeria de homologação do membro do Governo que tutela o setor. Como se trata de um parecer “nim”, o Governo não vai homologar parte do parecer.
Suponho que, nas condições em que a greve se estava a desenhar, havia conhecimento para avaliar da legalidade ou da ilegalidade, sem remeter já o caso para a competência dos tribunais. O Conselho não o fez: falou de menos. a lei da requisição civil não abre expressamente para o dado preventivo, pelo que, sendo uma lei restritiva de direitos, deve ter um entendimento restritivo. E referir o Conselho que o Governo pode utilizar preventivamente a requisição civil, havendo divergência entre os juristas da praça, nomeadamente constitucionalistas, configura o risco de ter falado de mais.        
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Um motorista da empresa de transportes Álvaro Figueiredo, em Oliveira de Azeméis, afeto à FECTRANS (Federação dos Sindicatos de Transportes e Comunicações), não é contra as reivindicações dos colegas motoristas, mas não considera oportuno o momento, e diz que há muita mentira nisto. E exemplifica com o ordenado que é propalado pelos colegas camionistas das matérias perigosas: “O salário é maior do que dizem e acrescem ajudas de custo”. E explica:
Nos transportes internacionais, ganhamos 661 euros de ordenado, mais 427 euros de trabalho noturno, mais 80 euros das diuturnidades, mais 134 euros de prémio TIR [Transporte Internacional Rodoviário]. Acrescem 49,44 euros por cada dia de fim de semana, mais ajudas de custo que representam 35 euros por dia.”.
Ou seja, ganha cerca de dois mil euros mensais. Aí contradiz-se quando ressalva:
Pode parecer muito dinheiro, mas não é, porque as despesas são todas por nossa conta. Tenho de pagar as refeições, os duches e até as multas.”.
Lá está mais um a falar em excesso. É livre de aderir ou não à greve. Mas devia conter-se. É verdade que o momento não é oportuno. Mas quando é que há momento oportuno para uma greve? E o salário-base é baixíssimo para o trabalho e a responsabilidade que têm os motoristas.
Terá razão ao dizer que “esta greve não vai ajudar em nada e os portugueses não vão entender” e ao lembrar que “há uma negociação que está protocolada e que está a decorrer e, por isso, não faz sentido fazer greve sem ouvir sequer as propostas dos patrões” ou que o patrão “já anunciou um aumento do salário-base para os 700 euros a partir de outubro e das restantes ajudas de custo”. Porém, demarcar-se ostensivamente da luta dos colegas é tão díspar como persistir na greve a todo o custo.
E – ao referir que “é preciso gostar da profissão que se exerce, porque prescindimos de muita coisa; não vemos os filhos a crescer, nem os acompanhamos em festas e eventos por causa da vida profissional e até já falhei aniversários dos meus filhos” – está a dar razão à luta dos grevistas.
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Enfim, modus in rebus para todos!
2019.08.10 – Louro de Carvalho

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