Pode
acontecer a todos nós por vezes, mas alguns usam e abusam da circunstância. E
estas semanas têm sido férteis neste abuso.
O
Presidente da República, de quem era suposto esperar-se palavra oportuna em
momentos-chave da vida do país, não perde uma oportunidade que se lhe ofereça
para tomar a palavra e, como é dito, tantas vezes, para comentar tudo e todos.
É para condicionar o Governo e a maioria parlamentar, é para condicionar o poder
judiciário, é para condicionar os militares… e assim por diante. Ele explica as
virtuosidades e as debilidades dos Orçamentos do Estado, as vicissitudes da
diplomacia e das relações internacionais, da Europa e do Mundo; fala do Papa,
dos cardeais e dos bispos, dos eventos desportivos; refere-se a mortos e a
vivos; cola-se ao Governo e ao Parlamento e descola desses órgãos do poder;
assume-se sempre que dá jeito como supremo comandante das forças armadas;
impacienta-se com a morosidade da investigação; enfim, fala de tudo e de todos.
A
propósito da greve dos motoristas veio dizer o óbvio, que a população se pode
virar contra eles e disse uma coisa que não cola: “mesmo que os fins sejam
legítimos, nem todos os meios o são”. É claro que um aumento salarial e a
melhoria das condições de trabalho são fins legítimos, pelo que se dispensa a
concessão; e a greve é um meio legítimo para conseguir tais fins, além de outros.
Bem poderia deixar a ANTRAM, o Governo e os sindicatos a tratar do assunto e
reservar-se ele para um eventual momento de crise aguda que viesse a decorrer
da greve ou trabalhava, então, mais nos bastidores como faziam Eanes, Soares,
Sampaio e Cavaco.
Ainda
sobre a palavra presidencial sobre a greve, uma declaração de Marcelo soube a
comentário heminarcisista: não comenta a greve, mas tem o depósito do seu carro
atestado, ainda que depois tenha explicado que o faz sempre que vem de viagem.
Faz lembrar, pelo contraste da sua autossuficiência com a miserabilidade de Cavaco
Silva, quando este, tendo renunciado ao vencimento de Presidente, pôs a hipótese
de a sua reforma e a da esposa não darem para pagar as contas.
Agora,
alinhou com a infeliz recomendação do ministro que aconselhou a atestar de
combustível os depósitos dos automóveis antes da greve. E viu-se o que deu o
incitamento à prevenção excessiva: começou
o combustível a faltar logo no primeiro dia em que o Governo anunciou a declaração
de emergência energética.
***
E, a
propósito da promulgação do decreto do Parlamento que aprova o novo estatuto
dos magistrados judiciais, comenta em nota da Presidência da República:
1 – Desde 1990 que os escalões mais elevados da carreira da Magistratura
Judicial recebem vencimentos de base mais elevados que o do Primeiro-Ministro. 2
– Com o presente diploma alarga-se e acentua-se essa disparidade. 3 –
Corresponde tal facto a orientação parlamentar de valorização, em termos
absolutos, da Magistratura Judicial, orientação que se compreende e aceita. Daí
a razão de ser da promulgação do diploma. 4 – Chama, no entanto, o Presidente
da República a atenção para dois outros factos merecedores de ponderação global
e inadiável. Um é a multiplicação de responsáveis públicos com vencimento de
base superior ao do Primeiro-Ministro, indo de autoridades reguladoras e de
supervisão a entidades públicas empresariais e empresas públicas, passando por
outras entidades administrativas. O outro, ainda mais complexo, é o acentuar da
desigualdade de tratamento em relação a outras carreiras com mais evidentes
afinidades, nomeadamente a das Forças Armadas e as das Forças de Segurança. Certamente
que tal desigualdade virá a ser encarada na próxima legislatura.
Foi com tal convicção e atendendo à relevância da valorização, em termos
absolutos, da Justiça, e daqueles que a servem que o Presidente da República
promulgou o Decreto da Assembleia da República que procede à décima sexta
alteração ao Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n.º 21/85,
de 30 de junho.
Então
não teria sido melhor ter promulgado o diploma sem comentários? Justamente
porque deixa para a próxima legislatura – para um parlamento que não existe e
um governo que não existe – o encaramento da desigualdade ora cavada entre os
magistrados e as Forças Armadas e as Forças de Segurança, o que levou os
militares, considerando o seu comandante supremo como o seu provedor (o
que seria impensável: e só não o é porque Marcelo tem feito de conta que sim) a protestar sugerindo que
deveria ter vetado o diploma.
Ora, o
veto não seria razoável depois de todo o processo negocial a que os portugueses
assistiram. Por outro lado, os militares deveriam ter urgido a melhoria do seu
estatuto remuneratório aquando da discussão do EMFA (estatuto
dos militares das forças armadas)
e do EMGNR (estatuto dos militares da GNR). Acresce que os militares não
são titulares de órgãos de soberania.
Todavia,
devo dizer que o Presidente da República e o Primeiro-Ministro têm um
vencimento muito baixo. Também por aí a governança deveria estar mais ativa. Isto,
sem deixar de dizer que não se justifica que os membros de entidades
reguladoras percebam remuneração francamente maior que o dos dois mencionados
detentores de cargos políticos. Se a política deve ser encarada como uma missão
ou um serviço temporário, também a regulação e a gestão de empresa pública o
devem ser.
***
Mas não
foram apenas estes que falaram sem o deverem fazer ou fazendo-o nos modos em
que o fizeram.
O
Ministro da Defesa Nacional respondeu torto às críticas e lamentos do CEMGFA (Chefe
do Estado-Maior General das Forças Armadas)
insinuando que, se não está contente, que se demita. Ora não é assim que se resolvem
os problemas. Que as forças armadas estão deficitárias em efetivos e em
recursos é verdade e não vale a pena tentar tapar o sol com a peneira; e, se
elas têm de garantir a defesa militar da República, acudir à população em
situações de emergência como agora na crise energética e de abastecimento ou
nas missões humanitárias internacionais, precisam de gente e de recursos. E o
poder político tem de ceder e acautelar este complexo de missões. Porém, o
CEMGFA sabia que a situação era esta quando foi designado e sabe que estas
coisas não se debatem em frente do pelourinho. E Ministro e CEMGFA falaram
ambos em excesso e mal em público. Que Deus lhes perdoe se tiver por onde!
E, no
caso da greve que está iminente, além do porta-voz do SMMMP, que se carpiu como
um menino porque o dia do anúncio de que o Governo iria decretar a emergência
energética e definiu os serviços mínimos em tempo de greve, de forma que
desagradou aos sindicatos, deveria ser dia feriado porque representa o regresso
à ditadura e à repressão, também os polícias disseram coisas que eram
dispensáveis.
De
facto, não faz parte do conteúdo funcional da GNR e da PSP fazer transporte de
matérias perigosas ou conduzir camiões TIR e que a formação para esse efeito
leva 35 horas. Ora bem. A formação de 35 horas é global e para tudo. Os elementos
das forças de segurança conduzem, pelo que conhecem o código de estrada e as
técnicas e regras de condução automóvel; os que têm carta de veículos pesados
dispõem de conhecimentos de mecânica. A estes só lhes falta afazer-se à
condução de emergência em camião adequado ao respetivo transporte. Não é isto
do seu conteúdo funcional, pois não. Mas também poderiam dizer que não é do seu
conteúdo funcional rebocar automóveis mal estacionados e fazem-no. Não lhes
cabe aplicar multas/coimas de estacionamento que deve ser pago e fazem-no, como
policiam esses aparcamentos em tempo de serviço e recebem remuneração da
empresa juntamente com o vencimento de polícia. Não é seu conteúdo funcional
fazer segurança a bares e discotecas e dizem que há quem o faça em tempo de folga.
Ora, como em tempo de guerra não se limpam armas, em caso de emergência e
perturbação da ordem pública, não se discutem os meios, desde que
proporcionados, finalidade para a qual existe a cadeia de comando em que uns
pensam para que outros obedeçam de pronto.
***
O Governo
pediu parecer ao Conselho Consultivo da PGR (Procuradoria-Geral
da República) sobre
a legalidade desta greve. Num parecer denso e extenso, o Conselho refere não
ter elementos que lhe permitam avaliar da legalidade ou da ilegalidade da greve
que se desenhou e diz que só os tribunais têm competência para julgar da
legalidade das greves (o que, no limite, todos sabemos), mas que o Governo pode fazer a
requisição civil preventiva.
Trata-se
de um parecer jurídico que o Conselho pode dar e cuja eficácia dependeria de
homologação do membro do Governo que tutela o setor. Como se trata de um
parecer “nim”, o Governo não vai homologar parte do parecer.
Suponho que,
nas condições em que a greve se estava a desenhar, havia conhecimento para
avaliar da legalidade ou da ilegalidade, sem remeter já o caso para a competência
dos tribunais. O Conselho não o fez: falou de menos. a lei da requisição civil
não abre expressamente para o dado preventivo, pelo que, sendo uma lei
restritiva de direitos, deve ter um entendimento restritivo. E referir o Conselho
que o Governo pode utilizar preventivamente a requisição civil, havendo divergência
entre os juristas da praça, nomeadamente constitucionalistas, configura o risco
de ter falado de mais.
***
Um motorista da empresa de transportes Álvaro Figueiredo, em
Oliveira de Azeméis, afeto à FECTRANS (Federação dos Sindicatos de Transportes e Comunicações), não é contra as reivindicações dos
colegas motoristas, mas não considera oportuno o momento, e diz que há muita
mentira nisto. E exemplifica com o ordenado que é propalado pelos colegas
camionistas das matérias perigosas: “O
salário é maior do que dizem e acrescem ajudas de custo”. E explica:
“Nos transportes internacionais, ganhamos
661 euros de ordenado, mais 427 euros de trabalho noturno, mais 80 euros das
diuturnidades, mais 134 euros de prémio TIR [Transporte Internacional
Rodoviário]. Acrescem 49,44 euros por cada dia de fim de semana, mais ajudas de
custo que representam 35 euros por dia.”.
Ou seja, ganha cerca de dois mil euros mensais. Aí
contradiz-se quando ressalva:
“Pode parecer muito dinheiro, mas não é,
porque as despesas são todas por nossa conta. Tenho de pagar as refeições, os
duches e até as multas.”.
Lá está mais um a falar em excesso. É livre de aderir ou não
à greve. Mas devia conter-se. É verdade que o momento não é oportuno. Mas
quando é que há momento oportuno para uma greve? E o salário-base é baixíssimo
para o trabalho e a responsabilidade que têm os motoristas.
Terá razão ao dizer que “esta greve não vai ajudar em nada e
os portugueses não vão entender” e ao lembrar que “há uma negociação que está
protocolada e que está a decorrer e, por isso, não faz sentido fazer greve sem
ouvir sequer as propostas dos patrões” ou que o patrão “já anunciou um aumento
do salário-base para os 700 euros a partir de outubro e das restantes ajudas de
custo”. Porém, demarcar-se ostensivamente da luta dos colegas é tão díspar como
persistir na greve a todo o custo.
E – ao referir que “é preciso gostar da profissão que se
exerce, porque prescindimos de muita coisa; não vemos os filhos a crescer, nem
os acompanhamos em festas e eventos por causa da vida profissional e até já
falhei aniversários dos meus filhos” – está a dar razão à luta dos
grevistas.
***
Enfim, modus in rebus para todos!
2019.08.10 –
Louro de Carvalho
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