A solenidade
litúrgica da Assunção de Nossa Senhora mostra que Deus antecipou em Maria tudo
o que deseja realizar em nós. Basta que sejamos livres como Maria para acolher
a sua vontade. Para tanto, deveremos ultrapassar a nossa condição de
prisioneiros do nosso desejo de nos afirmarmos ante dos outros e ante Deus, ou
da resignação às dificuldades, e obtermos a graça de vivermos plenamente a
liberdade dos filhos de Deus, à imagem de Maria.
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A perícopa bíblica do Apocalipse (Ap 11,
19a; 12, 1-6a.10ab) tomada como 1.ª leitura da Liturgia da Palavra, dá-nos, em visão simbólica, a chave de leitura da
Solenidade da Assunção. No dragão, cuja cauda varria um terço das estrelas do
céu, que luta contra a mulher – vestida de sol, coroada de estrelas e com a Lua
sob os seus pés – e que pretende capturar-lhe o filho que acabou de dar à luz, estão
representadas as ideologias que hoje nos dizem que é absurdo pensar em Deus ou
cumprir os seus mandamentos e os atrativos mundanos que tentam desviar-nos da
rota do Evangelho. Ora, a mulher que acreditou que iria cumprir-se tudo quanto
lhe foi dito da parte do Senhor e que se fez a serva da Palavra, a discípula da
fé, a mestra dos apóstolos, sentiu que em si o Senhor fez maravilhas e, na sua
alta autoestima que lhe foi segredada pelo Pai da Bondade e da Misericórdia,
previu que todas as gerações a proclamariam bem-aventurada, como acontece.
Nossa
Senhora, a do “sinal grandioso”, a fiel que foi dizendo o “sim” inabalável ao leque
das possibilidades de Deus, participa da glória do Ressuscitado como prémio
pela sua autenticidade e generosidade. Coroada de doze estrelas, também ela
diz: “Agora chegou a salvação, o poder e
a realeza do nosso Deus”.
Recorde-se que as visões do
Apocalipse se exprimem em linguagem codificada. Revelam que Deus arranca os
fiéis de todas as formas de morte. Por transposição, pode ser aplicada a Maria
a visão do sinal grandioso. Proclamando
esta mensagem na Assunção, reconhecemos que, no seguimento de Jesus e na pessoa
de Maria, a nova humanidade já é acolhida junto de Deus.
Esta é a
festa de Maria. Com efeito, a Mãe de Deus, que foi imune do pecado por graça de
Deus que a inundou do seu favor e que a fez sua mãe pela geração do Verbo de
Deus encarnado e pelos cuidados nutrícios e educacionais, depois de terminada a
sua missão terrena, é elevada aos Céus em corpo e alma – privilégio singular
que faz de Maria modelo do nosso caminhar.
Deus fez
nesta simples criatura tão humilde algo parecido com o que fez com seu Filho
Jesus: ressuscitou-a do túmulo, não a deixando incorrer na corrupção tumular, e
elevou-a ao Céu, à plenitude em todo o seu ser, corpo e alma. Revemo-la na
mulher do Apocalipse, quando os Céus se abriram e ficou patente a Arca da Aliança
e ressaltou a mulher coroada e iluminada, que deu à luz o Filho que o Céu
arrebatou para que o Dragão o não devorasse.
***
Porém,
como ficou entredito, o que se passou com Maria não tem origem nela, mas em
Deus e no seu Cristo. Quem a coroou, a iluminou e lhe sujeitou a Lua foi o
Cristo – morto e ressuscitado – e que subiu ao Céu. É Ele o protagonista desta
festa, pois é pela sua Paixão, Ressurreição e Ascensão que Ele pode introduzir
na glória e coroar de glória a crente singular, a discípula discreta, mas
modelar, a apóstola basilar do apostolado orante, atento e dedicado, em
verdadeira saída. E, revestindo-a da glória como a revestiu da graça, torna-a
nossa intercessora, junto de Si como em Caná no segmento do “Não têm vinho”, e sua mensageira e missionária
junto de nós, como em Caná no segmento do “Fazei
tudo o que Ele vos disser”. E Caná
inicia o itinerário especial para a Cruz e para o Cenáculo em que Ela se faz a Mãe
dos discípulos.
Não é a
morte o destino comum e final de tudo quanto vive, como dizem os pagãos, os
descrentes ou os sábios segundo o mundo. O nosso destino é a vida, o nosso
ponto final é a glória no coração de Deus: glória no corpo, na alma, em tudo
que somos. Foi isso que Deus nos preparou – Bendito
seja ele para sempre! Vemo-lo em Maria na sua proximidade junto de nós,
que, estando presente nas horas de Deus, está presente em todas as nossas
horas. E vemo-lo no Cristo do Gólgota, do túmulo vazio, no aparecido aos
discípulos a quem passou a chamar irmãos, no Cristo da Ascensão.
A
presente solenidade é, então, primeiramente, exaltação da glória de Cristo:
Nele está a vida e a ressurreição; Nele, a esperança de libertação definitiva.
Por isso, na esteira da 1.ª Carta aos Coríntios (1Cor 15,20-27),
diremos que todo aquele que crê em Jesus e é batizado no seu Espírito Santo no
sacramento do Batismo morrerá com Cristo e com Cristo ressuscitará.
Imediatamente após a morte, a nossa alma será glorificada e estaremos para
sempre com o Senhor. Quanto ao nosso corpo, será destruído e, no final dos
tempos, quando Cristo nossa vida aparecer, será também ressuscitado em glória e
unido à nossa alma. Será assim com todos nós. Mas não foi assim com a Virgem
Maria. Aquela que não teve pecado não foi tocada pela corrupção da morte.
Imediatamente após a sua passagem para Deus, foi ressuscitada, glorificada em corpo
e alma, foi elevada ao céu. Podemos, portanto, exclamar seguindo a pedagogia de
Isabel Isabel: “Bendita és tu entre as mulheres! Bendito é o
fruto do teu ventre! Bem-aventurada aquela que acreditou, porque será cumprido
o que o Senhor lhe prometeu!”.
Esta,
sendo a grande festa de Cristo, é também a festa de plenitude de Maria, a sua
chegada a glória, no seu destino pleno de criatura. Nela aparece clara a obra da
salvação que Cristo realizou Ela é aquela Mulher vestida do sol, que é Cristo,
pisando a instabilidade deste mundo, representada pela lua inconstante, toda
coroada de doze estrelas, número de Israel e da Igreja. A leitura da mencionada
passagem do Apocalipse mostra-nos tudo isto; mas termina com a grande
proclamação: “Agora
realizou-se a salvação, a força e a realeza do nosso Deus e o poder do seu
Cristo!”. Enfim, a plenitude da Virgem é a realização
da obra e da vitória de Cristo nela.
A Assunção é uma forma
privilegiada de Ressurreição. Tem a sua origem na Páscoa de Jesus e manifesta a
emergência duma nova humanidade, em que Cristo é a cabeça, como novo Adão.
Todo o capítulo 15 da 1.ª Carta aos Coríntios é uma
longa apologia da ressurreição. No texto de hoje, o apóstolo apresenta uma
espécie de genealogia da ressurreição e uma ordem de prioridade na participação
neste grande mistério. O primeiro é Jesus, o princípio da nova humanidade. Eis
porque o apóstolo o designa como o novo Adão, mas que se distingue
absolutamente do primeiro Adão; este tinha levado a humanidade à morte, ao
passo que o novo Adão conduz aqueles que o seguem para a vida. O apóstolo não
evoca Maria, mas, se proclamamos esta leitura na Assunção, é porque
reconhecemos o lugar eminente da Mãe de Deus no grande movimento da
ressurreição.
***
Mas é preciso considerar que o livro do Apocalipse foi composto no ambiente das
perseguições que se abatiam sobre a jovem Igreja, ainda tão frágil, mas já o
fermento da nova humanidade a que preside Cristo ou o novo Israel de que Cristo
é a Cabeça: a Igreja. Assim, numa linguagem codificada, em que os animais
terrificantes designam os perseguidores, vem o profeta neotestamentário evocar
estes acontecimentos. A Mulher em que se vê a figura de Maria é o protótipo da
Igreja, pelo que pode representar a Igreja, onovo Israel, o que sugere o número
doze (as estrelas). O seu nascimento é o do batismo na cruz; a sua
conceção é o banquete da noite pascal da Última Ceia; o seu espelho e horizonte
é o Céu da Ascensão e o mundo que é preciso evangelizar, segundo a missão que o
redentor redivivo lhe confiou; e a sua capacidade de caminhar acontece no
Pentecostes. Esta igreja, nascida do lado de Cristo e instituída em Pedro, deve
dar à terra a nova humanidade. O Dragão é o perseguidor que põe tudo em ação
para destruir o recém-nascido. Mas o destruidor não terá a última palavra, pois
o poder de Deus está em ação para proteger o seu Filho. A mulher, protótipo da
Igreja, é levada para o deserto para se livrar do Dragão e de lá o esmagar com
toda a força e, no caso da Igreja dos homens e mulheres, para se purificar.
***
Ora,
Deus não veio ao mundo, não escolheu Maria como Mãe, não se deixou crucificar
em função dum belo espetáculo. Em causa estava a salvação do homem. Foi por nós
homens e por nossa Salvação que desceu dos Céus, encarnou, passou pelo mundo
fazendo o bem, ressuscitou. E, ressuscitando, fez-se fundamento da nossa fé e
garantia da nossa ressurreição. Subindo aos Céus, mostrou-nos o caminho da
glória a que somos chamados e Maria tornou-se a primeira a trilhá-lo com a
visibilidade que a economia da Salvação requer.
Por
isso, esta é a festa do crente, a nossa festa. Como seres pascais, temos de
aspirar às coisas do Alto e afeiçoar-nos a elas. E, como a Ascensão de Cristo,
a Assunção da Virgem aponta-nos o Alto, onde Cristo está sentado à direita do
Pai, de modo que, no momento em que Jesus Cristo, que é a nossa vida, se
manifestar, nós nos havemos de manifestar com Ele na glória.
E
estaremos bem avisados se tivermos em conta que a devoção à Mãe de Deus é uma
grande força da nossa vivência cristã a apontar-nos a força do Alto, porque,
longe de desviar a nossa atenção de Cristo, ela nos integra no plano de
salvação proposto por Deus e realizado por seu Filho único, Jesus Cristo, que
se encarnou e veio ao mundo por meio dela.
Nós
celebramos Maria porque é Mãe de Deus, porque nos deu o Salvador e se tornou,
de facto e de direito, a corredentora da humanidade e a nossa Mãe. E foi Deus
que assim o quis. Foi Ele que, em sua infinita sabedoria e bondade, estabeleceu
que a redenção da humanidade acontecesse através de seu Filho único nascido de
uma virgem; e a virgem escolhida foi Maria. Ora, se Deus, o Senhor de todas as
coisas não se envergonhou de escolher Maria e a fez Cheia de Graça, para ser a
Mãe de seu Filho, não faz sentido nós, simples mortais, recusarmo-nos a ter
para com ela uma devoção toda especial. A Assunção de Maria é a preciosa
antecipação da nossa ressurreição e baseia-se na de Cristo, que transformará o
nosso corpo corrutível, fazendo-o semelhante ao seu corpo glorioso. Por isso Paulo
recorda-nos que, “se a morte veio por um homem (pelo pecado de Adão), também por um homem, Cristo, veio a ressurreição. Por Ele,
todos retornarão à vida, mas cada um a seu tempo: como primícias, Cristo; em
seguida, quando Ele voltar, todos os que são de Cristo; depois, os últimos,
quando Cristo devolver a Deus Pai o seu reino. Dessa vinda de Cristo, de que
fala o Apóstolo, disse São João Paulo II:
“Não
devia por acaso cumprir-se, neste único caso (o da Virgem), de modo excecional,
por dizê-lo assim, imediatamente, quer dizer, no momento da conclusão da sua
vida terrena? Esse final da vida que para todos os homens é a morte, a
Tradição, no caso de Maria, chama-o com mais propriedade dormição. Para nós,
a Solenidade de hoje é como uma continuação da Páscoa, da Ressurreição e da
Ascensão do Senhor. E é, ao mesmo tempo, o sinal e a fonte da esperança
da vida eterna e da futura ressurreição.”.
Maria é
causa de nossa alegria! Pois foi através dela que nos veio a alegria, Jesus
Cristo, e é nela que nós vemos o que seremos: gloriosos com a glória que tomará
conta do nosso corpo e da nossa alma no dia eterno, no qual ela, gloriosamente,
em corpo e alma, já nos precedeu.
***
Pela
Visitação que teve lugar na Judeia (Lc 1,39-56) e onde se
encontra a legitimidade da devoção a Maria, Maria levava Jesus pelos caminhos
da terra. Pela Dormição e Assunção, é Jesus quem leva a Mãe pelos caminhos
celestes, para o templo eterno, para a Visitação definitiva. Nesta festa, com
Maria, proclamamos a obra grandiosa de Deus, que chama a humanidade a juntar-se
a Ele pelo caminho da ressurreição. Em Maria,
Ele realizou a sua obra na totalidade; com ela, nós proclamamos: “dispersou os soberbos, exaltou os humildes”.
Os humildes são os que creem no cumprimento da palavra de Deus e se põem a
caminho, os que acolhem até ao mais íntimo do ser a Vida nova, Cristo, para o
levar ao mundo. Deus debruça-se sobre eles e faz maravilhas.
A humilde disponibilidade de
Maria tornou-a nossa intercessora junto de Jesus.
E a Assunção deveria servir
também para purificação de hábitos e linguagem. Assim, em vez de rezar a Maria,
deveríamos rezar por intermédio de Maria, pois a oração cristã dirige-se a Deus, ao Pai, ao Filho e
ao Espírito: só Deus atende a oração. Os irmãos protestantes que, ao invés do
que se pretende por vezes, têm fé na Virgem Maria Mãe de Deus, recordam-nos que
Maria é e se diz Ela própria a Serva do Senhor. Rezar por intermédio de Maria é pedir
que Ela reze por nós: “Rogai por nós pecadores
agora e na hora da nossa morte!” A sua intervenção maternal em Caná resume a
sua intercessão por nós: “Eles não têm
vinho!”. E é nossa conselheira: “Fazei
tudo o que Ele vos disser!” Depois,
é preciso rezar com Maria. Ela, como no Cenáculo, está ao nosso
lado para nos levar na oração, como uma mãe sustenta a palavra balbuciante do filho.
Na glória de Deus, na qual nós a honramos hoje, ela prossegue a missão que
Jesus lhe confiou sobre a Cruz: “Eis o
teu Filho!”. Rezar com Maria,
mais que ajoelhar-se diante dela, é ajoelhar-se ao seu lado para nos juntarmos
à sua oração. Ela acompanha-nos e guia-nos na nossa caminhada junto de Deus. Por último, é preciso rezar como
Maria. Aprendemos junto de Maria os caminhos da oração. Na escola
daquela que “guardava e meditava no seu coração” os acontecimentos do
nascimento e da infância de Jesus, meditamos o Evangelho e, à luz do Espírito
Santo, avançamos nos caminhos da verdade. A nossa oração torna-se alegria e ação
de graças no eco ao Magnificat. Pomos
os nossos passos nos passos de Maria para dizer com ela na confiança: “Que tudo seja feito segundo a tua Palavra,
Senhor!”. O cântico de Maria descreve o programa
que Deus tinha começado a realizar desde o começo, que ele prosseguiu em Maria
e que cumpre agora na Igreja, para todos os tempos.
***
Por dizer que Maria está
nas horas de Deus e em todas as nossas horas, recordo que hoje Ela é celebrada
em muitos lugares e sob muitos títulos (é sempre a
única Senhora), que até fazem esquecer o mistério de hoje. Mas é
nessa abundância de títulos que Ela mostra estar nas horas de Deus (as suas qualidades e privilégios vêm-lhe de Deus) e nas horas dos homens;
necessidades, circunstâncias, saúde, ar, terra, mar, luz, etc. E apraz-me
salientar uma curiosidade. No Douro Sul é orago em muitas localidades, mas
sucede não raro que tem um título na igreja paroquial e outro no cimo do monte
ou colina. Assim, em Lamego é Senhora da Assunção na Sé e Senhora dos Remédios
no Santo Estêvão, Santa Maria Maior em Almacave e Senhora da Serra, no Poio;
Senhora da Corredora na igreja de Caria e Senhora da Guia na colina; Senhora do
Amial na igreja da Vila da Ponte e Senhora das Necessidades e Senhora do
encontro na Borralheira; Senhora da Assunção na igreja de Fonte Arcada e
Senhora da Saúde na colina; Senhora das Neves na igreja de Granjal e Senhora da
Aparecida no monte. Enfim, quanto mais alta, mais próxima!
2019.08.15 – Louro de
carvalho
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