O I Dia Mundial dos Pobres ocorre no XXXIII
domingo do Tempo Comum do Ano A, em que se proclama e medita nas igrejas a
perícopa do Evangelho de Mateus que enuncia a parábola dos talentos ou do “homem que, ao partir de
viagem, chamou os seus servos e confiou-lhes os seus bens…” (Mt
25,14-30), de teor semelhante ao da parábola das
minas de Lucas (vd
Lc 19,12-27).
É também uma parábola do Reino dos Céus, pois
o cap. 25 inicia-se com a expressão “o
Reino dos Céus é semelhante a dez virgens que…”. E, terminada essa
parábola, vem o segmento “Será também
como um homem que, ao partir de
viagem, chamou os seus servos e confiou-lhes os seus bens. E segue a
narrativa conhecida de todos.
Esta parábola
apresenta-nos dois exemplos opostos de como esperar e preparar a última vinda
do Senhor. Louva o discípulo que se empenha em fazer frutificar os bens que
Deus lhe confia – o servo que recebeu 5 talentos e trabalhou com eles, ganhando
mais 5, recebe como prémio a entrada no gozo do seu Senhor; e como a ele, foi
dado o prémio de entrar na comunidade feliz do Senhor ao que recebera dois
talentos e ganhou com a sua dedicação outros dois –, mas condena o discípulo
que se instala no medo e na apatia e não põe a render os bens que Deus lhe
entrega (está a
desperdiçar os dons de Deus e a privar os irmãos, a Igreja e o mundo dos frutos
a que têm direito).
Enquanto os
servos diligentes, com o seu trabalho lúcido e diligente, ganharam o dobro do
que receberam e o puderam entregar ao Senhor aquando do seu regresso da longa
viagem, o servo mau, porque preguiçoso, tinha escondido cuidadosamente o
talento que lhe fora confiado, pois conhecia a exigência do “senhor” e dele tinha
medo. Ora, se os dois primeiros servos foram louvados pelo Senhor, o terceiro
foi severamente criticado e condenado (pranto e ranger de dentes).
A parábola,
tal como saiu da boca de Jesus, é uma “parábola do Reino”. O amo ou senhor exigente
seria Deus, que reclama para Si uma lealdade a toda a prova e que não aceita
meias tintas e situações de acomodação e de preguiça. Os servos a quem Ele
confia os valores do Reino devem acolher os seus dons e pô-los a render, a fim
de que o Reino seja uma realidade. No Reino, ou se está completamente
comprometido, ou não se está. Não há lugar à tibieza ou mornice. Entretanto,
Mateus partindo da mesma parábola, sem a descaraterizar como parábola do Reino,
situou-a num outro contexto: o da vinda do Senhor Jesus, no final dos tempos. A
vinda do Senhor é uma certeza; e, quando Ele voltar, julgará os homens conforme
a atitude fundamental e os comportamentos que tiverem assumido na sua ausência.
Nesta versão da parábola, este “senhor” é Jesus que, antes de deixar este
mundo, entregou bens consideráveis aos seus “servos” (os discípulos), que serão seus amigos se fizerem o
que Ele manda (cf Jo
15,14). Estes “bens” ou
talentos (talento era
6000 dracmas ou 3000 siclos = 36Kg de ouro) são os dons que Deus, por Jesus, ofereceu aos homens – a
Palavra divina, os valores evangélicos, o amor tornado serviço aos irmãos,
sobretudo aos mais pobres, e que se dá até à morte, a partilha e o serviço, a
misericórdia e a fraternidade, os carismas e ministérios que ajudam a construir
a comunidade do Reino dos Céus. Os discípulos de Jesus são os fiéis depositários
(não só depositários) e generosos despenseiros destes
“bens”. A questão gira, pois, em torno das seguintes perguntas:
Como devem ser utilizados estes “bens”? Devem dar frutos, que devem ser
distribuídos por quem precisa, ou devem ser conservados cuidadosamente
enterrados? Os discípulos de Jesus podem – por medo, por comodismo, por
desinteresse – deixar que esses “bens” fiquem infrutíferos e inúteis?
Nos termos da
parábola, os bens que Jesus deixou aos discípulos têm de dar frutos, visto que
ela apresenta como modelos os dois servos que mexeram com os bens, que
demonstraram interesse, que se preocuparam em não deixar parados os dons do
Senhor, que fizeram investimento, que não se acomodaram nem se deixaram
paralisar pela preguiça, rotina ou medo. Por outro lado, a parábola condena
veementemente o servo que entregou intacto o bem que recebeu. Teve medo, pelo
que decidiu não correr riscos. Porém, não só não tirou fruto desses bens, como impediu
que os bens do “Senhor” fossem criadores de vida nova e de oportunidades para
outrem.
Através da
parábola, Mateus exorta a comunidade a estar alerta e vigilante, sem se deixar
vencer pela preguiça, medo, comodismo e rotina. Esquecer os compromissos
assumidos com Jesus e com o Reino, demitir-se das suas responsabilidades,
deixar na gaveta os dons de Deus, aceitar passivamente que o mundo se construa
de acordo com valores que não são os do Evangelho de Jesus, instalar-se na
passividade e no comodismo, é privar os irmãos, a Igreja e o mundo dos frutos a
que têm direito.
O discípulo
de Jesus não pode esperar o Senhor de mãos vazias, ainda que erguidas e de
olhos postos no céu, alheado dos problemas do mundo e preocupado em não se contaminar
com as questões do mundo. O discípulo de Jesus espera o Senhor profundamente
envolvido e empenhado no mundo, ocupado em distribuir por todos os homens seus
irmãos os bens de Deus e em construir o Reino, pondo os seus talentos ao
serviço da comunidade, sobretudo dos mais pobres, olhando-os no rosto, chamando
pelos seus nomes e urgindo a sua dignidade.
O que se diz
de cada discípulo deve dizer-se da Igreja, que tantas vezes se refugia no medo
da contaminação e se refugia no escondimento de dons e abafa os talentos da
comunidade e de cada um dos seus membros. Quantas comunidades e cristãos que se
sentem castrados pelo medo da contaminação e pelo peso da lei, com medo do
mundo e de seus dirigentes! E quantas vezes, a contrario, a Igreja e os seus membros por medo se antecipam e, em
vez do serviço e do rendimento dos talentos, se querem impor como poder
inibidor, à semelhança dos poderes mundanos! Quantas vezes não se trava a
pobreza ou se deixa avançar pelo não uso do génio criativo e operativo para a
anular ou, ao menos a minorar, limitando-nos a praticar uns atos isolados de
caridadezinha para termos a consciência tranquila!
***
O Papa, na
homilia da Eucaristia a que presidiu com a participação de 4000 pessoas pobres
e os respetivos voluntários, começou por assumir que somos mendigos do
essencial e disse:
“Temos a alegria de repartir o pão da
Palavra e, em breve, de repartir e receber o Pão eucarístico, alimentos para o
caminho da vida. Deles precisamos todos nós, sem ninguém ser excluído, porque
todos somos mendigos do essencial, do amor de Deus, que nos dá o sentido da vida e uma vida
sem fim. Por isso, também hoje, estendemos a mão para Ele a fim de receber os
seus dons.”.
Da parábola
do Evangelho de Mateus, Francisco refere que, segundo ela, nós somos destinatários
dos talentos de Deus, “cada qual conforme a sua capacidade” (Mt 25,15). Quer que,
antes de mais, reconheçamos que “temos talentos”, que “somos ‘talentosos’ aos
olhos de Deus”. Por conseguinte, “ninguém pode considerar-se inútil”, nem “dizer-se
tão pobre que não possua algo para dar”. Como “eleitos e abençoados por Deus, que
deseja cumular-nos dos seus dons, mais que um pai e uma mãe o desejam fazer aos
seus filhos”. E é Deus, aos olhos de Quem nenhum filho é descartável, quem confia
a cada um uma missão.
Na verdade,
como Pai amoroso e exigente, “responsabiliza-nos”. E explica o Pontífice:
“Vemos, na parábola, que a cada servo são
dados talentos para os multiplicar. Mas, enquanto os dois primeiros realizam a
missão, o terceiro servo não faz render os talentos; restitui apenas o que
recebera: ‘Com medo – diz ele –, fui esconder o teu talento na terra. Aqui está
o que te pertence’. Como resposta, este servo recebe palavras duras: mau e preguiçoso.”.
Perante a
situação de servos e de uma situação servilista, Francisco levanta uma questão,
a que responde com mestria:
“Nele, o que desagradou ao Senhor? Diria,
numa palavra (talvez caída um pouco em desuso mas muito atual), a omissão.
O seu mal foi o de não fazer o bem. Muitas vezes também nos
parece não ter feito nada de mal e com isso nos contentamos, presumindo que
somos bons e justos. Assim, porém, corremos o risco de nos comportar como o
servo mau: também ele não fez nada de mal, não estragou o talento, antes o
guardou bem na terra. Mas, não fazer nada de mal, não basta. Porque Deus não é
um controlador à procura de bilhetes não timbrados; é um Pai à procura de
filhos, a quem confiar os seus bens e os seus projetos (cf Mt 25,14). E é
triste, quando o Pai do amor não recebe uma generosa resposta de amor dos
filhos, que se limitam a respeitar as regras, a cumprir os mandamentos, como
jornaleiros na casa do Pai (cf Lc 15,17).”.
Ao servo mau
associa o Papa a atitude de muitos também na Igreja e da própria Igreja, às
vezes, quando se confunde fidelidade com mera conservação. Diz Bergoglio:
“O servo mau, tendo recebido o talento do
Senhor que gosta de partilhar e multiplicar os dons, guardou-o zelosamente,
contentou-se com salvaguardá-lo; ora não é fiel a Deus quem se preocupa apenas
em conservar, manter os tesouros do passado, mas, como diz a parábola, aquele
que junta novos talentos é que é verdadeiramente ‘fiel’ (Mt 25, 21.23), porque
tem a mesma mentalidade de Deus e não fica imóvel: arrisca por amor, joga a
vida pelos outros, não aceita deixar tudo como está. Descuida só uma coisa: o
próprio interesse. Esta é a única omissão justa.”.
Depois, fala
da indiferença como novo rosto da omissão, sobretudo quando atinge a pobreza:
“E a omissão é também o grande pecado contra
os pobres. Aqui assume um nome preciso: indiferença. Esta é dizer:
‘Não me diz respeito, não é problema meu, é culpa da sociedade’. É passar ao
largo quando o irmão está em necessidade, é mudar de canal, logo que um
problema sério nos indispõe, é também indignar-se com o mal, mas sem fazer
nada. Deus, porém, não nos perguntará se sentimos justa indignação, mas se
fizemos o bem.”.
Interrogando-se
como podemos então, concretamente,
agradar a Deus, o Papa dos pobres
diz:
“Quando se quer agradar a uma pessoa
querida, por exemplo dando-lhe uma prenda, é preciso primeiro conhecer os seus
gostos, para evitar que a prenda seja mais do agrado de quem a dá do que da
pessoa que a recebe. Quando queremos oferecer algo ao Senhor, os seus gostos
encontramo-los no Evangelho. Logo a seguir ao texto que ouvimos hoje, Ele diz:
‘Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo
o fizestes’ (Mt 25,40).”
Ora, os
irmãos mais pequeninos, prediletos do Senhor, “são o faminto e o doente, o forasteiro e o recluso, o pobre e o
abandonado, o doente sem ajuda e o necessitado descartado”. Segundo o
Pontífice, a Eucaristia tem íntima relação com os pobres. Com efeito:
“Nos seus rostos, podemos imaginar impresso
o rosto d’Ele; nos seus lábios, mesmo se fechados pela dor, as palavras d’Ele:
‘Isto é o meu corpo’ (Mt 26,26). No pobre, Jesus bate
à porta do nosso coração e, sedento, pede-nos amor. Quando vencemos a
indiferença e, em nome de Jesus, nos gastamos pelos seus irmãos mais
pequeninos, somos seus amigos bons e fiéis, com quem Ele gosta de Se demorar.”.
Mas o Papa
não deixa de associar ao fazer render dos talentos e à preocupação pelos
pobres, o exemplo da mulher virtuosa do Livro do Provérbios (Pr 31,10-13.19-20.30-31), que Deus tem em grande apreço. De facto, a “mulher
forte” estende os braços ao infeliz e abre a mão ao indigente (cf Pr 31,10.20). Esta é a verdadeira fortaleza, a dos valores do
trabalho, do compromisso, da generosidade, do “temor de Deus” – de que deve
revestir-se o discípulo que quer viver na fidelidade aos projetos de Deus e
corresponder à missão que Deus lhe confiou; e não a dos
punhos cerrados e braços cruzados. Queremos a fortaleza “das mãos operosas e estendidas
aos pobres, à carne ferida do Senhor”. Como diz o Papa:
“Nos pobres, manifesta-se a presença de
Jesus, que, sendo rico, Se fez pobre (cf 2Cor 8,9). Por isso neles, na sua fragilidade, há uma
‘força salvífica’. E, se aos olhos do mundo têm pouco valor, são eles que nos
abrem o caminho para o Céu, são o nosso ‘passaporte para o Paraíso’. Para nós,
é um dever evangélico cuidar deles, que são a nossa verdadeira
riqueza; e fazê-lo não só dando pão, mas também repartindo com eles o pão da
Palavra, do qual são os destinatários mais naturais. Amar o pobre significa
lutar contra todas as pobrezas, espirituais e materiais.”.
Mesmo em
termos de realização (mais do que satisfação) pessoal, cuidar dos pobres faz-nos bem:
“Abeirarmo-nos de quem é mais pobre do que
nós, tocará a nossa vida. Lembrar-nos-á aquilo que conta verdadeiramente: amar
a Deus e ao próximo. Só isto dura para sempre, tudo o resto passa. Por isso, o
que investimos em amor permanece; o resto desaparece.”.
Assim, cada
um pode interrogar-se:
“Para
mim, o que conta na vida? Onde invisto? Na riqueza que passa, da qual o mundo
nunca se sacia, ou na riqueza de Deus, que dá a vida eterna?”.
E Francisco
ensina respondendo:
“Diante de nós, está esta escolha: viver
para ter na terra ou dar para ganhar o Céu. Com efeito, para o Céu, não vale o
que se tem, mas o que se dá, e ‘quem amontoa para si não
é rico em relação a Deus’ (cf Lc 12,21).”.
E exorta
fundamentadamente:
“Então não busquemos o supérfluo para nós,
mas o bem para os outros; e nada de precioso nos faltará. O Senhor, que tem
compaixão das nossas pobrezas e nos reveste dos seus talentos, nos conceda a
sabedoria de procurar o que conta e a coragem de amar, não com palavras, mas
com obras.”.
***
Também o reitor do Santuário de Fátima, que presidiu à Eucaristia dominical na Basílica da Santíssima
Trindade perante os peregrinos (fizeram-se anunciar no Serviço de Peregrinos do
Santuário 13 grupos) disse que
São Francisco Marto e Santa Jacinta
Marto se tornaram “transparência de Jesus Cristo”. Recorde-se que se tratou de
celebração rica a muitos títulos: foi missa de peregrinação; o Grupo de
Acólitos do Santuário de Fátima renovou os seus votos; sintonizou com o final
da Semana Nacional dos Seminários,
fazendo reverter o produto do ofertório a favor do Seminário Diocesano de
Leiria-Fátima; e esteve em união com o Santo Padre na sua preocupação pela
eficácia do I Dia Mundial dos Pobres
e na assunção do conceito profundo e existencial da pobreza e do pobre, como
recurso da Sociedade e tesouro da Igreja.
O Padre
Carlos Cabecinhas, comentando a parábola, alertou para a “vinda do Senhor”, uma
chegada em que devemos estar “vigilantes e sem medo”. E, seguindo a liturgia,
questionou os peregrinos acerca do fim que dá cada um aos “talentos que Deus
nos dá”. Perguntou o sacerdote, deixando entrever nas questões formuladas as
respostas consequentes:
“Como
preparamos a vinda do Senhor? Com confiança ou medo? Com compromisso ou apatia?
Jesus antes da ascensão ao Céu entregou-nos os Seus talentos, a sua palavra, o
Evangelho, o seu amor, os valores evangélicos: O que estamos a fazer a estes bens? Fazemos frutificar na nossa vida a
Sua palavra e os Seus ensinamentos? Deixamos que a indiferença e o medo tomem
conta de nós?”.
Mas o Padre Cabecinhas
explicitou a resposta a estas interpelações, lembrando que “o apelo à
conversão na mensagem de Fátima tem sentido de vigilância, desafio a vencer o
comodismo e a rotina”, pois “a mensagem
de Fátima exorta-nos a não nos acomodarmos na vivência da nossa fé, a não
cruzarmos os braços e a sermos criativos”. Frisando que os videntes não
se acomodaram (não enterraram o talento), foram
criativos na busca do bem e vontade de Deus, apelou:
“Tomemos o exemplo de Francisco e Jacinta,
que receberam exortações e pedidos e acolheram esse dom e os fizeram frutificar”.
Os dois
santos meninos tiveram “vontade de fazer render o talento de Deus”, e foram
“criativos para encontrar momentos de oração, ajudar os outros”, mesmo os mais
pobres, os que eles conheciam. Por isso, segundo as palavras do reitor, “tornaram-se
transparência de Jesus Cristo”, e constituem “importantes exemplos por
mostrarem como fazer render esses talentos”. Com efeito, porque todos “somos
testemunhas de Jesus Cristo, é com a nossa voz que Jesus Cristo faz chegar a
Sua voz e solidariedade”. E concluiu o padre Carlos Cabecinhas:
“Temos de ter a dignidade de fazer render
este tesouro e tomar consciência desta enorme responsabilidade”.
***
Prosit!
2017.11.19 – Louro de Carvalho
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