quarta-feira, 1 de novembro de 2017

A multidão dos bem-aventurados, filhos de Deus, que procuram o Senhor

A Liturgia da Solenidade de Todos os Santos assume para proclamar e meditar os textos das passagens: do Apocalipse (Ap 7,2-4.9-14), para 1.ª leitura; da 1.ª carta de São João (1Jo 3,1-3), para 2.ª leitura; e do Evangelho de São Mateus (Mt 5,1-12), 3.ª leitura. Estas leituras revelam o projeto de Deus a respeito do homem: torná-lo participante da sua Vida e Santidade.
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A perícopa do Apocalipse apresenta uma visão celestial em que o vidente, que se chama João, falando na 1.ª pessoa do singular se surpreende com a subida dum Anjo, que vinha do nascente trazendo “o selo do Deus vivo” (marca de propriedade, aqui de Salvação: a Cruz e o Batismo) e que bradou aos quatro anjos (dos 4 pontos cardeais, donde emergem as 4 virtudes humanas: prudência, justiça, fortaleza e temperança) a quem foi dado o condão de danificar a terra e o mar:
Não causeis dano à terra, nem ao mar, nem às árvores, até que tenhamos marcado na fronte os servos do nosso Deus”.
Essa ordem do Anjo lembra-nos que aqueles que procuram o Senhor, os que se deixam purificar no sangue vertido de Deus feito homem (representado na água do Batismo), recebem na fronte (para se tornar visível) a marca de filhos, de herdeiros; o selo de Deus, o selo do Espírito.
E o vidente, tornado ouvinte, escutou o número dos que foram marcados: cento e quarenta e quatro mil, de todas as tribos dos filhos de Israel – este número simbólico de 144 mil (formado por números sagrados de totalidade: 12 mil por cada uma das 12 tribos; ou 12 apóstolos x 12 mil) é o da totalidade dos filhos de Israel que se mantiveram na fidelidade ao seu Deus e ao Cristo que os remiu, continuando seu povo a integrar o reino messiânico, que desemboca no dia escatológico, onde se inclui, por mercê de Deus, toda a comunidade cristã, viva ela onde viver, porque herdeira das promessas e dos bens messiânicos e escatológicos.
Mas este vidente/ouvinte, testemunha das maravilhas de Deus e da caminhada do seu povo para a escatologia alargou a sua visão e ampliou a sua audição para contemplar “a multidão imensa, que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas. Todos estavam de pé, diante do trono e na presença do Cordeiro (Jesus Cristo, o divino Alfa e Ómega, o perfeito “éscaton”, como é o perfeito “arque”), revestidos de túnicas brancas e com palmas na mão. É a Igreja militante que, mediante a sua condição de Igreja purgante, se torna Igreja triunfante, com os mártires na vanguarda. E clamavam em alta voz a saudação a Deus (o divino Grande Ancião) e ao seu Cordeiro:
A salvação ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro”.
Todos os Anjos (os espíritos celestes que servem a Deus e se incumbem de mensagens e missões da Divindade para os homens) formavam círculo em volta do trono, dos Anciãos e dos quatro Seres Vivos. Prostraram-se diante do trono, de rosto por terra, e adoraram a Deus, dizendo em doxologia:
Ámen! A bênção e a glória, a sabedoria e a ação de graças, a honra, o poder e a força ao nosso Deus, pelos séculos dos séculos. Ámen!”.
Um dos Anciãos tomou a palavra e interpelou o vidente: “Esses que estão vestidos de túnicas brancas, quem são e de onde vieram?”. E o vidente respondeu: “Meu Senhor, vós é que o sabeis”. E o Ancião, que de interpelante passou a profeta ou porta-voz do Altíssimo, declarou:
São os que vieram da grande tribulação, os que lavaram as túnicas e as branquearam no sangue do Cordeiro”.
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A grande tribulação de que fala o texto será certamente a prova escatológica antecipada por Daniel (Dn 12,1: surgirá Miguel, o grande chefe, o protetor dos filhos do seu povo. Será época de tal desolação, como jamais houve igual desde que as nações existem até àquele momento. Então, entre os filhos do teu povo, serão salvos todos aqueles que se acharem inscritos no livro), relacionada com o Dia do Senhor, de que falam também outros profetas. Aqui, será o longo e intenso tempo das perseguições a que foram sujeitos – e continuam a sê-lo – os cristãos.
As primeiras perseguições tinham feito destruições cruéis nas comunidades cristãs, ainda tão jovens. A questão que se levantava era: Iriam desaparecer estas comunidades, acabadas de fundar? E as visões do apóstolo ou profeta cristão trazem uma mensagem de esperança na provação, mas veiculada por uma linguagem codificada, que evoca Roma, perseguidora dos cristãos, sem a nomear diretamente, aplicando-lhe o qualificativo de Babilónia, qualificativo aplicável à onda das perseguições organizadas dos tempos históricos e dos atuais, muitas delas de índole terrorista. E a revelação proclamada é a da vitória do Cordeiro, que paradoxalmente fora imolado. Mas é o Cordeiro da Páscoa definitiva, o Ressuscitado, que transformou o caminho de morte em caminho de vida para todos aqueles que o seguem, em particular pelo martírio. E os mártires, tão numerosos, participam doravante no seu triunfo, numa festa eterna.
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A perícopa da 1.ª Carta de João assegura que somos efetivamente filhos de Deus mercê do admirável amor que o Pai nos consagrou em nos chamar seus filhos. E, garante que, se o mundo não nos reconhece como filhos de Deus, é porque O não conheceu a Ele.
E o texto joânico recorda-nos que a Vida divina de filhos de Deus, que se manifestará no final da vida, já está presente em nós desde agora. Desde o nosso batismo, somos chamados filhos de Deus e o nosso futuro tem a marca da eternidade e da santidade. O texto reforça esta mensagem de esperança, que responde às nossas interrogações sobre o destino dos defuntos: Que virão a ser? Como sabê-lo, pois desapareceram dos nossos olhos? E nós próprios, que viremos a ser? A resposta é uma dedução absolutamente lógica: se Deus, no seu imenso amor, faz de nós seus filhos, não nos pode abandonar. Ora, em Jesus, vemos já qual o futuro a nos conduz a pertença à família divina: seremos semelhantes a Ele, vê-Lo-emos tal como Ele é. E todo aquele que tem n’Ele esta esperança purifica-se a si mesmo, para ser puro, como ele é puro.
E esta pureza joânica da Carta liga-se perfeitamente à pureza das túnicas brancas do Apocalipse branqueadas no sangue do Cordeiro mártir. Ligamo-nos a Ele pelo batismo de água e/ou pelo batismo de sangue. E esta pureza remete para a pureza das bem-aventuranças, não assente na pureza ritual exterior imposta na Lei, mas sobretudo na do coração apregoada pelos profetas. Os puros de coração, que são filhos de Deus, mercê da bondade divina e da sua capacidade em fazer a paz, verão a Deus na sua luz e perfeição. Trata-se de uma pureza de coração, dom de Deus, que parte da limpidez do olhar e se reflete no olhar com que se olham os mistérios de Deus e a beleza do mundo, mas é também uma pureza que se ganha, constrói e cultiva.
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E estamos catapultados para o Evangelho das bem-aventuranças (pórtico do Sermão da Montanha, em Mateus) se quisermos, como discípulos, aproximar-nos de Jesus, que subiu ao monte e nos fala sentado, não com arrogância dos poderosos, mas com doçura e simplicidade (vd Mt 5,1-2).
Jesus apresenta a proposta das Bem-Aventuranças, como a melhor via para a Santidade. Cristo diz a palavra Bem-aventurados ou Felizes oito vezes com os verbos na 3.ª pessoa do singular e uma vez na 2.ª do plural endereçada diretamente aos discípulos. Vejamos:
Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos Céus; os humildes, porque possuirão a terra; os que choram, porque serão consolados; os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados; os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia; os puros de coração, porque verão a Deus; os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus; e os que sofrem perseguição por amor da justiça, porque deles é o reino dos Céus. Mas Bem-aventurados sereis, “quando, por minha causa, vos insultarem, vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós. Alegrai-vos e exultai, porque é grande nos Céus a vossa recompensa”. (Sublinhei os tipos de bem-aventurados e coloquei a negrito as expressões de recompensa).
A posse do reino dos Céus é para os pobres voluntários e não só à força e para os perseguidos, não por motivos políticos ou por teimosia pessoal, mas por amor da justiça e do Evangelho. Ver a Deus e ser chamado de filho de Deus são atributos dos puros de coração (que olham o mundo com olhar de criança e não de malícia) e para os que fazem a paz, respetivamente; a posse da terra, a consolação e a saciedade serão apanágio respetivamente dos mansos ou humildes, dos que choram e dos famintos e sedentos de justiça; e a misericórdia será atributo dos que usam de misericórdia para com todo aquele que se constitui em próximo pela exploração, necessidade, pela marginalização, roubo da dignidade, abandono ou fragilidade. Porém, tudo isto deverá coincidir harmoniosamente na pessoa do discípulo de Cristo; e a Igreja dos discípulos tem de ser mais a Igreja das bem-aventuranças que a dos 1752 cânones do Código de Direito Canónico e legislação complementar ou que a dos 1546 cânones do CODEX CANONUM ECCLESIARUM ORIENTALIUM e legislação complementar.
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As Bem-aventuranças revelam a misteriosa realidade da vida em Deus, iniciada no Batismo. Aos olhos do mundo, os servidores de Deus sofrem, efetivamente, formas de morte: pobreza, humildade, aceitação das provações (os que choram) ou privações (fome e sede) de justiça, simplicidade, perseguição, pacificidade, reconciliação e misericórdia, num mundo de violência e de lucro... Tudo isso aparece como não rentável, votado ao fracasso, à morte. Mas que pensa Cristo? Pelo contrário, proclama felizes a todos os seus amigos – os que O seguiram, se sentem filhos de Deus, beberam das águas da salvação e querem ser puros como Deus é puro – que o mundo despreza e considera como inúteis, descartáveis ou mortos, e consola-os, alimenta-os, chama-os filhos de Deus, introdu-los no Reino dos Céus e na Terra Prometida.
Ora, a Solenidade de Todos os Santos abre-nos assim o espírito e o coração às consequências da Ressurreição. O que se passou em Jesus realizou-se também nos seus bem-amados, os nossos antepassados na fé, e diz-nos igualmente respeito: sob as folhas mortas, sob a pedra do túmulo, a vida continua, misteriosa, para se revelar no Grande Dia, quando chegar o fim dos tempos. Para Jesus, foi o terceiro dia; para os seus amigos, isso acontecerá mais tarde.
É a festa da Vida, mesmo que renascida do turbilhão, dos escombros ou das cinzas, e celebra a plenitude da Vida cristã e a Santidade de Deus manifesta nos seus filhos, os santos da Igreja. Celebra como que, em antecipação e em comunhão com a liturgia celeste, a vitória dos irmãos que superaram “a grande tribulação” e estão marcados com o selo do Deus vivo; os que vivem para sempre diante de Deus, entre os quais, se encontram os nossos entes queridos já falecidos.
A fé é culto à Vida, porque o nosso Deus é um Deus de vivos e, pelo Espírito, nos dá a Vida em Cristo Jesus ressuscitado de entre os mortos. Por isso, esta é a festa do convite total à alegria e à esperança, que nasce das profundezas da Vida, da aspiração da felicidade sem ocaso.
A Fonte da santidade é Deus. E a santidade tem o seu início, crescimento e consumação na graça de Deus, no amor gratuito do Senhor, que derrama o seu Espírito nos nossos corações para que possamos chamá-lo “Paizinho”. A santidade não é, pois, um mero produto do esforço humano que procura alcançar Deus com as suas forças nem tão-pouco resultado automático da graça que paira nos ares, mas efeito da ação de Deus em nós. A santidade tem, assim, duas dimensões: é ação de Deus em nós pelo dom do Espírito Santo; e resposta do cristão a esse dom e presença de Deus. A Santidade manifesta-se como participação na vida de Deus, que se realiza com os meios que a Igreja nos oferece, especialmente através dos Sacramentos. E a morada dos Santos será o Céu, que não é tanto um lugar, mas sobretudo um estado de felicidade na presença e companhia de Deus, dos anjos e dos santos, que supera a nossa imaginação e entendimento:
Nem olhos viram, nem ouvidos escutaram nem o homem pode imaginar o que Deus preparou para aqueles que O amam” (1Cor 2,9). “Agora vemos como num espelho, mas depois veremos face a face” (1Cor 13,12).
A Eternidade não se reduz ao “eterno descanso”, mas é vida ativa e intensa com Deus.
Santo significa que não tem nada de imperfeito, de fraco, de precário. Neste sentido, só Deus é Santo. Porém, por sua graça, imitamo-Lo e participamos da sua Santidade e unimo-nos a todos os irmãos. Esta doutrina era tão viva nos primeiros séculos, que os membros da Igreja não hesitavam em chamar-se “Santos” e a própria Igreja era chamada de “Comunhão dos Santos”. Com efeito, diz o CIC (Catecismo da Igreja Católica) que esta expressão indica, em primeiro lugar, a comum participação de todos os membros da Igreja nas “coisas santas”: “a fé, os Sacramentos, os Carismas e outros dons espirituais” (cf CIC 194). E adiante, refere:
Designa também a comunhão entre as pessoas santas, ou seja, entre as que pela graça estão unidas a Cristo morto e ressuscitado. Alguns são peregrinos na terra; outros, tendo deixado esta vida, estão a purificar-se ajudados também pelas nossas orações; outros já gozam da glória de Deus e intercedem por nós. Todos juntos formamos em Cristo uma só família, a Igreja, para a glória da Trindade.” (CIC 195).
E os santos não são apenas os que estão nos altares, declarados santos pela Igreja – mediante a beatificação e a beatificação e a canonização. São todas as pessoas que vivem unidas a Deus, construindo o bem. São pessoas normais, que no passado e no presente dão testemunho de fidelidade a Cristo; vivem de forma excelente o que é comum a quem segue o Evangelho.
A Festa de hoje pretende homenagear todos os santos, beatificados e canonizados, é certo, mas sobretudo os que permanecem no anonimato ou porque não foram indigitados e examinados para o catálogo das honras dos altares ou porque apenas viveram seguindo Cristo na discrição. E a festa quer apresentar o ideal da santidade como possível hoje a todos e desejado por Deus. Com efeito, todos os fiéis são chamados à Santidade, que é a plenitude da vida cristã e perfeição da caridade e se realiza na união íntima ao Cristo e, Nele, com a Santíssima Trindade (cf CIC 428). Portanto, podemos e devemos ser Santos também nós. Acolhamos o apelo de Deus à Santidade e que os Santos sejam nossos modelos e intercessores nesta caminhada. Não esperemos vir a fazer milagres, pois nem os “santos” canonizados os fazem. É Deus e só Deus que faz milagres. E faz muitos através dos “santos” de altar e faz maravilhas através de nós tantas vezes. E invoquemos todos os santos: Omnes sancti et sanctae Dei, intercedite pro nobis!
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Porém, temos de apostar na pertença à “geração dos que procuram o Senhor” (cf Sl 24/23, 6).
Do Senhor é a terra e o que nela existe, o mundo e quantos nele habitam. Ele a fundou sobre os mares e a consolidou sobre as águas. Quem poderá subir à montanha do Senhor? Quem habitará no seu santuário? O que tem as mãos inocentes e o coração puro, o que não invocou o seu nome em vão. Este será abençoado pelo Senhor e recompensado por Deus, seu Salvador. Esta é a geração dos que O procuram, que procuram a face de Deus. (Sl 24/23, 1-2.3-4ab.5-6).

2017.11.01 – Louro de Carvalho

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