sábado, 4 de novembro de 2017

“Quem é cativo de quem?”

No seu douto artigo de opinião, com pretensões de ciência política e económica, no “Público” de hoje, dia 4 de novembro, sob o título “Portugal: um país cativado pelo Estado”, o excelso colunista João Miguel Tavares faz um símile entre a relação da função pública e António Costa com a relação da escrava Bárbara e Luís de Camões nas endechas “ṹa cativa com quem andava de amores na Índia, chamada Bárbora”. E era a tal escrava “aquela cativa que me tem cativo” – dizia Camões. É pena que Tavares não se tenha dado ao trabalho de produzir com o seu texto umas endechas poeticamente tão cativantes como as de Camões, a que alude, nem tão sábias do ponto de vista económico e atiladas do ponto de vista político como os mais que explorados dos portugueses merecem.
Como é comummente sabido, os Governos elaboram o Orçamento de Estado, que é, depois, no Parlamento, discutido e aprovado na generalidade, discutido e votado na especialidade e, finalmente, sujeito à aprovação global final. Porém, como a sua execução passa por dificuldades – previstas e imprevistas – a governança promove a seu tempo a cativação de verbas num período considerável da reta final do ano económico. E o XXI Governo, o de António Costa, não foge a esta praxe, antes a tem prolongado e intensificado.  
E Tavares vê na origem e causa destas bárbaras cativações a função pública. Só que o perito em humanidade e sociedade tem um conceito alargado de função pública: o conjunto daqueles que por qualquer motivo recebem dinheiro do Estado. E discrimina nesta função pública, “a cativa que o tem cativo [a Costa]: os funcionários, os reformados e os milhões de dependentes do Estado”, que, segundo o articulista, “cativam o Primeiro-Ministro, pois são eles que lhe dão os votos que sustentam o Partido Socialista”, os quais, “no futuro próximo, lhe podem oferecer uma maioria absoluta” (anote-se que o mais próximo segmento aspado vem no texto entre parêntesis), já que nem a vitória lhe deram nas últimas eleições legislativas. Por outro lado, diz João Miguel Tavares que “António Costa está absolutamente cativo deles, pois todos os anos é necessário, na feira orçamental de outubro e novembro, comprar o apoio das corporações que permitem ao PS governar”, sendo que o Primeiro-Ministro “é simultaneamente sequestrador e refém – o cativo que nos tem cativos”. Será que tais corporações são o BE, o PCP e o PEV? Ou serão, os bombeiros, os polícias, os magistrados, os militares, os funcionários do fisco, os professores, os enfermeiros? É que médicos, advogados, arquitetos, engenheiros, contabilistas, padres, frades, economistas, psicólogos e outros, não são, à partida, funcionários públicos…  
***
Face a esta perspetiva de análise, eu gostava de saber como é que o perito em ciências sociais e humanas sabe que são os funcionários públicos e afins que dão ou tiram as maiorias ao Partido Socialista. Cavaco Silva, enquanto Chefe de Governo valorizou os trabalhadores da administração pública, onde até criou corpos especiais, mas as duas maiorias absolutas do PSD cansaram o país; e António Guterres, que valorizou imenso a função pública, não logrou qualquer maioria absoluta. No rescaldo do abandono do poder por Guterres em 2001, quase como Cavaco Silva em 1999, Durão Barroso não conseguiu uma maioria absoluta para o seu partido, embora tenha celebrado um contrato de maioria pós-eleitoral com Paulo Portas, que lhe permitiu governar dois anos, após o que debandou para a presidência da comissão Europeia, deixando a governança em testamento a Santana Lopes, sendo Sampaio o seu testamenteiro, mas que, logo que pôde, deu um piparote na barca desgovernada de Santa/Portas, acolitado por barões socialdemocratas, em cujo painel se inseria Marcelo, comentador e professor.
E, se Durão começou a hostilizar os funcionários públicos, entre os quais na hostilização barrosã sobressaíam os professores, Sócrates, com maioria absoluta, hostilizou até ao expoente máximo os funcionários públicos, com destaque especial para professores e magistrados, a ponto de a sua Ministra da Educação se ter resignado a perder os professores em troca de ter ganho os pais. E terão sido os funcionários públicos que lhe retiraram a maioria absoluta em 2009? Os PEC, o Memorando de entendimento com a troika resultaram do afastamento dos funcionários da política socratista? Não tinha sido a banca, as farmácias que viram nos supermercados poderosos concorrentes comerciais, as ordens profissionais a retirar apoios à governação, bem como as supostas intrigas Belém/São Bento (Ai as escutas e o estatuto político-administrativo dos Açores!)?
***
Se lermos a página 6 do JN sobre a “votação do orçamento”, talvez tenhamos que desmentir João Miguel Tavares. Na verdade, o diário portuense, coloca à cabeça das medidas essenciais a proteção da classe média com os novos escalões do IRS. Esta classe média, em que estão incluídos os funcionários públicos, foi barbaramente fustigada por Sócrates e ainda mais barbaramente espezinhada por Passos Coelho. Mas a sua maioria não é feita de funcionários públicos, muitos (a maior parte) dos quais têm um vencimento igual ou inferior a 620 euros. Por outro lado, a questão da derrama estadual do IRC, cujo aumento não consta do documento orçamental entregue no Parlamento, embora PCP e BE o pretendam em sede de discussão na especialidade, como forma se financiamento do aumento do subsídio do desemprego, não tem a ver a com a função pública (os grandes empresários também cativam Costa e muitos que fogem aos impostos também aprisionam o Governo e indiretamente os cidadãos).  
A atualização das pensões, embora seja um encargo orçamental, não significa privilégio para a função pública. Só os reformados das forças armadas e da CGD é que são advenientes de serviços do Estado. Todos os outros reformados vêm do regime contributivo do trabalho privado. Os aposentados e jubilados (termo aplicado alguns magistrados pensionistas) de funções públicas são um número pequeno em comparação com os demais e todos são provenientes do regime contributivo. Mesmo os bancários reformados recebem pensões do Estado, porque se acertou a transferência dos fundos para o Estado. E as pensões sociais são um encargo do Estado por motivos de justiça social, não por pressão nem a benefício dos funcionários públicos.
O aumento dos subsídios de desemprego ou de baixa médica não tem nada a ver com a função pública. Os funcionários públicos, por norma, não têm subsídio de desemprego: ou são exonerados por razões disciplinares ou por vontade própria, entram em programas de rescisão por mútuo acordo ou entram na requalificação por extinção do posto de trabalho.
A simplificação referente aos recibos verdes afeta os trabalhadores independentes, sendo poucos os que são trabalhadores para o Estado.
O atinente ao faseado descongelamento de carreiras e pagamento de horas extraordinárias, embora venham trazer algum benefício, não trazem a merecida justiça. Tirar dinheiro e regalias sociais ao funcionário público aconteceu dum momento para o outro. Acharam bem os observadores. A reposição vem faseada, nunca vem na íntegra. E os observadores acham muito! Não há dinheiro, dizem! Mas há, houve e haverá para salvar bancos nacionais e europeus e pagar desmandos dos gestores públicos e privados…   
***
Porém, Tavares ironiza de forma grotesca:
“Talvez a Porto Editora, numa das suas eleições (poderia dizer edições concursais), pudesse considerar ‘cativo’ como a Palavra do quadriénio 2015-2019. Nenhuma outra explica melhor o momento atual da política portuguesa. Desde logo, tudo indica que vai continuar a política radical de cativações, que depaupera a qualidade dos serviços do Estado de ano para ano.”.
E, para ilustrar o vampirismo da função pública, dá o exemplo da Cinemateca Nacional quando estava “com profundíssimas restrições orçamentais”, em que “o dinheiro chegava para pagar os ordenados dos trabalhadores, mas não para trazer filmes do estrangeiro e organizar novos ciclos”. E, verificando que então “a Cinemateca cumpria as obrigações para com os seus funcionários, mas não para com o seu público”, conclui:
Aquela Cinemateca é agora Portugal: o Estado cresce (novas contratações), promove quem nele trabalha (descongelamento das carreiras), trabalha menos (regresso às 35 horas), mas depois presta um serviço cada vez pior nos hospitais, nas escolas, na proteção civil, deixa morrer 110 pessoas nos incêndios, prejudica doentes oncológicos e diabéticos – porque, claro está, o dinheiro não dá para tudo.”.
Tavares não sabe que a redução do horário semanal do trabalho para 35 horas no Estado aconteceu porque este alegava não poder pagar mais pelo trabalho prestado, como também não sabe que já em 1976 se discutia com pertinência que certos turnos de trabalho público ou privado, em vez de serem de oito horas, deveriam de seis, em nome da dignidade do trabalhador e da eficácia. O trabalhador deve ser consciente, mas não escravo. E há trabalho escravo pela reduzida remuneração, pela sobrecarga e excesso e pelas outras condições específicas.
Só a estupidez fixista não permitirá admitir que uma situação de flagelo e mortes em série não implicará transtorno orçamental. É, pois, ofensivo dizer que perante centenas de cenários de destruição e morte o orçamento será o obstáculo. Para isso não preciso de Governo nem de economistas nem de gestores. E, dado o que se passou e por mais falhas e negligências que se registem, no momento dos incêndios não era possível fazer muito diferente. Não se fez a montante, tem de se fazer a jusante para que, a montante no próximo ano, as coisas se façam de outro modo e não voltem a acontecer desgraças como a deste ano.
É óbvio que há que fazer opções políticas. Porém, nunca “a primeira função do Estado socialista é ocupar-se dos seus funcionários”, como diz Tavares, “seja em Portugal ou na União Soviética”, que já não existe (Ainda não deu conta!). Contudo, se o País quer ter uma boa administração pública, tem de ser justo e pagar-lhe o justo salário e zelar pela sua boa saúde. E não é justo atirar para cima dos funcionários públicos nem os vencimentos chorudos acima da norma nem os ordenados de miséria a que temos de nos habituar, como não é justo onerar em excesso a classe média com impostos quando muitos que podem pagar fogem ao fisco, muitos dos quais com responsabilidades política e sociais. Não é o funcionário médio que põe os seus dinheiros em offshores.
***
De resto – e Tavares sabe-o – os grandes predadores do Orçamento são a dívida soberana (pública e empresarial cuja responsabilidade o Estado tem de assumir), a banca falida e, em certa medida, os lesados, bem como as instituições europeias cujas regras são barbaramente constritivas. A Bárbora de Camões não são os funcionários públicos. Estes estão a ser é as bestas de carga sobre as quais todos querem cavalgar!

2017.11.04 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário