No seu
douto artigo de opinião, com pretensões de ciência política e económica, no “Público” de hoje, dia 4 de novembro, sob
o título “Portugal: um país cativado pelo
Estado”, o excelso colunista João Miguel Tavares faz um símile entre a relação
da função pública e António Costa com a relação da escrava Bárbara e Luís de Camões
nas endechas “ṹa cativa com quem andava
de amores na Índia, chamada Bárbora”. E era a tal escrava “aquela cativa
que me tem cativo” – dizia Camões. É pena que Tavares não se tenha dado ao
trabalho de produzir com o seu texto umas endechas poeticamente tão cativantes
como as de Camões, a que alude, nem tão sábias do ponto de vista económico e
atiladas do ponto de vista político como os mais que explorados dos portugueses
merecem.
Como é comummente
sabido, os Governos elaboram o Orçamento de Estado, que é, depois, no Parlamento,
discutido e aprovado na generalidade, discutido e votado na especialidade e, finalmente,
sujeito à aprovação global final. Porém, como a sua execução passa por
dificuldades – previstas e imprevistas – a governança promove a seu tempo a
cativação de verbas num período considerável da reta final do ano económico. E o
XXI Governo, o de António Costa, não foge a esta praxe, antes a tem prolongado
e intensificado.
E Tavares
vê na origem e causa destas bárbaras cativações a função pública. Só que o perito
em humanidade e sociedade tem um conceito alargado de função pública: o
conjunto daqueles que por qualquer motivo recebem dinheiro do Estado. E discrimina
nesta função pública, “a cativa que o tem cativo [a
Costa]: os
funcionários, os reformados e os milhões de dependentes do Estado”, que,
segundo o articulista, “cativam o Primeiro-Ministro, pois são eles que lhe dão
os votos que sustentam o Partido Socialista”, os quais, “no futuro próximo, lhe
podem oferecer uma maioria absoluta” (anote-se que o mais próximo
segmento aspado vem no texto entre parêntesis), já que nem a vitória lhe deram nas últimas
eleições legislativas. Por outro lado, diz João Miguel Tavares que “António
Costa está absolutamente cativo deles, pois todos os anos é necessário, na
feira orçamental de outubro e novembro, comprar o apoio das corporações que
permitem ao PS governar”, sendo que o Primeiro-Ministro “é simultaneamente
sequestrador e refém – o cativo que nos tem cativos”. Será que tais corporações
são o BE, o PCP e o PEV? Ou serão, os bombeiros, os polícias, os magistrados,
os militares, os funcionários do fisco, os professores, os enfermeiros? É que
médicos, advogados, arquitetos, engenheiros, contabilistas, padres, frades, economistas,
psicólogos e outros, não são, à partida, funcionários públicos…
***
Face a esta
perspetiva de análise, eu gostava de saber como é que o perito em ciências
sociais e humanas sabe que são os funcionários públicos e afins que dão ou
tiram as maiorias ao Partido Socialista. Cavaco Silva, enquanto Chefe de Governo
valorizou os trabalhadores da administração pública, onde até criou corpos
especiais, mas as duas maiorias absolutas do PSD cansaram o país; e António
Guterres, que valorizou imenso a função pública, não logrou qualquer maioria
absoluta. No rescaldo do abandono do poder por Guterres em 2001, quase como
Cavaco Silva em 1999, Durão Barroso não conseguiu uma maioria absoluta para o
seu partido, embora tenha celebrado um contrato de maioria pós-eleitoral com
Paulo Portas, que lhe permitiu governar dois anos, após o que debandou para a
presidência da comissão Europeia, deixando a governança em testamento a Santana
Lopes, sendo Sampaio o seu testamenteiro, mas que, logo que pôde, deu um
piparote na barca desgovernada de Santa/Portas, acolitado por barões socialdemocratas,
em cujo painel se inseria Marcelo, comentador e professor.
E, se
Durão começou a hostilizar os funcionários públicos, entre os quais na
hostilização barrosã sobressaíam os professores, Sócrates, com maioria
absoluta, hostilizou até ao expoente máximo os funcionários públicos, com
destaque especial para professores e magistrados, a ponto de a sua Ministra da Educação
se ter resignado a perder os professores em troca de ter ganho os pais. E terão
sido os funcionários públicos que lhe retiraram a maioria absoluta em 2009? Os PEC,
o Memorando de entendimento com a troika resultaram do afastamento dos
funcionários da política socratista? Não tinha sido a banca, as farmácias que
viram nos supermercados poderosos concorrentes comerciais, as ordens
profissionais a retirar apoios à governação, bem como as supostas intrigas Belém/São
Bento (Ai
as escutas e o estatuto político-administrativo dos Açores!)?
***
Se lermos
a página 6 do JN sobre a “votação do orçamento”,
talvez tenhamos que desmentir João Miguel Tavares. Na verdade, o diário
portuense, coloca à cabeça das medidas essenciais a proteção da classe média
com os novos escalões do IRS. Esta classe média, em que estão incluídos os funcionários
públicos, foi barbaramente fustigada por Sócrates e ainda mais barbaramente espezinhada
por Passos Coelho. Mas a sua maioria não é feita de funcionários públicos, muitos
(a
maior parte) dos
quais têm um vencimento igual ou inferior a 620 euros. Por outro lado, a questão
da derrama estadual do IRC, cujo aumento não consta do documento orçamental entregue
no Parlamento, embora PCP e BE o pretendam em sede de discussão na
especialidade, como forma se financiamento do aumento do subsídio do desemprego,
não tem a ver a com a função pública (os grandes empresários
também cativam Costa e muitos que fogem aos impostos também aprisionam o
Governo e indiretamente os cidadãos).
A atualização
das pensões, embora seja um encargo orçamental, não significa privilégio para a
função pública. Só os reformados das forças armadas e da CGD é que são
advenientes de serviços do Estado. Todos os outros reformados vêm do regime
contributivo do trabalho privado. Os aposentados e jubilados (termo
aplicado alguns magistrados pensionistas)
de funções públicas são um número pequeno em comparação com os demais e todos
são provenientes do regime contributivo. Mesmo os bancários reformados recebem
pensões do Estado, porque se acertou a transferência dos fundos para o Estado. E
as pensões sociais são um encargo do Estado por motivos de justiça social, não por
pressão nem a benefício dos funcionários públicos.
O aumento
dos subsídios de desemprego ou de baixa médica não tem nada a ver com a função
pública. Os funcionários públicos, por norma, não têm subsídio de desemprego: ou
são exonerados por razões disciplinares ou por vontade própria, entram em
programas de rescisão por mútuo acordo ou entram na requalificação por extinção
do posto de trabalho.
A simplificação
referente aos recibos verdes afeta os trabalhadores independentes, sendo poucos
os que são trabalhadores para o Estado.
O atinente
ao faseado descongelamento de carreiras e pagamento de horas extraordinárias,
embora venham trazer algum benefício, não trazem a merecida justiça. Tirar dinheiro
e regalias sociais ao funcionário público aconteceu dum momento para o outro. Acharam
bem os observadores. A reposição vem faseada, nunca vem na íntegra. E os
observadores acham muito! Não há dinheiro, dizem! Mas há, houve e haverá para
salvar bancos nacionais e europeus e pagar desmandos dos gestores públicos e
privados…
***
Porém, Tavares
ironiza de forma grotesca:
“Talvez a Porto
Editora, numa das suas eleições (poderia dizer edições concursais), pudesse
considerar ‘cativo’ como a Palavra do quadriénio 2015-2019. Nenhuma outra explica
melhor o momento atual da política portuguesa. Desde logo, tudo indica que vai
continuar a política radical de cativações, que depaupera a qualidade dos
serviços do Estado de ano para ano.”.
E, para ilustrar
o vampirismo da função pública, dá o exemplo da Cinemateca Nacional quando
estava “com profundíssimas restrições orçamentais”, em que “o dinheiro chegava
para pagar os ordenados dos trabalhadores, mas não para trazer filmes do
estrangeiro e organizar novos ciclos”. E, verificando que então “a Cinemateca
cumpria as obrigações para com os seus funcionários, mas não para com o seu
público”, conclui:
“Aquela Cinemateca é agora Portugal: o Estado cresce (novas
contratações), promove quem nele trabalha (descongelamento das carreiras),
trabalha menos (regresso às 35 horas), mas depois presta um serviço cada vez
pior nos hospitais, nas escolas, na proteção civil, deixa morrer 110 pessoas
nos incêndios, prejudica doentes oncológicos e diabéticos – porque, claro está,
o dinheiro não dá para tudo.”.
Tavares não
sabe que a redução do horário semanal do trabalho para 35 horas no Estado aconteceu
porque este alegava não poder pagar mais pelo trabalho prestado, como também
não sabe que já em 1976 se discutia com pertinência que certos turnos de
trabalho público ou privado, em vez de serem de oito horas, deveriam de seis,
em nome da dignidade do trabalhador e da eficácia. O trabalhador deve ser
consciente, mas não escravo. E há trabalho escravo pela reduzida remuneração,
pela sobrecarga e excesso e pelas outras condições específicas.
Só a
estupidez fixista não permitirá admitir que uma situação de flagelo e mortes em
série não implicará transtorno orçamental. É, pois, ofensivo dizer que perante
centenas de cenários de destruição e morte o orçamento será o obstáculo. Para
isso não preciso de Governo nem de economistas nem de gestores. E, dado o que
se passou e por mais falhas e negligências que se registem, no momento dos incêndios
não era possível fazer muito diferente. Não se fez a montante, tem de se fazer
a jusante para que, a montante no próximo ano, as coisas se façam de outro modo
e não voltem a acontecer desgraças como a deste ano.
É óbvio
que há que fazer opções políticas. Porém, nunca “a primeira função do Estado
socialista é ocupar-se dos seus funcionários”, como diz Tavares, “seja em
Portugal ou na União Soviética”, que já não existe (Ainda
não deu conta!). Contudo,
se o País quer ter uma boa administração pública, tem de ser justo e pagar-lhe
o justo salário e zelar pela sua boa saúde. E não é justo atirar para cima dos funcionários
públicos nem os vencimentos chorudos acima da norma nem os ordenados de miséria
a que temos de nos habituar, como não é justo onerar em excesso a classe média
com impostos quando muitos que podem pagar fogem ao fisco, muitos dos quais com
responsabilidades política e sociais. Não é o funcionário médio que põe os seus
dinheiros em offshores.
***
De resto
– e Tavares sabe-o – os grandes predadores do Orçamento são a dívida soberana (pública
e empresarial cuja responsabilidade o Estado tem de assumir), a banca falida e, em certa
medida, os lesados, bem como as instituições europeias cujas regras são
barbaramente constritivas. A Bárbora de Camões não são os funcionários públicos.
Estes estão a ser é as bestas de carga sobre as quais todos querem cavalgar!
2017.11.04 –
Louro de Carvalho
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