terça-feira, 28 de novembro de 2017

O Evangelho de São Marcos no Ano B

O próximo dia 3 de dezembro, primeiro domingo do Advento, marca o início do Ano litúrgico, tendo o ano litúrgico anterior sido encerrado com a Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo. Como é o Ano B, toma-se geralmente como leitura do Evangelho na celebração litúrgica da Eucaristia dominical o texto de São Marcos.
Apesar de escrito num grego simples e mesmo popular, o texto reveste-se de intenso encanto literário, o que desmente a ideia de alguns que veem neste Evangelho uma simples manta de retalhos com base em relatos soltos de que Marcos seria herdeiro e fiel depositário.
A tradição antiga, que remonta ao séc. II, atribui a obra do autor do segundo Evangelho canónico a Marcos, identificado com João Marcos, filho de Maria, em cuja casa os cristãos se reuniam para orar (vd At 12,12). Com Barnabé, seu primo, Marcos acompanha Paulo durante algum tempo na primeira viagem missionária (vd At 13,5.13; 15,37.39) e depois aparece com ele, prisioneiro em Roma (vd Cl 4,10), mas liga-se mais a Pedro, que o trata por ‘meu filho’ na saudação final da sua 1.ª Carta (1 Pe5,13). Marcos terá escrito o Evangelho pouco antes da destruição de Jerusalém, que aconteceu no ano 70 e talvez logo após o Apóstolo Paulo ser martirizado por volta de 64 d.C.
Apesar de não estar entre os discípulos originais de Jesus Cristo, Marcos ter-se-á convertido posteriormente e tornou-se assistente do Apóstolo Pedro e pode ter escrito seu Evangelho com base no que aprendeu com ele.
Marcos e sua mãe, Maria, viveram em Jerusalém; sua casa era um local de reunião dos primeiros cristãos (vd At 12,12). Marcos deixou Jerusalém para ajudar Barnabé e Saulo (Paulo) em sua primeira jornada missionária (vd At 12,25; 13,4-6.42-48). Mais tarde, Paulo escreveu que Marcos estava com ele em Roma (vd Cl 4,10; F1m 1,24) e elogiou Marcos como companheiro, que era “muito útil para o ministério” (2Tm 4,11). Pedro referiu-se a ele como “meu filho Marcos” (1Pe 5,13), sugerindo a proximidade do seu relacionamento.
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O livro, de redação tersa e ritmo veloz com frases carregadas de grande dramatismo, reflete a catequese que Pedro, testemunha presencial dos acontecimentos, espontâneo e atento, ministrava à sua comunidade em Roma. É o menos extenso dos quatro livros do Evangelho e situa-se no Cânon entre os dois mais extensos Mateus e Lucas e a seguir a Mateus, o de maior uso na Igreja. Até ao século XIX, Marcos foi pouco estudado e comentado, para não dizer praticamente esquecido. Santo Agostinho anacronicamente considerava-o como um resumo de Mateus. Agora, é comum afirmar-se que todos os outros Evangelhos, sobretudo os Sinóticos, supõem e utilizaram mais ou menos o texto de Marcos, assim como o seu esquema histórico-geográfico da vida pública de Jesus: Galileia, Viagem para Jerusalém, Jerusalém.
A investigação aprofundada desde o século XIX, em torno da origem e da génese dos Evangelhos, trouxe Marcos à luz da ribalta; hoje, é geralmente considerado o mais antigo dos quatro, embora se creia que antes circulavam em folhas soltas relatos e extratos de discursos escritos em aramaico tradicionalmente tidos como “os ditos do Senhor”. Na verdade, a obra do evangelista supõe uma fase mais primitiva da reflexão da Igreja acerca do Acontecimento Cristo, que a originou; e só ele conserva o esquema da mais antiga pregação apostólica, sintetizada em Atos 1,22: começa com o baptismo de João (1,4) e termina com a Ascensão do Senhor (16,19).
Inicia-se repentina e dramaticamente e mantém um ritmo rápido, relatando acontecimentos numa sucessão muito veloz. Marcos usa com frequência os termos logo e imediatamente, devido ao efeito do ritmo rápido e de ação. Apesar de mais de 90% do material de Marcos ser encontrado nos relatos de Mateus e Lucas, os relatos de Marcos incluem detalhes adicionais que nos ajudam a apreciar mais a compaixão do Salvador e a reação das pessoas ao Seu redor (vd Mc 9,14-27 e Mt 17, 14-18). Por exemplo, Marcos relatou a receção ampla e entusiástica do Salvador pelo povo da Galileia e em outros locais no início de Seu ministério (vd Mc 1,32-33.45; 2,2;3,7-9; 4,1). E narrou cuidadosamente a reação negativa dos escribas e dos fariseus, cuja oposição rapidamente passou de apenas ter pensamentos céticos (vd Mc 2,6-7) para conspirar a fim de destruir Jesus (vd Mc 3,6).
Entre os temas importantes vêm as questões sobre quem era Jesus e quem entendeu a sua identidade, bem como o papel do discípulo (diferente da multidão, embora recrutado de entre as mais pessoas) como alguém que precisa de “tomar a sua cruz e seguir Jesus” (Mc 8,34). Ademais, Marcos é o único a relatar a parábola da semente que cresceu sozinha (vd Mc 4,26-27), a cura dum surdo na região de Decápolis (vd Mc 7,31-37) e a cura gradativa dum cego em Betsaida (vd Mc 8,22-26).
Este Evangelho contém pormenores – como citações traduzidas do aramaico, expressões latinas e explicações dos costumes judeus – que parecem direcionados a um público de romanos e pessoas de outras nações pagãs, bem como os que se converteram ao cristianismo, mais provavelmente em Roma e por todo o Império Romano. Muitos creem que Marcos pode ter estado com Pedro em Roma durante o período marcado por duras provas de fé para muitos membros da Igreja que residiam em diversos locais do Império Romano.
Um terço deste Evangelho relata os ensinamentos e as experiências do Salvador durante a última semana da sua vida terrena. Marcos prestou testemunho de que o sofrido Filho de Deus finalmente triunfou sobre o mal, o pecado e a morte – testemunho que significou que os seguidores do Salvador não precisavam de ter medo, porque, ao enfrentarem perseguição, provações ou mesmo a morte, estariam a seguir o Mestre. Deviam perseverar com confiança, sabendo que o Senhor os ajudaria e que a suas promessas serão sempre cumpridas.

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Evidenciando alguma pobreza de vocabulário e uma sintaxe menos cuidada, Marcos é parcimonioso em discursos, apresenta apenas dois discursos de fôlego: o capítulo das parábolas (cap. 4) e o discurso escatológico (cap. 13). Mas é exímio na arte de contar, apresentando muitas narrações – o que faz com nítido realismo e sentido do concreto, enriquecendo os relatos com pormenores e dando-lhes vida e cor. A este respeito, são típicos os casos do possesso de Gerasa, da mulher com fluxo de sangue e da filha de Jairo, no cap. 5. Presta especial atenção às palavras textuais de Jesus em aramaico, por ex. “Talitha qûm” (5,42) e “Eloí, Eloí, lemá sabachtáni” (15,34). E é de referir o dia-tipo da atividade de Jesus, descrito na assim chamada “jornada de Cafarnaúm” (1,21-34). De entre as perícopas e simples incisos próprios de Marcos, menciona-se o único texto bíblico em que Jesus aparece como “o Filho de Maria” (6,3), ao contrário dos outros que falam de Maria, mãe de Jesus.
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Pode dizer-se, porventura de uma forma demasiado simples, que Marcos se torna espectador com os leitores acompanhando-os na realidade ora normal ora surpreendente. Como eles, acompanha e vive o drama de Jesus de Nazaré, desenrolado em dois atos, coincidentes com as duas partes deste Evangelho. Ao longo do primeiro, vai-se perguntando: Quem é Ele? E Pedro responderá por si e pelos outros, de forma direta e categórica: “Tu és o Messias!” (8,29). O segundo ato pode esquematizar-se com pergunta-resposta: De que maneira se realiza Ele, como Messias? Morrendo e ressuscitando (8,31; 9,31; 10,33-34).
Este Evangelho apresenta, assim, uma Cristologia simples e acessível: Jesus de Nazaré é verdadeiramente o Messias que, pela Morte e Ressurreição, demonstrou, como o reconheceu o centurião romano, ser verdadeiramente o Filho de Deus (15,39) que a todos possibilita a salvação. “Pois também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por todos” (10,45). Foi esta a finalidade da sua encarnação.
Este plano é desenvolvido ao longo das 5 secções em que podemos dividir o Evangelho de Marcos, segundo a Bíblia dos Capuchinhos: I. Preparação do ministério de Jesus (1,1-13); II. Ministério na Galileia (1,14-7,23); III. Viagens por Tiro, Sídon e a Decápolis (7,24-10,52); IV. Ministério em Jerusalém (11,1-13,37); V. Paixão e Ressurreição de Jesus: (14,1-16,20).
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Ou de outra maneira:
Do cap. 1 ao cap. 4, Jesus é batizado por João Batista e começa a pregar, chama discípulos e realiza milagres. Conforme a oposição contra Ele aumentava, ensinava mais por parábolas.
Do cap. 5 ao cap. 7, Jesus continua a realizar muitos milagres, demonstrando a sua compaixão pelas pessoas. Depois que João Batista é morto, Jesus alimenta mais de cinco mil pessoas e caminha sobre as águas. E ensina contra falsas tradições.
Do cap. 8 ao cap. 10,  Jesus Cristo continua a realizar milagres. Pedro testifica que Jesus é o Cristo. O Salvador profetiza três vezes sobre o seu sofrimento, a sua Morte e a sua Ressurreição, mas os discípulos não entendem plenamente o significado. Ele ensina-os sobre a humildade e o serviço exigidos aos discípulos.
E do cap. 1 ao cap. 4,  durante a última semana da sua vida terrena, o Salvador entra em Jerusalém, ensina os discípulos, sofre no Getsémani e é crucificado. Por fim, Jesus Cristo ressuscita e sobe aos Céus.
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Tal como os outros evangelistas, Marcos apresenta-nos a pessoa de Jesus e o grupo dos discípulos como primeiro modelo da Igreja.
Em relação ao Jesus Cristo, mais do que em qualquer outro Evangelho, Jesus, “Filho de Deus” (1,1.11; 9,7; 15,39), revela-se profundamente humano, de contrastes por vezes desconcertantes: é distante (4,38-39) e acessível (8,1-3), repele (8,12-13) e acarinha (10,16); impõe “segredo” acerca da sua pessoa e do bem que faz e manda apregoar o benefício recebido; manifesta limitações e até aparenta ignorância (13,32). É verdadeiramente o “Filho do Homem”, título da sua preferência. Desta sorte, a pessoa de Jesus torna-se misteriosa, porque encerra em si, conjunta e simultaneamente, um homem verdadeiro e um Deus verdadeiro. Vai residir aqui a dificuldade da sua aceitação por parte das multidões que O seguem e mesmo por parte dos discípulos.
Na primeira parte deste Evangelho (1,14-8,30), Jesus mostra-se mais preocupado com o acolhimento do povo, atende às suas necessidades e ensina; na segunda parte (8,31-13,37) volta-se preferencialmente para os Apóstolos que escolheu (3,13-19): e com sábia pedagogia vai-os formando, revelando-lhes progressivamente o plano da salvação (10,29-30.42-45) e introduzindo-os na intimidade do Pai (11,22-26).
Quanto ao Discípulo de Jesus, este Jesus, tão simples e humano, é também muito exigente para com os discípulos. Desde o início da sua pregação (1,14), arrasta as multidões atrás de si e alguns discípulos seguem-no (1,16-22). Porém, após a escolha dos Doze (3,13-19), começa a desenhar-se uma certa separação entre este grupo mais íntimo e as multidões. Todos seguem Jesus, mas de modos diferentes. Este seguimento exige esforço e capacidade de abertura ao divino, que se manifesta em Jesus de forma velada e indireta através dos milagres que Ele realiza. É por meio dos milagres que o discípulo descobre no Filho do Homem a presença de Deus, vendo em Jesus de Nazaré o Filho de Deus. Porque a pessoa de Jesus é essencialmente misteriosa, para o seguir, o discípulo precisa de fé a toda a prova: sente-se duvidoso, inseguro e tentado a abandoná-lo, vendo nele apenas o carpinteiro de Nazaré. Por isso, Jesus é também um incompreendido: os seus familiares pensam que Ele os trocou por uma outra família (3,20-21.31-35); os doutores da Lei e os fariseus não aceitam a sua interpretação da Lei (2,23-28; 3,22-30), nas questões do sábado e da expulsão dos demónios; os chefes do povo e dos sacerdotes veem-no como um revolucionário perigoso e dilemático para o seu “status quo” (11,27-33). Por isso, desde o início do Evangelho, se desenha o destino de Jesus: a morte (3,1-6; 14,1-2).
Mas, os discípulos “de dentro” não são muito melhores do que “os que estão de fora” (4,11). Também eles sentem dificuldade em compreender o mistério da pessoa de Jesus, que tem que lhes explicar as parábolas: parecem-se com os cegos (8,22-26; 10,46-53), que olham e não veem, e com os surdos que ouvem sem escutar (cf 4,11).
A incompreensão é uma das mais negativas caraterísticas do discípulo no texto de Marcos. É este o motivo por que, ao confessar o messianismo de Jesus (8,29), Pedro pensava num Messias (termo hebraico que significa “Cristo” em grego) mais político que religioso e que libertasse o povo dos dominadores romanos. Isso aparece claro quando Jesus desvia o assunto e anuncia pela primeira vez a sua Paixão dolorosa (8,31). Pedro, não gostando de tal messianismo, começa a repreender o Mestre, vindo este a mandar-lhe que se retire e a acusá-lo de defender os interesses dos homens e não os de Deus (8,31-33). O que ele queria era como todos os discípulos de todos os tempos um cristianismo sem esforço e sem grandes compromissos, quando o Mestre trazia um messianismo radical a mover inteligências, corações e atitudes. A revolução é de dentro para fora e não de fachada e transitória.
Apesar da incompreensão manifestada pelos discípulos em relação aos seus ensinamentos, Jesus não desanima e continua a ensiná-los na perspetiva da cruz e do serviço pela Vida (8,31-38; 9,30-37; 10,32-45). O efeito não foi muito positivo: no fim da caminhada para Jerusalém e depois de Ele lhes ter recordado as dificuldades por que iria passar a sua fé (14,26-31), ao verem-no atraiçoado por um dos Doze e preso (14,42-45), “deixando-o, fugiram todos” (14,50-52):
Então, os discípulos, deixando-o, fugiram todos. Um certo jovem, que o seguia envolto apenas num lençol, foi preso; mas ele, deixando o lençol, fugiu nu.”.
É Pedro negou-O, como o fazemos tantas vezes, que também o traímos e fugimos dele.
Este é, certamente, o Evangelho onde qualquer cristão se sentirá mais bem retratado.
2017.11.28 – Louro de Carvalho

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