domingo, 5 de novembro de 2017

“ENDECHAS A BARBARA ESCRAVA”, DE CAMÕES

Lembrei-me deste poema quando li o artigo de João Miguel Tavares no Público de 4 de novembro, pelo que passo a uma análise tão pormenorizada quanto possível. Eis
O poema
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Endechas a ũa cativa com quem andava d’amores na Índia, chamada Bárbora
Aquela cativa,
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que para meus olhos
Fosse mais formosa.

Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas,
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.

Ũa graça viva,
Que neles mora,
Para ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbora não.


Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela enfim descansa
Toda a minha pena.
Esta é a cativa
Que me tem cativo,
E, pois nela vivo,
É força que viva.

(CAMÕES, 1988, p. 60-61)

***
1.º Comentário
Este poema, em medida velha, caraterizado pelos queixumes do coração, faz referência a um amor que Camões terá tido na Índia. Exprime em memória a saudade, tratando a amada como se estivera ausente e agora presente ao lado do poeta. É um canto de louvor à beleza duma mulher negra e escrava que despertara a paixão do poeta.
O poeta canta a formosura da sua musa de ébano, uma mulher de cor, negra, desviando-se das normas clássicas, mas adotando, mesmo assim, uma conceção petrarquista e platónica do amor e da mulher amada, celebrada pelos poetas contemporâneos de Camões. É o tipo apolíneo também ao modo do vate luso, de que aqui se afasta – situação possível, dada a liberdade temática deste género de composições, mas impossível de concretizar em soneto ou em canção.
A forma é a dos poemas medievais, embora em trovas sem sujeição a um mote – alheio, como no vilancete, ou próprio como na cantiga –, mas em que cada uma das cinco voltas se parte em duas quadras individuadas pela pausa do ponto final, mas acopladas. Poderíamos perfeitamente ter 10 voltas (endechas), cada uma com o esquema rimático ABBA, quando o que temos é a oitava (próxima da oitava clássica, exceto no metro curto) com o esquema rimático ABBACDDC.
“Endecha” (do latim indicta, pelo espanhol endecha, significando “coisas anunciadas”, plural neutro do particípio passado de indico, ere, proclamar, anunciar, determinar, mandar) é composição poética de caráter triste (fúnebre ou melancólico) em quadras de 5 ou 6 sílabas métricas. Alguns também a designam por “romancilho”. Aqui, para mantermos o plural teriam cinco endechas com um denominador comum, o amor pela cativa que transforma o poeta.
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O poema inicia-se com o pronome demonstrativo “Aquela”, como se se pretendesse marcar a distância existente local e temporal entre este “eu” e a mulher. Em seguida  e através de um trocadilho entre o nome “cativa” e a forma verbal do verbo cativar no presente do indicativo, “cativo”, o sujeito poético frisa que aquela mulher, cativa (ou presa) socialmente, uma vez que se trata duma escrava, mantém-no afetivamente preso a ela; e  acrescenta que vive por ela embora ela possa não o desejar, não lhe correspondendo. E, após este momento de explicitação da sua relação com a escrava, o poeta passa a sugerir a descrição da mulher, elogiando-a à medida que esboça o seu retrato (num misto de fisicidade e de traços morais e psicológicos) enquanto acumula por enumeração as suas qualidades – processo em que utiliza a negação, a comparação, a metáfora, a antítese e a adjetivação. Neste retrato, há um claro exagero – hipérbole – no sentido do realce da superioridade desta mulher. Ela é mais bela do que…, possuidora de um rosto único, que se encontra fora dos padrões habituais, de olhos que, sendo o espelho da alma, se caraterizam como “sossegados”, colocados num “rosto singular” (que quer dizer “único”) numa serenidade própria da mulher camoniana e petrarquista, mas opondo-se ao mesmo modelo por serem pretos e não claros (mas também não verdes, da cor do limão), como sucedia nalgumas visões tradicionais da mulher. Ainda relativamente ao olhar, diz o “eu” poético que não é sedutor ou que inspire paixões, mas produz encantamento e êxtase, mais do que as flores do campo ou as estrelas do céu, a ponto de o poeta reconhecer que nunca viu rosa tão bela ou formosa em qualquer dos molhos que tenha contemplado.
Na terceira volta e através de uma antítese, surge-nos mais uma vez a ideia da escrava que é senhora de quem a tem cativa: “para ser senhora / de quem é cativa”, tornando visível o poder que esta mulher exerce sobre o poeta, quer sentimental quer psicologicamente, apesar do seu estatuto social de cativa ou escrava. Depois, ao evocar os cabelos da cativa, contraria a beleza dos cabelos louros, símbolo clássico, realçando os pretos desta mulher. Já no final da 4.ª volta, afirma que embora ela seja estranha não é incivilizada, cruel ou “bárbora”. É apenas estranha.
Na 5.ª volta, através da antítese, o “eu” poético refere a amada como capaz de acalmar a tormenta e, em jeito conclusivo, com o conector “enfim”, descreve-a como fonte de inspiração poética – “nela, enfim, descansa / toda a minha pena – já que “pena” sugere a própria escrita. Parece sentir-se correspondido, ao menos virtualmente.
Após a apresentação de Bárbora, o poeta refere-se-lhe com o  demonstrativo “Esta” sugerindo uma aproximação, como se ela fizesse agora parte do cenário do “eu” poético e do próprio leitor. Como se, durante a filmagem, o zoom  fosse aproximando gradualmente a imagem da mulher ao ponto de a podermos conhecer totalmente, quando apresentada em muito grandes planos, e, nesta visão amorosa, poder criar a comunhão de dois seres (como a matéria se une à forma) quase à maneira dos românticos – na suave, mas poderosa, visão. E o poeta conclui, afirmando quanto esta mulher é parte integrante da sua vida e como por ela deve e quer continuar a viver.
No retrato físico e psicológico, sobressaem a mansidão, o sossego, a calma e a doçura. Bem à maneira de Petrarca, o mais importante é o retrato espiritual, que possui um maior peso no conjunto das caraterísticas da mulher, aqui evidenciadas. Foi ela quem cativou o “eu” poético, que o afirma, em detrimento do modelo clássico de mulher ideal.
Formalmente, estamos perante uma composição composta por 5 oitavas, em redondilha menor, possuindo rimas interpoladas e emparelhadas, interpoladas em A e em C e emparelhadas em B e em D: ABBA / CDDC. As rimas são a mor parte das vezes graves ou femininas, excetuando as dos versos 5.º e 8.º da 2.ª estrofe, os versos 6.º e 7.º da 3.ª estrofe, 1.º e 4.º, 5.º e 8.º da 4.ª estrofe – que são agudas ou masculinas. E a mor parte das rimas são ricas, com exceção da dos versos 6.º e 7.º, da 1.ª estrofe, dos versos 1.º e 4.º, 6.º e 7.º da 2.ª estrofe, dos versos 1.º e 4.º da 4.ª estrofe e dos versos 2.º e 3.º da 5.ª estrofe – que são pobres.
Ainda, na análise estilística, destaca-se a hipérbole – num elogio à beleza da amada, “que a neve lhe jura / que trocara a cor”; a metáforaexaltação à beleza da amada “rosa” (amada), “meus amores” (olhos); a antítese de posição e motivo de adorno, “Nem no campo flores, / nem no céu estrelas”; a personificação, que a neve lhe jura / que trocara a cor”; a comparação da amada com a rosa, das flores e estrelas com os amores; a negação para reforço da afirmação, “Eu nunca vi rosa em suaves molhos”; a imagem dos molhos de rosas, do campo de flores e do céu de estrelas; e a adjetivação expressiva (suaves, doce, leda – adjetivos antepostos ao nome), atributiva (cativo, fermosa, singular, belos, estranha, Bárbora, serena, cativo) e abundante (sossegados, pretos e cansados – adjetivos atributivos pospostos ao nome).
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Uma tentativa de análise semiótica
Nestas trovas (endechas, segundo a edição de 1595) em redondilha menor (versos de cinco sílabas métricas), referenciadas em epígrafe, topamos, antes de mais, com a subversão, que atravessa todo o poema, do modelo renascentista da beleza petrarquista ou dantesca, do tipo apolíneo de mulher – de tez rosada, cabelos louros e colo de alabastro e geral alvura de neve – passando dum locus de distanciamento, “aquela cativa”, para, após uns indizíveis momentos de contacto, se chegar, no fim, ao espaço de proximidade e intimidade, configurado de forma espelhada através do deítico demonstrativo “esta é a cativa”. Para esta subversão da canónica “beleza botticelliana”, o emissor lírico recorre às metáforas do jogo amoroso, já evocadas: o sujeito transforma-se, pelo filtro mágico, em objeto, “cativa que me tem cativo”, ficando despojado da sua liberdade e do seu poder, para se submeter ao objeto que procura e por que anseia, “já não quer que viva” que, assim, coloca em crise a sua existência como sujeito dinâmico, livre e poderoso. Esta conjunção Sujeito/Objeto, sugerida pela análise do modelo actancial, implica a anulação do sujeito poético, pois o “não viver” é o transtemporal morrer de amor ou sofrer de amor – a metáfora da coita de amor bem arreigada na lírica peninsular, e mesmo ocidental, que o destinatário do discurso bem conhece. Este patamar de subversão amorosa ancora a subversão social que confere poderes à cativa, que, pela sua posição fundeira na pirâmide social, não dispõe usualmente de qualquer hipótese de exercício do poder. Não obstante, mesmo predado, o poeta é dono e senhor dum saber plasmado no discurso poético, sendo o próprio poeta, que extasiado confere tal poder à amada. Daqui resulta a inferição de que o status social de Bárbara era o oponente à coita de amor de e com um homem livre, ainda por cima com o estatuto de nobre, sendo o amor do poeta a força adjuvante e o fator destinador acoplado à sedução que a amada suscita no “eu” poético.
No entanto, apesar de aprisionado, o sujeito detém um saber que se compagina numa expressão discursiva, que segue um programa narrativo, em que se insere a exemplaridade deste caso individualizado, próximo do topos renascentista do saber feito da experiência (da observação e da vivência), sublinhado pela epígrafe dedicatória: o que o poeta vai cantar/contar é do domínio do vivenciado e, portanto, mais fácil de funcionar como motivação e reforço da autopersuasão. O emissor poético propõe-se evocar ou narrar sinteticamente a história da cativa “que o tem cativo” e que “já não quer que ele viva”, instalando-se, transitoriamente, na temporalidade que implica o descrever dinâmico dos acontecimentos, com a evocação de alguns detalhes de embelezamento. Esta dimensão narrativa introduz a relação ternária com o destinatário do discurso da parte do sujeito poético que persegue o seu objeto, neste caso a cativa, pressuposto desde o início das endechas, de quem o “eu” fala e a quem implicitamente se dirige. O destinatário do discurso, que aqui corresponde ao leitor/ouvinte, caraterizado socialmente pelo exercício de um poder transcendente e irreversível e que se pretende convencer, afinal, para o transformar, dado que é ele o responsável máximo pelo que acontece (o poeta transfere para o leitor/ouvinte a responsabilidade por tudo quanto o poeta sente): o seu modo de leitura e de interpretação modulados pela sua cultura, centrada em si mesma, que desconhece o “estranho” e o diferente, a experiência da alteridade, mas que, pela cultura do encontro, se realiza noutras paragens de forma análoga à vivida no seu habitat habitual.
Enredado o recetor do discurso no suspense das teias da diegese, o sujeito suspende o fio do tempo para engenhosamente estender a sua rede no espaço e no tempo, de modo a intentar a quebrar do muro que legitima o poder do destinador. Para tanto recorre à lógica deôntica que advém da combinatória do dever-fazer com outras modalidades como o saber-fazer ou o poder-fazer configurados no poema pelo uso da linguagem e topos do outro, sem entrar em rutura com os seus códigos semióticos e com os códigos linguísticos e estilísticos habituais.
Como vimos, o objeto do canto poémico, a mulher amada, superlativada pela beleza objetiva lida subjetivamente pelo emissor poético, “Eu nunca vi rosa...mais fermosa”, mercê das qualidades psicológicas da amada “olhos sossegados... Ũa graça viva” e pela sua conduta social “leda mansidão/que o siso acompanha” (note-se a ordem inversa aqui como noutros lugares). Para o seu retrato o sujeito serve-se da linguagem e do gosto em voga, decorrente do amor cortês, de modo a melhor lograr a sua estratégia de aproximação, mesmo recorrendo às metáforas estereotipadas, que aqui parecem revestir-se da sinceridade a que o fingimento do amor cortês era avesso. De modo similar, a riqueza da linguagem, de cariz marcadamente lírico, contribui para a ambiguidade que se vai adensando, típica da espessura do signo poético, mas não em total rutura com o universo do destinatário do discurso graças ao uso de jogos de palavras, a antecipar o cultismo barroco: “cativa/cativo”, “Porque nela vivo/ já não quer que viva”. Só no final da 2.ª oitava é explicitada a primeira diferença que pode provocar o embate “olhos... pretos”, em vez de azuis ou claros, de pronto atenuada pela conjunção coordenativa adversativa “mas” no segmento “mas não de matar”. É através dos olhos, colocados num “rosto singular” que ela exerce o seu poder, “para ser senhora de quem é cativa”. A referência aos cabelos pretos torna-os mais belos que os louros ou dourados da Laura, de Francesco Petrarca, ou da Beatrice de Dante Alighieri, “Pretos os cabelos,/onde o povo vão/perde opinião/que os louros são belos”. A revelação de maior impacto fica para a penúltima oitava “Pretidão de amor”, de pronto equilibrada no prato da balança pela ousada comparação (mais bela que a pura e branca neve) em seu favor ao ser emoldurada pela oração subordinante de verbo elíptico a que se subordinam a consecutiva e a completiva. É a própria neve que jura que trocara a cor.
Sub-repticiamente o sujeito vai substituindo as cores que surgem na poesia lírica da época, o azul dos olhos, o dourado dos cabelos, o branco da pele, segundo o ideal de beleza petrarquista, dantesca e botitcelliana, para impor a cor negra da mulher amada, deitando por terra não só as normas sociais (o amor como elemento transformador que subverte a norma social e que faz triunfar a diferença), como os códigos poéticos que reconfortam as certezas do destinatário do discurso e o empurram para a zona da novidade. Note-se a recorrente preocupação de atenuar a diferença, sem, no entanto, haver lugar a concessões. Assim, o sujeito insere na sua argumentação, colocando-se no campo do recetor, o adjetivo “estranha” de conotação negativa, para imediatamente a anular “mas bárbora não”. Vem a duplicidade semântica de “estranha” reiterar e resumir a diferença, a alteridade, mas também aponta para a índole de estrangeira desta mulher oriental, afirmando simultaneamente a sua urbanidade, pois joga bem com o antropónimo “Bárbora” (note-se o fenómeno fonético de dissimilação vocálica em Bárbara) e a sua forma adjetival “bárbora”, com a sua serenidade “que a tormenta amansa”, em princípio contrária ao modelo civilizacional, e com o horizonte de expectativa do universo do recetor. Afirma-se uma diferença que funciona tanto na visão do amor como na sua vertente de código poético.
Conferem vivacidade, clareza (que se opõe à negridão) e autenticidade (afastando-se do convencional o retrato traçado da beleza de Laura ou de Beatrice) as sonoridades (“Nem no campo flores/nem no céu estrelas”) ao discurso poético o ritmo, as sonoridades as rimas (interpoladas e emparelhadas), a redondilha menor, as repetições, que aproximam este discurso do registo oral. E a argumentação do sujeito prolonga-se até ao final do retrato, que agora preenche o espaço: “nela, enfim, descansa/toda a minha pena”. Construído o retrato, o poema termina com a reposição, pela técnica do espelho, dos quatro versos iniciais da primeira estrofe, num novo momento narrativo, mas transformando-o, característica inerente a toda a narrativa, apontando claramente para o leitor/ouvinte e como que ensanduichando poeticamente todo o discurso entre estes quatro versos quase repetidos simetricamente:   
“Esta é a cativa / que me tem cativo, / e, pois nela vivo, / é força que viva”.
A dêixis espacial contrastante, fornecida pelos demonstrativos “aquela” e “esta”, passando pela zona de contacto, acima evocada, que constitui a construção do retrato, contribui para espalhar a narrativa no espaço e afirmar o “meta-querer”, da formulação de Coquet, ou seja, a vontade do sujeito, que se concretiza na construção do poema e lhe reconfigura a sua própria identidade como sujeito criador ao erigir o novo ideal de beleza feminina contrariante do gosto epocal. Os dois versos finais, “E, pois nela vivo, / é força que viva”, são simultaneamente a aceitação da diferença e a submissão a essa nova ordem amorosa, como a sua assunção como sujeito, capaz de modificar e deitar por terra, pelo trabalho da linguagem, o poder do recetor no momento da leitura e da execução do poema. A construção do retrato ocupa 32 dos 40 versos que compõem o poema. Caminhando do geral para o particular e tentando abarcar a totalidade do cosmos (campo, terra, céu) no sentido de realçar a sua singularidade, o sujeito realça, todavia, a sua subjetividade “que para meus olhos”, que vai a par do exercício quase muscular do olhar que implica a leitura/contemplação do retrato pelo destinatário do discurso. Aliás, a composição retratal, antecedida pelos quatro versos que se repetem quase ipsis verbis nos quatro finais, remete para a dimensão visual como se se tratasse dum verdadeiro quadro desenhado e emoldurado no espaço que se convida a visitar e contemplar.  
O poema vem, pois, dotado de forte dimensão performativa, pelos jogos de linguagem e sonoridades, pelo investimento por parte do sujeito na primeira pessoa gramatical que sempre implica o elemento lírico, mas também pela encenação – a estratégia concebida pelo sujeito em direção ao destinatário do discurso. Ou seja: “Era uma vez aquela cativa..., mas, para acreditardes no que vos conto, o melhor é colocá-la ‘ante óculos” e agora olhai e vede : esta é a cativa”. Ora, este olhar bem pode ser secundado pelo gesto de apontar, que sai do poema e que se dirige ao leitor/ouvinte. Com um único gesto se materializa a “boa distância” entre o sujeito e o objeto, mas também entre o sujeito e o recetor, dotado agora de argumentos para pôr em causa o seu poder, reconhecendo o papel de mediação do sujeito de modo a justificar a passagem do demonstrativo referido à 3.ª pessoa “aquela” para “esta”, referido à 1.ª. Se o poema se mantivesse no seu elemento lírico, o sujeito exprimiria apenas atitude contemplativa. Porém, o retrato implica a descrição, aqui ao serviço do ponto de vista do sujeito, um programa executado de modo a reconfigurar a sua existência ameaçada. Se no início do poema o sujeito constata a distância que o separa do objeto, o deítico “esta”, a comportar o “aqui e agora” (hic et nunc), presentifica o objeto perante o destinatário do discurso todas as vezes que este vá atualizar a leitura do poema, atravessando tempos, instaurando a relação de dependência que pressupõe a leitura entre o texto, nos múltiplos códigos, e os leitores, pelo “engendramento dos sentidos”.
No percurso semiótico, a modalidade do “meta-querer” induz o sujeito ao sábio uso das noções espaciais, através dos deíticos demonstrativos que implicam a componente gestual, produzindo elementos de significação, como também supõe uma noção mais ampla do espaço geográfico, social e cultural, opondo um mundo ocidental a um mundo oriental, ultrapassando as regras do jogo amoroso (cortês ou petrarquista) da poesia peninsular para instaurar diferentes visões do amor ou do objeto amado e diferentes visões do mundo. A proxémica é consubstanciada no jogo que vai do afastamento ao contacto que traz a proximidade do outro. O amor pelo outro, afetivo, cultural e social, parte do desequilíbrio fundador, mas que, ora em passo de dois, ora no fio do arame, aposta nas relações de proximidade, na aventura humana de abertura e aceitação do outro diferente no conforto do nosso espaço. O texto será sempre uma virtualidade, um puzzle infinito, pela significação, e um caminho a fazer e a refazer, mas sempre a partir da sua memória ativa e armadilhada capaz de despertar os sentidos e de esfrangalhar a ordem estabelecida.
(vd ENDECHAS A BARBARA ESCRAVA” DE CAMÕES – José Manuel Anes – http://sentirportugus.blogspot.pt/2015/03/analise-de-endechas-barbara-escrava.html; “ENDECHAS A BARBARA ESCRAVA” DE CAMÕES: DO JOGO AMOROSO À BOA DISTÂNCIA – CONSTRUÇÃO DO PERCURSO SEMIÓTICO DO SUJEITO JOSÉ MANUEL DA COSTA ESTEVES, Université Paris Ouest Nanterre La Défense CRILUS -UR 369 Etudes Romanes - file:///C:/Users/user/Favorites/Documents/art_001%20(2).pdf
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Concluindo
No poema, Camões subverte, a partir da rede engenhosamente tecida pelo jogo amoroso, a relação entre o Sujeito e o Objeto, tal como a norma social que impõe a distância. Segundo Jean-Claude Coquet, o actante sujeito pode ser descrito na realização do seu percurso semântico, sublinhando a instabilidade ou a estabilidade da morfologia actancial, descrevendo a passagem dos objetos e modalidades dum espaço para o outro, graças à modalidade do “meta-querer”, indispensável à assunção do sujeito. Ora, aqui o percurso semiótico do sujeito do poema leva-o a instaurar uma distância que, em última análise, postula a sua própria existência e a reconfigura.
Segundo Jean-Claude Coquet, semiótico da Escola de Paris, a teoria greimasiana privilegia aquilo a que se pode designar como “o esquema narrativo”, tentando delimitar invariantes discursivas de modo a explicitar a estrutura elementar de significação. Greimas fixa-se na análise da forma do conteúdo, olvidando juízos sobre a veracidade do real contado, para abarcar o modo como o continuum do real é organizado no quadro de um determinado padrão cultural e como uma determinada cultura recorta na vida unidades de significação e as articula pertinentemente. Partindo da distinção entre o nível do aparente, manifestação da estrutura linguística, e o nível do imanente, a estrutura lógica organizadora do discurso, a sua análise pretende desvendar a estrutura lógica imanente e os percursos que permitem a sua passagem para a estrutura manifesta. Assim, a presença do actante sujeito é condição necessária para a atualização dum predicado verbal ou não verbal, definindo-se sempre em função de uma relação com mais dois ou três termos. A relação binária estabelece-se entre um sujeito (S) e um objeto (O). Se o sujeito estiver subordinado a um terceiro actante, dotado de um poder, introduz-se a noção de dependência, trata-se do actante destinador (D) responsável pelo que acontece. Nesta aceção, o sujeito está mais perto do universo da relação ternária. Respeita as normas que lhe são impostas, subordinando-se-lhe, ao mesmo tempo que a modalidade deôntica entra em jogo com a modalidade do “poder” do destinador conjugando-as com as modalidades do “saber” e do “querer”. O actante sujeito não é mais do que o lugar de uma combinatória modal. Entretanto, o actante pode ser também descrito na realização do seu percurso semântico, sublinhando a instabilidade ou estabilidade da morfologia actancial, descrevendo a passagem do objeto e das modalidades de um espaço para o outro. Coquet chega assim, a partir dos postulados de Greimas, a uma semiótica do continuum capaz de dar conta de um determinado percurso de significação. Em “Le discours et son sujet Coquet” postula a existência de uma outra modalidade, a do “meta-querer” necessária à constituição do sujeito, a qual, em termos gerais, é a assunção por parte do sujeito da sua própria identidade, quer ela se realize de forma verbal, quer se realize de forma não verbal. Se na língua tudo é predicação, também é afirmação da existência do sujeito. Enquanto diz, o enunciador consente naquilo que diz apoiando-se num ato de enunciação prévio. É esta duplicidade que define o sujeito semiótico a partir da modalidade do “meta-querer”, na medida em que opera a bipartição entre a enunciação pressuposta e o enunciado. O actante sujeito será, pois, o que é caraterizado pela presença desta outra modalidade cuja matriz radica no discurso filosófico de Spinoza, Hegel e Descartes – para quem o “querer” constituía o poder que funda a vida do espírito. O “meta-querer”, que, segundo Coquet, corresponde à “vontade”, seria uma constante de qualquer discurso, a faculdade que afirma a própria existência. O sujeito semiótico, posto no interior do discurso, é suscetível de sofrer transformações que o levam a ocupar simultaneamente as posições opostas de sujeito e de não sujeito. A sociedade funda-se numa relação binária, pois o “eu” estabelece uma relação com o “tu” na qual para ser reconhecido basta afirmar um “sou eu”. A passagem duma identidade para outra pressupõe uma história, sendo necessário que o sujeito fixe um programa de ação para deixar de estar disjunto do “tu” e que este reconheça o êxito do programa. A transformação tem, pois, de acontecer para que se dê o reconhecimento. E pelo “meta-querer”, a modalidade pressuposta pelo actante sujeito, pela sua presença ou ausência, pela instauração duma distância ou seu apagamento, pode instaurar ou rasurar a distância entre o sujeito e o objeto.
É esta construção do sujeito semiótico à luz da modalidade do “meta-querer” que permite a análise a que se procedeu do poema camoniano onde se reconhecem os postulados-base em que assenta ta semiótica do continuum praticada por Jean-Claude Coquet.
(vd COQUET, Jean-Claude. Le discours et son sujet I. Paris : Klincksieck, 1984)
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Camões ousadamente rompe com o modelo petrarquista consagrado erigindo o seu canto de exaltação a uma negra de pele e cabelos escuros, por quem se sentia atraído, como está bem evidente nas primeira e última estrofes do poema, por meio dos trocadilhos que usou: “aquela cativa que me cativa / porque nela vivo já não quer que viva”; e “Esta é a cativa que me tem cativo/ e, pois nela vivo, / É força que viva”.
De certo modo, a Cativa assemelha-se à mulher presente nas cantigas dos trovadores medievais e da poesia palaciana e na poesia clássica, ou seja: a mulher inacessível, endeusada, cuja graça mais sedutora está no olhar, nos “olhos sossegados”, descrito pelo poeta como “Ua graça viva / que neles lhe mora. / Para ser Senhora de quem é cativa”. Assim, pelo poder de sedução que emana da sua pessoa, Bárbora Cativa torna-se “Senhora” do seu Senhor, dona do seu dono.
Vale salientar que os versos em redondilha menor conferem um ritmo leve e ligeiro, de uma suavidade ímpar à expressão do envolvimento amoroso do poeta, bem como à felicidade que lhe proporcionava a “presença serena, a doce figura” daquela mulher estrangeira e de outra raça por quem se apaixonara. Esta é uma das raras poesias em que Camões fala de um amor correspondido e venturoso, que se refere à experiência da paixão sem o travo do desengano e da dor da perda, como viria a fazer na maturidade amargurada, quando se tornou um dos exponenciais do Maneirismo português.

2017.11.05 – Louro de Carvalho

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