Lembrei-me
deste poema quando li o artigo de João Miguel Tavares no Público de 4 de novembro, pelo que passo a uma análise tão
pormenorizada quanto possível. Eis
O
poema
***
Endechas
a ũa cativa com quem andava d’amores na
Índia, chamada Bárbora
Aquela cativa,
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que para meus olhos
Fosse mais formosa.
Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas,
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.
|
Ũa graça viva,
Que neles mora,
Para ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.
Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbora não.
|
Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela enfim descansa
Toda a minha pena.
Esta é a cativa
Que me tem cativo,
E, pois nela vivo,
É força que viva.
(CAMÕES, 1988, p. 60-61)
|
***
1.º
Comentário
Este poema, em
medida velha, caraterizado pelos queixumes do coração, faz referência a um amor
que Camões terá tido na Índia. Exprime em memória a saudade, tratando a amada
como se estivera ausente e agora presente ao lado do poeta. É um canto de
louvor à beleza duma mulher negra e escrava que despertara a paixão do poeta.
O poeta
canta a formosura da sua musa de ébano, uma mulher de cor, negra, desviando-se
das normas clássicas, mas adotando, mesmo assim, uma conceção petrarquista e
platónica do amor e da mulher amada, celebrada pelos poetas contemporâneos de Camões.
É o tipo apolíneo também ao modo do vate luso, de que aqui se afasta – situação
possível, dada a liberdade temática deste género de composições, mas impossível
de concretizar em soneto ou em canção.
A forma é a
dos poemas medievais, embora em trovas sem sujeição a um mote – alheio, como no
vilancete, ou próprio como na cantiga –, mas em que cada uma das cinco voltas
se parte em duas quadras individuadas pela pausa do ponto final, mas acopladas.
Poderíamos perfeitamente ter 10 voltas (endechas), cada uma com o esquema rimático ABBA, quando o que
temos é a oitava (próxima da oitava clássica, exceto no metro curto) com o esquema rimático ABBACDDC.
“Endecha”
(do latim indicta, pelo espanhol endecha, significando “coisas
anunciadas”, plural neutro do particípio passado de indico, ere, proclamar, anunciar, determinar, mandar) é composição poética de caráter triste (fúnebre ou melancólico) em quadras de 5 ou 6 sílabas
métricas. Alguns também a designam por “romancilho”. Aqui, para mantermos o plural teriam cinco endechas
com um denominador comum, o amor pela cativa que transforma o poeta.
***
O poema
inicia-se com o pronome demonstrativo “Aquela”,
como se se pretendesse marcar a distância existente local e temporal entre este
“eu” e a mulher. Em seguida e através de um trocadilho entre o nome
“cativa” e a forma verbal do
verbo cativar no presente do indicativo, “cativo”, o sujeito poético frisa que aquela mulher, cativa (ou presa) socialmente, uma vez que se trata duma escrava,
mantém-no afetivamente preso a ela; e acrescenta que vive por ela
embora ela possa não o desejar, não lhe correspondendo. E, após este momento de explicitação da sua relação com a
escrava, o poeta passa a sugerir a descrição da mulher, elogiando-a à medida
que esboça o seu retrato (num misto de fisicidade e de traços morais e
psicológicos) enquanto acumula
por enumeração as suas qualidades – processo em que utiliza a negação, a comparação, a metáfora,
a antítese e a adjetivação.
Neste retrato, há um claro exagero – hipérbole – no sentido do realce da
superioridade desta mulher. Ela é mais bela do que…, possuidora de um
rosto único, que se encontra fora dos padrões habituais, de olhos que, sendo o
espelho da alma, se
caraterizam como “sossegados”, colocados
num “rosto singular” (que quer
dizer “único”) numa
serenidade própria da mulher camoniana e petrarquista, mas opondo-se ao mesmo
modelo por serem pretos e não claros (mas também não verdes, da cor do
limão), como sucedia nalgumas visões
tradicionais da mulher. Ainda relativamente ao olhar, diz o “eu” poético que
não é sedutor ou que inspire paixões, mas produz encantamento e êxtase, mais do
que as flores do campo ou as estrelas do céu, a ponto de o poeta reconhecer que
nunca viu rosa tão bela ou formosa em qualquer dos molhos que tenha contemplado.
Na terceira
volta e através de uma antítese, surge-nos mais uma vez a ideia da escrava que
é senhora de quem a tem cativa: “para ser senhora / de quem é cativa”, tornando visível o
poder que esta mulher exerce sobre o poeta, quer sentimental quer
psicologicamente, apesar do seu estatuto social de cativa ou escrava. Depois, ao evocar os cabelos da cativa, contraria a beleza dos cabelos louros,
símbolo clássico, realçando os pretos desta mulher. Já no final da 4.ª volta,
afirma que embora ela seja estranha não é incivilizada, cruel ou “bárbora”. É
apenas estranha.
Na 5.ª
volta, através da antítese, o “eu” poético refere a amada como capaz de acalmar
a tormenta e, em jeito conclusivo, com o conector “enfim”, descreve-a como
fonte de inspiração poética – “nela, enfim, descansa / toda a minha
pena” – já que
“pena” sugere a própria escrita. Parece sentir-se correspondido, ao menos virtualmente.
Após a
apresentação de Bárbora, o poeta refere-se-lhe com o demonstrativo
“Esta” sugerindo uma aproximação, como se ela fizesse agora parte do cenário do
“eu” poético e do próprio leitor. Como se, durante a filmagem, o zoom fosse aproximando gradualmente
a imagem da mulher ao ponto de a podermos conhecer totalmente, quando
apresentada em muito grandes planos, e, nesta visão amorosa, poder criar a
comunhão de dois seres (como a matéria se une à forma) quase à maneira dos românticos – na suave, mas
poderosa, visão. E o poeta conclui, afirmando quanto esta mulher é parte
integrante da sua vida e como por ela deve e quer continuar a viver.
No retrato
físico e psicológico, sobressaem a mansidão, o sossego, a calma e a doçura. Bem
à maneira de Petrarca, o mais importante é o retrato espiritual, que possui um maior
peso no conjunto das caraterísticas da mulher, aqui evidenciadas. Foi ela quem
cativou o “eu” poético, que o afirma, em detrimento do modelo clássico de
mulher ideal.
Formalmente,
estamos perante uma composição composta por 5 oitavas, em redondilha menor,
possuindo rimas interpoladas e emparelhadas, interpoladas em A e em C e
emparelhadas em B e em D: ABBA / CDDC. As rimas são a mor parte das vezes
graves ou femininas, excetuando as dos versos 5.º e 8.º da 2.ª estrofe, os
versos 6.º e 7.º da 3.ª estrofe, 1.º e 4.º, 5.º e 8.º da 4.ª estrofe – que são
agudas ou masculinas. E a mor parte das rimas são ricas, com exceção da dos
versos 6.º e 7.º, da 1.ª estrofe, dos versos 1.º e 4.º, 6.º e 7.º da 2.ª
estrofe, dos versos 1.º e 4.º da 4.ª estrofe e dos versos 2.º e 3.º da 5.ª
estrofe – que são pobres.
Ainda, na análise estilística, destaca-se a hipérbole – num elogio à beleza da
amada, “que a neve
lhe jura / que trocara a cor”; a metáfora – exaltação
à beleza da amada “rosa” (amada), “meus
amores” (olhos); a antítese de posição e motivo de adorno,
“Nem no campo
flores, / nem no céu estrelas”; a personificação, “que a neve lhe jura / que trocara a cor”; a comparação da
amada com a rosa, das flores e estrelas com os amores; a negação para
reforço da afirmação, “Eu nunca vi rosa em suaves molhos”; a imagem
dos molhos de rosas, do campo de flores e do céu de estrelas; e a adjetivação expressiva (suaves, doce, leda – adjetivos antepostos ao nome), atributiva (cativo, fermosa, singular, belos, estranha, Bárbora, serena, cativo) e abundante (sossegados, pretos e cansados – adjetivos atributivos pospostos ao nome).
***
Uma
tentativa de análise semiótica
Nestas
trovas (endechas,
segundo a edição de 1595)
em redondilha menor (versos de cinco sílabas métricas), referenciadas em epígrafe, topamos,
antes de mais, com a subversão, que atravessa todo o poema, do modelo
renascentista da beleza petrarquista ou dantesca, do tipo apolíneo de mulher –
de tez rosada, cabelos louros e colo de alabastro e geral alvura de neve – passando
dum locus de distanciamento, “aquela cativa”, para, após uns
indizíveis momentos de contacto, se chegar, no fim, ao espaço de proximidade e
intimidade, configurado de forma espelhada através do deítico demonstrativo
“esta é a cativa”. Para esta subversão da canónica “beleza botticelliana”, o
emissor lírico recorre às metáforas do jogo amoroso, já evocadas: o sujeito
transforma-se, pelo filtro mágico, em objeto, “cativa que me tem cativo”, ficando despojado da sua liberdade e do
seu poder, para se submeter ao objeto que procura e por que anseia, “já não quer que viva” que, assim, coloca
em crise a sua existência como sujeito dinâmico, livre e poderoso. Esta
conjunção Sujeito/Objeto, sugerida
pela análise do modelo actancial, implica a anulação do sujeito poético, pois o
“não viver” é o transtemporal morrer de amor ou sofrer de amor – a metáfora da
coita de amor bem arreigada na lírica peninsular, e mesmo ocidental, que o
destinatário do discurso bem conhece. Este patamar de subversão amorosa ancora
a subversão social que confere poderes à cativa, que, pela sua posição fundeira
na pirâmide social, não dispõe usualmente de qualquer hipótese de exercício do
poder. Não obstante, mesmo predado, o poeta é dono e senhor dum saber plasmado
no discurso poético, sendo o próprio poeta, que extasiado confere tal poder à
amada. Daqui resulta a inferição de que o status
social de Bárbara era o oponente à coita de amor de e com um homem livre, ainda
por cima com o estatuto de nobre, sendo o amor do poeta a força adjuvante e o fator
destinador acoplado à sedução que a amada suscita no “eu” poético.
No
entanto, apesar de aprisionado, o sujeito detém um saber que se compagina numa
expressão discursiva, que segue um programa narrativo, em que se insere a
exemplaridade deste caso individualizado, próximo do topos renascentista do saber feito da experiência (da
observação e da vivência),
sublinhado pela epígrafe dedicatória: o que o poeta vai cantar/contar é do
domínio do vivenciado e, portanto, mais fácil de funcionar como motivação e reforço
da autopersuasão. O emissor poético propõe-se evocar ou narrar sinteticamente a
história da cativa “que o tem cativo” e que “já não quer que ele viva”,
instalando-se, transitoriamente, na temporalidade que implica o descrever
dinâmico dos acontecimentos, com a evocação de alguns detalhes de embelezamento.
Esta dimensão narrativa introduz a relação ternária com o destinatário do
discurso da parte do sujeito poético que persegue o seu objeto, neste caso a
cativa, pressuposto desde o início das endechas, de quem o “eu” fala e a quem
implicitamente se dirige. O destinatário do discurso, que aqui corresponde ao
leitor/ouvinte, caraterizado socialmente pelo exercício de um poder
transcendente e irreversível e que se pretende convencer, afinal, para o transformar,
dado que é ele o responsável máximo pelo que acontece (o
poeta transfere para o leitor/ouvinte a responsabilidade por tudo quanto o
poeta sente): o seu
modo de leitura e de interpretação modulados pela sua cultura, centrada em si
mesma, que desconhece o “estranho” e o diferente, a experiência da alteridade,
mas que, pela cultura do encontro, se realiza noutras paragens de forma análoga
à vivida no seu habitat habitual.
Enredado
o recetor do discurso no suspense das
teias da diegese, o sujeito suspende o fio do tempo para engenhosamente
estender a sua rede no espaço e no tempo, de modo a intentar a quebrar do muro
que legitima o poder do destinador. Para tanto recorre à lógica deôntica que
advém da combinatória do dever-fazer
com outras modalidades como o saber-fazer
ou o poder-fazer configurados no
poema pelo uso da linguagem e topos
do outro, sem entrar em rutura com os seus códigos semióticos e com os códigos
linguísticos e estilísticos habituais.
Como
vimos, o objeto do canto poémico, a mulher amada, superlativada pela beleza
objetiva lida subjetivamente pelo emissor poético, “Eu nunca vi rosa...mais fermosa”, mercê das qualidades psicológicas
da amada “olhos sossegados... Ũa graça
viva” e pela sua conduta social “leda
mansidão/que o siso acompanha” (note-se a ordem inversa
aqui como noutros lugares).
Para o seu retrato o sujeito serve-se da linguagem e do gosto em voga,
decorrente do amor cortês, de modo a melhor lograr a sua estratégia de
aproximação, mesmo recorrendo às metáforas estereotipadas, que aqui parecem
revestir-se da sinceridade a que o fingimento do amor cortês era avesso. De
modo similar, a riqueza da linguagem, de cariz marcadamente lírico, contribui
para a ambiguidade que se vai adensando, típica da espessura do signo poético,
mas não em total rutura com o universo do destinatário do discurso graças ao
uso de jogos de palavras, a antecipar o cultismo barroco: “cativa/cativo”, “Porque nela
vivo/ já não quer que viva”. Só no final da 2.ª oitava é explicitada a primeira
diferença que pode provocar o embate “olhos...
pretos”, em vez de azuis ou claros, de pronto atenuada pela conjunção
coordenativa adversativa “mas” no
segmento “mas não de matar”. É através
dos olhos, colocados num “rosto singular”
que ela exerce o seu poder, “para ser
senhora de quem é cativa”. A referência aos cabelos pretos torna-os mais belos
que os louros ou dourados da Laura, de Francesco Petrarca, ou da Beatrice de
Dante Alighieri, “Pretos os cabelos,/onde
o povo vão/perde opinião/que os louros são belos”. A revelação de maior
impacto fica para a penúltima oitava “Pretidão
de amor”, de pronto equilibrada no prato da balança pela ousada comparação
(mais
bela que a pura e branca neve)
em seu favor ao ser emoldurada pela oração subordinante de verbo elíptico a que
se subordinam a consecutiva e a completiva. É a própria neve que jura que
trocara a cor.
Sub-repticiamente
o sujeito vai substituindo as cores que surgem na poesia lírica da época, o
azul dos olhos, o dourado dos cabelos, o branco da pele, segundo o ideal de
beleza petrarquista, dantesca e botitcelliana, para impor a cor negra da mulher
amada, deitando por terra não só as normas sociais (o
amor como elemento transformador que subverte a norma social e que faz triunfar
a diferença), como os
códigos poéticos que reconfortam as certezas do destinatário do discurso e o
empurram para a zona da novidade. Note-se a recorrente preocupação de atenuar a
diferença, sem, no entanto, haver lugar a concessões. Assim, o sujeito insere
na sua argumentação, colocando-se no campo do recetor, o adjetivo “estranha” de conotação negativa, para
imediatamente a anular “mas bárbora não”.
Vem a duplicidade semântica de “estranha” reiterar e resumir a diferença, a
alteridade, mas também aponta para a índole de estrangeira desta mulher
oriental, afirmando simultaneamente a sua urbanidade, pois joga bem com o antropónimo
“Bárbora” (note-se o fenómeno fonético de dissimilação vocálica
em Bárbara) e a sua
forma adjetival “bárbora”, com a sua serenidade “que a tormenta amansa”, em princípio contrária ao modelo
civilizacional, e com o horizonte de expectativa do universo do recetor.
Afirma-se uma diferença que funciona tanto na visão do amor como na sua vertente
de código poético.
Conferem
vivacidade, clareza (que se opõe à negridão) e autenticidade (afastando-se
do convencional o retrato traçado da beleza de Laura ou de Beatrice) as sonoridades (“Nem
no campo flores/nem no céu estrelas”)
ao discurso poético o ritmo, as sonoridades as rimas (interpoladas
e emparelhadas), a
redondilha menor, as repetições, que aproximam este discurso do registo oral. E
a argumentação do sujeito prolonga-se até ao final do retrato, que agora
preenche o espaço: “nela, enfim, descansa/toda
a minha pena”. Construído o retrato, o poema termina com a reposição, pela
técnica do espelho, dos quatro versos iniciais da primeira estrofe, num novo
momento narrativo, mas transformando-o, característica inerente a toda a
narrativa, apontando claramente para o leitor/ouvinte e como que ensanduichando
poeticamente todo o discurso entre estes quatro versos quase repetidos
simetricamente:
“Esta
é a cativa / que me tem cativo, / e, pois nela vivo, / é força que viva”.
A dêixis
espacial contrastante, fornecida pelos demonstrativos “aquela” e “esta”,
passando pela zona de contacto, acima evocada, que constitui a construção do
retrato, contribui para espalhar a narrativa no espaço e afirmar o
“meta-querer”, da formulação de Coquet, ou seja, a vontade do sujeito, que se
concretiza na construção do poema e lhe reconfigura a sua própria identidade como
sujeito criador ao erigir o novo ideal de beleza feminina contrariante do gosto
epocal. Os dois versos finais, “E, pois
nela vivo, / é força que viva”, são simultaneamente a aceitação da
diferença e a submissão a essa nova ordem amorosa, como a sua assunção como
sujeito, capaz de modificar e deitar por terra, pelo trabalho da linguagem, o
poder do recetor no momento da leitura e da execução do poema. A construção do
retrato ocupa 32 dos 40 versos que compõem o poema. Caminhando do geral para o
particular e tentando abarcar a totalidade do cosmos (campo,
terra, céu) no
sentido de realçar a sua singularidade, o sujeito realça, todavia, a sua
subjetividade “que para meus olhos”, que vai a par do exercício quase muscular
do olhar que implica a leitura/contemplação do retrato pelo destinatário do
discurso. Aliás, a composição retratal, antecedida pelos quatro versos que se
repetem quase ipsis verbis nos quatro
finais, remete para a dimensão visual como se se tratasse dum verdadeiro quadro
desenhado e emoldurado no espaço que se convida a visitar e contemplar.
O poema
vem, pois, dotado de forte dimensão performativa, pelos jogos de linguagem e
sonoridades, pelo investimento por parte do sujeito na primeira pessoa gramatical
que sempre implica o elemento lírico, mas também pela encenação – a estratégia
concebida pelo sujeito em direção ao destinatário do discurso. Ou seja: “Era
uma vez aquela cativa..., mas, para acreditardes no que vos conto, o melhor é
colocá-la ‘ante óculos” e agora olhai
e vede : esta é a cativa”. Ora, este olhar bem pode ser secundado pelo gesto de
apontar, que sai do poema e que se dirige ao leitor/ouvinte. Com um único gesto
se materializa a “boa distância” entre o sujeito e o objeto, mas também entre o
sujeito e o recetor, dotado agora de argumentos para pôr em causa o seu poder,
reconhecendo o papel de mediação do sujeito de modo a justificar a passagem do
demonstrativo referido à 3.ª pessoa “aquela” para “esta”, referido à 1.ª. Se o
poema se mantivesse no seu elemento lírico, o sujeito exprimiria apenas atitude
contemplativa. Porém, o retrato implica a descrição, aqui ao serviço do ponto
de vista do sujeito, um programa executado de modo a reconfigurar a sua
existência ameaçada. Se no início do poema o sujeito constata a distância que o
separa do objeto, o deítico “esta”, a comportar o “aqui e agora” (hic
et nunc), presentifica
o objeto perante o destinatário do discurso todas as vezes que este vá atualizar
a leitura do poema, atravessando tempos, instaurando a relação de dependência
que pressupõe a leitura entre o texto, nos múltiplos códigos, e os leitores,
pelo “engendramento dos sentidos”.
No percurso
semiótico, a modalidade do “meta-querer” induz o sujeito ao sábio uso das
noções espaciais, através dos deíticos demonstrativos que implicam a componente
gestual, produzindo elementos de significação, como também supõe uma noção mais
ampla do espaço geográfico, social e cultural, opondo um mundo ocidental a um
mundo oriental, ultrapassando as regras do jogo amoroso (cortês
ou petrarquista) da
poesia peninsular para instaurar diferentes visões do amor ou do objeto amado e
diferentes visões do mundo. A proxémica é consubstanciada no jogo que vai do
afastamento ao contacto que traz a proximidade do outro. O amor pelo outro,
afetivo, cultural e social, parte do desequilíbrio fundador, mas que, ora em
passo de dois, ora no fio do arame, aposta nas relações de proximidade, na
aventura humana de abertura e aceitação do outro diferente no conforto do nosso
espaço. O texto será sempre uma virtualidade, um puzzle infinito, pela significação, e um caminho a fazer e a
refazer, mas sempre a partir da sua memória ativa e armadilhada capaz de
despertar os sentidos e de esfrangalhar a ordem estabelecida.
(vd
ENDECHAS A BARBARA ESCRAVA” DE CAMÕES
– José Manuel Anes – http://sentirportugus.blogspot.pt/2015/03/analise-de-endechas-barbara-escrava.html;
“ENDECHAS A BARBARA ESCRAVA” DE CAMÕES:
DO JOGO AMOROSO À BOA DISTÂNCIA – CONSTRUÇÃO DO PERCURSO SEMIÓTICO DO SUJEITO
JOSÉ MANUEL DA COSTA ESTEVES, Université Paris Ouest Nanterre La Défense
CRILUS -UR 369 Etudes Romanes - file:///C:/Users/user/Favorites/Documents/art_001%20(2).pdf
***
Concluindo
No
poema, Camões subverte, a partir da rede engenhosamente tecida pelo jogo
amoroso, a relação entre o Sujeito e
o Objeto, tal como a norma social que
impõe a distância. Segundo Jean-Claude Coquet, o actante sujeito pode ser
descrito na realização do seu percurso semântico, sublinhando a instabilidade
ou a estabilidade da morfologia actancial, descrevendo a passagem dos objetos e
modalidades dum espaço para o outro, graças à modalidade do “meta-querer”,
indispensável à assunção do sujeito. Ora, aqui o percurso semiótico do sujeito
do poema leva-o a instaurar uma distância que, em última análise, postula a sua
própria existência e a reconfigura.
Segundo
Jean-Claude Coquet, semiótico da Escola de Paris, a teoria greimasiana
privilegia aquilo a que se pode designar como “o esquema narrativo”, tentando
delimitar invariantes discursivas de modo a explicitar a estrutura elementar de
significação. Greimas fixa-se na análise da forma do conteúdo, olvidando juízos
sobre a veracidade do real contado, para abarcar o modo como o continuum do real é organizado no quadro
de um determinado padrão cultural e como uma determinada cultura recorta
na vida unidades de significação e as articula pertinentemente. Partindo da
distinção entre o nível do aparente, manifestação da estrutura linguística, e o
nível do imanente, a estrutura lógica organizadora do discurso, a sua análise
pretende desvendar a estrutura lógica imanente e os percursos que permitem a
sua passagem para a estrutura manifesta. Assim, a presença do actante sujeito é
condição necessária para a atualização dum predicado verbal ou não verbal,
definindo-se sempre em função de uma relação com mais dois ou três termos. A
relação binária estabelece-se entre um sujeito (S) e um objeto (O). Se o sujeito estiver subordinado a um terceiro
actante, dotado de um poder, introduz-se a noção de dependência, trata-se do
actante destinador (D) responsável
pelo que acontece. Nesta aceção, o sujeito está mais perto do universo da
relação ternária. Respeita as normas que lhe são impostas, subordinando-se-lhe,
ao mesmo tempo que a modalidade deôntica entra em jogo com a modalidade do
“poder” do destinador conjugando-as com as modalidades do “saber” e do “querer”.
O actante sujeito não é mais do que o lugar de uma combinatória modal.
Entretanto, o actante pode ser também descrito na realização do seu percurso
semântico, sublinhando a instabilidade ou estabilidade da morfologia actancial,
descrevendo a passagem do objeto e das modalidades de um espaço para o outro.
Coquet chega assim, a partir dos postulados de Greimas, a uma semiótica do continuum capaz de dar conta de um
determinado percurso de significação. Em “Le
discours et son sujet Coquet” postula a existência de uma outra modalidade,
a do “meta-querer” necessária à constituição do sujeito, a qual, em termos
gerais, é a assunção por parte do sujeito da sua própria identidade, quer ela
se realize de forma verbal, quer se realize de forma não verbal. Se na língua
tudo é predicação, também é afirmação da existência do sujeito. Enquanto diz, o
enunciador consente naquilo que diz apoiando-se num ato de enunciação prévio. É
esta duplicidade que define o sujeito semiótico a partir da modalidade do
“meta-querer”, na medida em que opera a bipartição entre a enunciação
pressuposta e o enunciado. O actante sujeito será, pois, o que é caraterizado
pela presença desta outra modalidade cuja matriz radica no discurso filosófico
de Spinoza, Hegel e Descartes – para quem o “querer” constituía o poder que
funda a vida do espírito. O “meta-querer”, que, segundo Coquet, corresponde à
“vontade”, seria uma constante de qualquer discurso, a faculdade que afirma a
própria existência. O sujeito semiótico, posto no interior do discurso, é suscetível
de sofrer transformações que o levam a ocupar simultaneamente as posições
opostas de sujeito e de não sujeito. A sociedade funda-se numa relação binária,
pois o “eu” estabelece uma relação com o “tu” na qual para ser reconhecido
basta afirmar um “sou eu”. A passagem duma identidade para outra pressupõe uma
história, sendo necessário que o sujeito fixe um programa de ação para deixar
de estar disjunto do “tu” e que este reconheça o êxito do programa. A
transformação tem, pois, de acontecer para que se dê o reconhecimento. E pelo “meta-querer”,
a modalidade pressuposta pelo actante sujeito, pela sua presença ou ausência,
pela instauração duma distância ou seu apagamento, pode instaurar ou rasurar a
distância entre o sujeito e o objeto.
É esta
construção do sujeito semiótico à luz da modalidade do “meta-querer” que permite
a análise a que se procedeu do poema camoniano onde se reconhecem os postulados-base
em que assenta ta semiótica do continuum
praticada por Jean-Claude Coquet.
(vd COQUET, Jean-Claude. Le discours
et son sujet I. Paris : Klincksieck, 1984)
***
Camões ousadamente
rompe com o modelo petrarquista consagrado erigindo o seu canto de exaltação a
uma negra de pele e cabelos escuros, por quem se sentia atraído, como está bem
evidente nas primeira e última estrofes do poema, por meio dos trocadilhos que
usou: “aquela cativa que me cativa /
porque nela vivo já não quer que viva”; e “Esta é a cativa que me tem cativo/ e, pois nela vivo, / É força que
viva”.
De certo
modo, a Cativa assemelha-se à mulher presente nas cantigas dos trovadores
medievais e da poesia palaciana e na poesia clássica, ou seja: a mulher
inacessível, endeusada, cuja graça mais sedutora está no olhar, nos “olhos sossegados”, descrito pelo poeta
como “Ua graça viva / que neles lhe mora.
/ Para ser Senhora de quem é cativa”. Assim, pelo poder de sedução que
emana da sua pessoa, Bárbora Cativa torna-se “Senhora” do seu Senhor, dona do seu dono.
Vale
salientar que os versos em redondilha menor conferem um ritmo leve e ligeiro,
de uma suavidade ímpar à expressão do envolvimento amoroso do poeta, bem como à
felicidade que lhe proporcionava a “presença
serena, a doce figura” daquela mulher estrangeira e de outra raça por quem
se apaixonara. Esta é uma das raras poesias em que Camões fala de um amor
correspondido e venturoso, que se refere à experiência da paixão sem o travo do
desengano e da dor da perda, como viria a fazer na maturidade amargurada,
quando se tornou um dos exponenciais do Maneirismo português.
2017.11.05 – Louro de Carvalho
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