domingo, 5 de novembro de 2017

Na terra não chameis a ninguém vosso pai nem vos deixeis tratar por mestres e doutores

A recomendação de Cristo sintetizada em epígrafe, se levada à letra, escandalizará quem repare na profusão de títulos académicos e honrarias, cerimoniais e adereços que emolduram as pessoas que detêm responsabilidades políticas, militares, académicas e religiosas. Quem não prefere o tratamento de marechal e general ou almirante e vice-almirante, Professor Catedrático, Doutor, Mestre, Eminência, Excelência Reverendíssima, Patriarca, Cardeal, Arcebispo, Bispo, Monsenhor, Cónego, Padre…? É a expressão do carreirismo e subida, se possível, a pique na hierarquia social, política, militar e eclesiástica que domina pessoas e instituições em vez do profissionalismo, o título plasmado em diploma pelo título baseado na competência certificada.
O evangelho de Mateus assumido como proclamação e meditação da Boa Nova no XXXI domingo do Tempo Comum no Ano A (Mt 23, 1-12) escalpeliza estas pretensões nos discípulos de Cristo e que se tornam aberrantes no foro eclesiástico e nas sociedades modeladas pelo cristianismo, por maioria de razão se os títulos são forjados ou comprados e os cursos obtidos por meios pouco ortodoxos.
A perícopa do Evangelho de Mateus reflete a “zanga de Deus” com os sacerdotes, evidenciada pelo profeta Malaquias na passagem assumida como 1.ª leitura desta XXXI dominga (Ml 1,14b; 2, 2b.8-10). Na verdade, nas palavras deste profeta veterotestamentário, Deus censurou duramente os que se desviaram do bom caminho e sobretudo aqueles que tinham a obrigação de ensinar os outros a cumprir, mas foram, antes, ocasião de escândalo e de relaxamento da doutrina e dos costumes. Malaquias, provável precursor das reformas religiosas de Esdras e Neemias, censura, por meados do século V aC, os vícios, a negligência e a falta de zelo dos sacerdotes.
E a perícopa foi escolhida, pelos liturgistas organizadores do lecionário dominical, para 1.ª leitura em função do Evangelho em que Jesus escalpeliza os vícios dos escribas e fariseus, na mesma linha da denúncia dos profetas antigos, mas com uma autoridade muito superior.
A censura veiculada pelo profeta constitui uma espécie de ultimatum. Com efeito, Deus já não pode suportar por mais tempo a maneira como alguns sacerdotes celebram o culto e ensinam (ou desensinam) a Lei, bem como as normas de conduta, as frequentes disputas e injustiças do povo. Tudo isto constitui profanação da Aliança celebrada entre Deus e o povo, a qual não pode reduzir-se a meras exterioridades, mas tem de ser vivida com inteligência, forças e coração.
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Fixando-nos à roda do Evangelho, verificamos que o texto refere o último dos ensinamentos públicos de Jesus. É de recordar que Jesus está em Jerusalém, muito próximo do momento da sua prisão, e foi mantendo duros confrontos com as diversas categorias de pessoas: sumos sacerdotes, anciãos, herodianos, escribas, fariseus, etc.. Não contesta a religiosidade judaica como tal, mas a tentativa de alguns, dos chefes em particular, alterarem os valores autênticos com atitudes sem coerência. Com este texto, Mateus chama a atenção da sua comunidade para os cristãos não caírem nos mesmos erros.
A perícopa divide-se em 2 partes distintas: vv.1-7, criticando o Mestre os que se sentaram na cadeira de Moisés (e dela abusaram); e vv.8-12, com as recomendações plasmadas em epígrafe. Porém, é de ter em conta que todo o capítulo 23 do Evangelho de Mateus, pronunciado perante a multidão e os discípulos, configura uma longa e terrível acusação contra os escribas e fariseustendo nós aqui a denúncia duma série de vícios. Jesus, a suma bondade, não despreza nem pretende condenar ninguém, mas quer a conversão de todos. Numa situação extrema, tenta um último recurso: a violenta denúncia pública, no estilo dos antigos profetas, mas com mais autoridade. Mais ainda: Jesus aparece não só a defender o povo humilde dos escândalos com que podia vir a ser desencaminhado, mas, acima de tudo, a estabelecer os princípios que hão de reger a vida dos cristãos: uma moral que se baseia na pureza do coração e na retidão de intenção, bem como um novo culto, não feito de exterioridades ocas. As cores negras das palavras de Jesus também refletem a época da redação definitiva do Evangelho, em que o farisaísmo que sobreviveu à destruição de Jerusalém tinha passado a uma posição hostil ao cristianismo; de facto, entre os contemporâneos de Jesus, havia fariseus e doutores da Lei muito respeitáveis, em especial na escola liberal como Hillel e Gamaliel I, para não falarmos de Nicodemos. De qualquer modo, Jesus não aparece a condenar as pessoas em si mesmas, mas a fustigá-las enquanto detentoras dos vícios denunciados.
O capítulo configura a condenação dos guias cegos de Israel, que se recusam a entrar no Reino messiânico e impedem a entrada nele ao povo eleito, a ponto de terem levado ao extremo a medida da iniquidade dos pais (v.32), tendo assim preparado a extrema desgraça do abandono divino (v.38). O discurso do capítulo, que prepara o dos últimos tempos (cc. 24-25), é um eco da polémica antijudaica com que se defrontou a Igreja primitiva. Podemos, pois, imaginar que as palavras originárias de Jesus se revestiram de tons e cores peculiarmente ásperos próprios de tal polémica. Os outros sinóticos referem apenas a parte da perícopa referente à hipocrisia dos escribas, mas Lucas coloca as duras invectivas contra os fariseus no cenário duma refeição oferecida a Jesus por um fariseu (cf Lc 11,37-52). Em Mateus, o discurso divide-se em 4 partes: a acusação de hipocrisia (vv.2-7); digressão recomendatória sobre a comunidade cristã perfeita (vv. 8-12) – já referidas –; as sete maldições (vv. 13-32); e o juízo condenatório (vv. 33-38), que encerra com um leve aceno de salvação (v.39). A referência ao ensino dos escribas, “sentados na cátedra de Moisés”, era real nas sinagogas, mas também encerra algo simbólico porque se tornou sinal de poder. Por isso, Jesus pregava estando sentado no chão (Mt 5,1), ao invés dos sentados na cátedra donde vociferavam arrogância e jactante soberba. Jesus não veio abolir a Lei, mas para a levar ao cabal cumprimento, isto é, os mandamentos autênticos são para pôr em prática: “Fazei e observai tudo o que eles vos dizem”, mas não façais o que eles fazem.
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Já no Sermão da Montanha Jesus tinha dito: “Se a vossa justiça não for superior à dos escribas e dos fariseus não entrareis no reino dos céus” (Mt 5,20), seguindo-se a interpretação autêntica da Lei: “Ouvistes o que foi dito… mas eu digo-vos”. Assim, supera a observância formal da Lei porque chegou o reino de Deus. Anunciando que o reino de Deus está aqui, Jesus oferece um novo critério de ação que não suprime a Lei, mas revela o seu sentido autêntico.
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A religiosidade pode ser puro motivo de exibicionismo (Mt 23, vv.5-7) contrário ao ensinamento no discurso da montanha. As boas obras devem-se praticar em segredo e não para que os outros vejam e louvem quem as faz. Mais importante para o discípulo não é o consenso social e o respeito dos homens, nem os títulos de honra (Rabbi – mestre). Ora, o trecho dos vv. 8-12, dada a sua tonalidade claramente “cristã”, segundo Angelo Lancellotti, parece estar fora do seu contexto original. É aqui mencionado mercê da referência à palavra “rabbi” (literalmente, “meu senhor” ou “meu mestre”) do v. 7, que o precede. “Rabbi” é o título honorífico que, desde o fim do século I dC, ficou reservado aos doutores da Lei. Dele se origina o termo “rabino”, conhecido.
Neste contexto de soberba arrogante e hipócrita dos fariseus, Jesus pede aos seus que não andem à cata de títulos honoríficos como expressão de preeminência, pois isto romperia o secreto e sagrado vínculo que une numa só família os diversos membros da comunidade cristã entre si e que, ao mesmo tempo, une esta comunidade a Deus Pai e a Cristo Mestre. E a recomendação de que a ninguém chamemos “pai”, contra qualquer aparência, dado o seu caráter tipicamente oriental, não pretende negar a atribuição de pai ao progenitor e a relação de piedade filial do filho para com o pai, mas, por um lado, não atribuir a ninguém indevidamente este título e, por outro, reconhecer que em Deus reside a fonte de toda a paternidade. Além disso, Jesus não pretende quebrar o vínculo espiritual de paternidade entre os mestres e os discípulos ou entre os chefes das comunidades e os seus membros, mas advertir os discípulos de que nunca serão donos da doutrina, não podendo, assim, tornar-se autorreferenciais e fixar definitivamente a doutrina, como faziam os fariseus. A referência evangélica é Jesus, que, por seu turno, se referencia ao Pai: “A minha doutrina não é minha, mas d’Aquele que me enviou” (Jo 7,16); e “Eu sou a verdadeira vide e meu Pai é o agricultor” (Jo 15,1). E aqui o mestre, que nunca se intitulou de Pai, mas chegou ao ponto de chamar “filhinhos” aos discípulos (vd Jo 13,33) e de dizer que não os deixaria órfãos (vd Jo 14,18), diz: “Na terra não chameis a ninguém vosso ‘Pai’, porque um só é o vosso pai, o Pai celeste” (Mt 23,9). A linguagem é chocante para vincar bem a lição a colher.
Deus é, pois, nosso Pai e ninguém se pode interpor a Ele. Por isso, o discípulo de Cristo deve evitar conferir a si mesmo alguns títulos: rabbi (mestre), pai, doutor – pois somos todos irmãos.
A comunidade de Jesus está delineada no discurso das Bem-aventuranças com suas exigências radicais. Esta comunidade tem o seu ideal no ‘serviço’ (Mt 20,28) do Filho do Homem, modelo da Igreja. A autoridade do chefe qua tali perde atração, já não um ideal: “O maior entre vós seja vosso servo” (v.11). Nas palavras de Jesus está muito mais que uma polémica com os escribas e fariseus, que uma exortação a sermos coerentes. É uma chamada de atenção à própria identidade dos discípulos, à novidade que eles são chamados a testemunhar.
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É esta relação com a paternidade divina, que inclui o lado materno, que na sua 1.ª Carta ao Tessalonicenses (vd 1TS 2,7b-9.13), Paulo revela toda a ternura que nutre para com os fiéis que fez nascer para a fé – “como a mãe que acalenta os filhos…” – e vai ao ponto de renunciar a receber qualquer recompensa pelo seu trabalho, não querendo tornar-se pesado, pois todo o seu desejo era “partilhar não só a fémas até a própria vida; ao mesmo tempo, assim, também afirmava a sua independência. No entanto, sabemos que recebia ajudas dos fiéis (cf 2Cor 11,8-9) e chegava reivindicar esse direito: “o Senhor ordenou que aqueles que anunciam o Evangelho vivam do Evangelho” (1Cor 9,3-14). Interessa, pois, que a vida cristã seja de equilíbrio e justiça, sem ambição, com desapego e despojamento até onde for necessário, sacrificada e devotada, mas não estoica – sempre com o sentido positivo e espiritual do sacrifício e mortificação, quando necessários, mas sempre redentores.
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Como notas de informação, diga-se que  os escribas ou doutores da Lei pertenciam, na sua maioria, ao partido dos fariseus, com a missão de ensinar ao povo a Lei de Moisés, quer a tradição escrita, quer a oral, daqui a expressão: “Na cadeira de Moisés sentaram-se…. Usavam as filactérias ou estojos de couro que continham fitas de pergaminho ou papiro escritas com as 4 passagens mais notáveis da Lei (Ex 13,1-10.11-16; Dt 6,4-9; 11,13-21). Os fariseus, interpretando materialmente Ex 13,9, levavam-nas atadas à testa e braço esquerdo (junto ao coração). Atribuíam-lhe um valor de proteção (espécie de amuleto). Daí o nome derivado do grego fylláttein, proteger. Mas alguns pensam que o nome vem do hebraico tefilim, orações, por se usarem especialmente quando se fazia oração. As borlas eram as franjas que habitualmente rematavam as capas e que os fariseus, usavam mais compridas que o comum das pessoas.
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Em suma, o importante é amar a Deus nos irmãos; e tornaremos o mundo melhor
Outrora muitos foram os que se desviaram do bom caminho. Não procederam bem aqueles que os imitaram. Que contas prestaram a Deus por tal procedimento? Os escribas e fariseus foram severamente censurados pelo Senhor. Impuseram aos outros o que não faziam. Que pena não aceitarem a conversão que Jesus Cristo lhes ofereceu! Hoje infelizmente há ainda quem assim proceda. Por isso, vemos tanta desorientação na sociedade; inventam-se obrigações que ninguém consegue cumprir, mas esquece-se o essencial: o amor a Deus e n’Ele ao próximo. Este é o único caminho a seguir, o caminho certo da salvação. Quem ama a Deus não comete o pecado, mas cumpre os Mandamentos, escuta-O e vive unido a Ele pela oração, recebe os sacramentos que Jesus Cristo nos deixou, faz bem aos outros, ajudando, aconselhando e acompanhando. Quem ama a Deus combate o crime, a destruição, os atentados, a guerra. Quem ama a Deus procura viver na verdade e na paz.
Outrora muitos seguiram o bom caminho. Os que os imitaram receberam de Deus força e coragem para seguirem em frente. Os Apóstolos e os Santos foram louvados pelo Senhor, pois com o exemplo apontaram aos outros aquilo em que acreditaram e, por isso, receberam no fim a recompensa merecida. Após a conversão, Paulo consagrou-se inteiramente ao Senhor no apostolado junto dos irmãos. Quantas conversões operou Deus por seu intermédio! Quantos cristãos se tornaram santos com a sua pregação!
Nós, cristãos do século XXI, neste início do III milénio, temos grande missão a cumprir no mundo. Quando entramos nas escolas, ainda vemos em muitas o Crucifixo onde está a imagem d’Aquele que nos salvou. Quantos alunos, professores, funcionários e pais encontram n’Ele a razão de ser das suas vidas! Porque é que o quiseram retirar? Só em nome dum laicismo fundamentalista, que não dum sadio republicanismo ou sã laicidade. Quando vamos pelas estradas do País vemos cruzeiros, alminhas, imagens de Nossa Senhora e dos santos. Não podemos consentir que as substituam por estátuas de pessoas que não são referência.
Quando se tenta legalizar a morte de inocentes no seio da mãe ou de idosos que tanto trabalharam para nós vivermos bem, temos de proclamar que a vida é um dom de Deus e que deve ser respeitada por todos. E, quando tudo se tenta enfraquecer ou destruir a família ou se tenta equiparar o casamento a aberrações que envergonham homens e mulheres, devemos recordar-nos de que a sociedade será feliz na medida em que as famílias forem felizes.
Quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado” (Mt 23,12) – assim termina o texto do evangelho desta XXXI dominga, pata exaltar a humildade (mesmo humilhação) voluntária, não a forçada.

2017.11.05 – Louro de Carvalho

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