A
recomendação de Cristo sintetizada em epígrafe, se levada à letra,
escandalizará quem repare na profusão de títulos académicos e honrarias,
cerimoniais e adereços que emolduram as pessoas que detêm responsabilidades
políticas, militares, académicas e religiosas. Quem não prefere o tratamento de
marechal e general ou almirante e vice-almirante, Professor Catedrático, Doutor,
Mestre, Eminência, Excelência Reverendíssima, Patriarca, Cardeal, Arcebispo,
Bispo, Monsenhor, Cónego, Padre…? É a expressão do carreirismo e subida, se
possível, a pique na hierarquia social, política, militar e eclesiástica que
domina pessoas e instituições em vez do profissionalismo, o título plasmado em
diploma pelo título baseado na competência certificada.
O
evangelho de Mateus assumido como proclamação e meditação da Boa Nova no XXXI
domingo do Tempo Comum no Ano A (Mt 23, 1-12) escalpeliza estas pretensões nos discípulos de
Cristo e que se tornam aberrantes no foro eclesiástico e nas sociedades
modeladas pelo cristianismo, por maioria de razão se os títulos são forjados ou
comprados e os cursos obtidos por meios pouco ortodoxos.
A
perícopa do Evangelho de Mateus reflete a “zanga de Deus” com os sacerdotes,
evidenciada pelo profeta Malaquias na passagem assumida como 1.ª leitura desta
XXXI dominga (Ml 1,14b; 2,
2b.8-10). Na
verdade, nas palavras deste profeta veterotestamentário, Deus censurou duramente os que se desviaram
do bom caminho e sobretudo aqueles que tinham a obrigação de ensinar os outros
a cumprir, mas foram, antes, ocasião de escândalo e de relaxamento da doutrina
e dos costumes. Malaquias, provável precursor das reformas religiosas de Esdras
e Neemias, censura, por meados do século V aC, os vícios, a negligência e a
falta de zelo dos sacerdotes.
E a perícopa foi escolhida, pelos liturgistas organizadores do
lecionário dominical, para 1.ª leitura em função do Evangelho em que Jesus
escalpeliza os vícios dos escribas e fariseus, na mesma linha da denúncia dos
profetas antigos, mas com uma autoridade muito superior.
A censura veiculada pelo profeta constitui uma espécie de ultimatum. Com efeito, Deus já não pode
suportar por mais tempo a maneira como alguns sacerdotes celebram o culto e ensinam
(ou
desensinam) a Lei, bem como as normas de conduta, as frequentes disputas e
injustiças do povo. Tudo isto constitui profanação da Aliança celebrada entre
Deus e o povo, a qual não pode reduzir-se a meras exterioridades, mas tem de
ser vivida com inteligência, forças e coração.
***
Fixando-nos
à roda do Evangelho, verificamos que o texto refere o último dos ensinamentos
públicos de Jesus. É de recordar que Jesus está em Jerusalém, muito próximo do
momento da sua prisão, e foi mantendo duros confrontos com as diversas
categorias de pessoas: sumos sacerdotes, anciãos, herodianos, escribas,
fariseus, etc.. Não contesta a religiosidade judaica como tal, mas a tentativa
de alguns, dos chefes em particular, alterarem os valores autênticos com
atitudes sem coerência. Com este texto, Mateus chama a atenção da sua
comunidade para os cristãos não caírem nos mesmos erros.
A perícopa
divide-se em 2 partes distintas: vv.1-7, criticando o Mestre os que se sentaram
na cadeira de Moisés (e dela
abusaram); e vv.8-12, com
as recomendações plasmadas em epígrafe. Porém, é de ter em conta que todo o
capítulo 23 do Evangelho de Mateus, pronunciado perante
a multidão e os discípulos, configura uma longa e terrível
acusação contra “os escribas e fariseus”, tendo nós aqui a denúncia duma série de vícios.
Jesus, a suma bondade, não despreza nem pretende condenar ninguém, mas quer a
conversão de todos. Numa situação extrema, tenta um último recurso: a violenta
denúncia pública, no estilo dos antigos profetas, mas com mais autoridade. Mais
ainda: Jesus aparece não só a defender o povo humilde dos escândalos com que
podia vir a ser desencaminhado, mas, acima de tudo, a estabelecer os princípios
que hão de reger a vida dos cristãos: uma moral que se baseia na pureza do
coração e na retidão de intenção, bem como um novo culto, não feito de
exterioridades ocas. As cores negras das palavras de Jesus também refletem a
época da redação definitiva do Evangelho, em que o farisaísmo que sobreviveu à
destruição de Jerusalém tinha passado a uma posição hostil ao cristianismo; de
facto, entre os contemporâneos de Jesus, havia fariseus e doutores da Lei muito
respeitáveis, em especial na escola liberal como Hillel e Gamaliel I, para não
falarmos de Nicodemos. De qualquer modo, Jesus não aparece a condenar as
pessoas em si mesmas, mas a fustigá-las enquanto detentoras dos vícios
denunciados.
O capítulo
configura a condenação dos guias cegos de Israel, que se recusam a entrar no
Reino messiânico e impedem a entrada nele ao povo eleito, a ponto de terem
levado ao extremo a medida da iniquidade dos pais (v.32), tendo assim preparado a extrema desgraça do
abandono divino (v.38). O discurso do capítulo, que
prepara o dos últimos tempos (cc. 24-25), é um
eco da polémica antijudaica com que se defrontou a Igreja primitiva. Podemos,
pois, imaginar que as palavras originárias de Jesus se revestiram de tons e
cores peculiarmente ásperos próprios de tal polémica. Os outros sinóticos
referem apenas a parte da perícopa referente à hipocrisia dos escribas, mas
Lucas coloca as duras invectivas contra os fariseus no cenário duma refeição
oferecida a Jesus por um fariseu (cf Lc 11,37-52). Em Mateus, o discurso divide-se em 4 partes: a acusação de
hipocrisia (vv.2-7); digressão recomendatória sobre a
comunidade cristã perfeita (vv. 8-12) – já
referidas –; as sete maldições (vv. 13-32); e o
juízo condenatório (vv.
33-38), que encerra com
um leve aceno de salvação (v.39). A referência
ao ensino dos escribas, “sentados na cátedra de Moisés”, era real nas
sinagogas, mas também encerra algo simbólico porque se tornou sinal de poder.
Por isso, Jesus pregava estando sentado no chão (Mt 5,1), ao invés dos sentados na cátedra donde vociferavam arrogância e
jactante soberba. Jesus não veio abolir a Lei, mas para a levar ao cabal
cumprimento, isto é, os mandamentos autênticos são para pôr em prática: “Fazei e observai tudo o que eles vos dizem”,
mas não façais o que eles fazem.
***
Já no Sermão da Montanha Jesus tinha dito: “Se a vossa justiça não for superior à dos
escribas e dos fariseus não entrareis no reino dos céus” (Mt 5,20), seguindo-se a interpretação autêntica da Lei: “Ouvistes o que foi dito… mas eu digo-vos”.
Assim, supera a observância formal da Lei porque chegou o reino de Deus.
Anunciando que o reino de Deus está aqui, Jesus oferece um novo critério de ação
que não suprime a Lei, mas revela o seu sentido autêntico.
***
A religiosidade pode ser puro motivo de exibicionismo (Mt 23, vv.5-7) contrário ao ensinamento no
discurso da montanha. As boas obras devem-se praticar em segredo e não para que
os outros vejam e louvem quem as faz. Mais importante para o discípulo não
é o consenso social e o respeito dos homens, nem os títulos de honra (Rabbi – mestre). Ora, o trecho dos vv. 8-12, dada a
sua tonalidade claramente “cristã”, segundo Angelo Lancellotti, parece estar
fora do seu contexto original. É aqui mencionado mercê da referência à palavra
“rabbi” (literalmente,
“meu senhor” ou “meu mestre”) do v. 7, que o precede. “Rabbi” é o título honorífico que, desde o fim
do século I dC, ficou reservado aos doutores da Lei. Dele se origina o termo
“rabino”, conhecido.
Neste contexto de soberba arrogante e hipócrita dos fariseus,
Jesus pede aos seus que não andem à cata de títulos honoríficos como expressão
de preeminência, pois isto romperia o secreto e sagrado vínculo que une numa só
família os diversos membros da comunidade cristã entre si e que, ao mesmo tempo,
une esta comunidade a Deus Pai e a Cristo Mestre. E a recomendação de que a
ninguém chamemos “pai”, contra qualquer aparência, dado o seu caráter
tipicamente oriental, não pretende negar a atribuição de pai ao progenitor e a
relação de piedade filial do filho para com o pai, mas, por um lado, não
atribuir a ninguém indevidamente este título e, por outro, reconhecer que em
Deus reside a fonte de toda a paternidade. Além disso, Jesus não pretende
quebrar o vínculo espiritual de paternidade entre os mestres e os discípulos ou
entre os chefes das comunidades e os seus membros, mas advertir os discípulos
de que nunca serão donos da doutrina, não podendo, assim, tornar-se
autorreferenciais e fixar definitivamente a doutrina, como faziam os fariseus.
A referência evangélica é Jesus, que, por seu turno, se referencia ao Pai: “A minha doutrina não é minha, mas d’Aquele
que me enviou” (Jo
7,16); e “Eu sou a verdadeira vide e meu Pai é o
agricultor” (Jo 15,1). E aqui o mestre, que nunca se
intitulou de Pai, mas chegou ao ponto de chamar “filhinhos” aos discípulos (vd Jo 13,33) e de dizer que não os deixaria
órfãos (vd Jo 14,18), diz: “Na
terra não chameis a ninguém vosso ‘Pai’, porque um só é o vosso pai, o Pai
celeste” (Mt 23,9). A linguagem é
chocante para vincar bem a lição a colher.
Deus é, pois, nosso Pai e ninguém se pode interpor a Ele. Por
isso, o discípulo de Cristo deve evitar conferir a si mesmo alguns títulos: rabbi (mestre), pai, doutor – pois somos todos irmãos.
A comunidade de Jesus está delineada no discurso das Bem-aventuranças
com suas exigências radicais. Esta comunidade tem o seu ideal no ‘serviço’ (Mt 20,28) do Filho do Homem, modelo da Igreja. A autoridade do
chefe qua tali perde atração, já não
um ideal: “O maior entre vós seja vosso
servo” (v.11). Nas palavras de Jesus está muito
mais que uma polémica com os escribas e fariseus, que uma exortação a sermos
coerentes. É uma chamada de atenção à própria identidade dos discípulos, à
novidade que eles são chamados a testemunhar.
***
É esta
relação com a paternidade divina, que inclui o lado materno, que na sua 1.ª Carta
ao Tessalonicenses (vd
1TS 2,7b-9.13), Paulo
revela toda a ternura que nutre para com os fiéis que fez nascer para a fé – “como a mãe que acalenta os filhos…” – e vai ao ponto de renunciar a receber
qualquer recompensa pelo seu trabalho, não querendo tornar-se pesado, pois todo
o seu desejo era “partilhar não só a fé”, mas “até a própria vida”; ao mesmo tempo, assim, também afirmava a sua
independência. No entanto, sabemos que recebia ajudas dos fiéis (cf 2Cor 11,8-9) e chegava reivindicar
esse direito: “o Senhor ordenou que
aqueles que anunciam o Evangelho vivam do Evangelho” (1Cor 9,3-14). Interessa, pois,
que a vida cristã seja de equilíbrio e justiça, sem ambição, com desapego e
despojamento até onde for necessário, sacrificada e devotada, mas não estoica –
sempre com o sentido positivo e espiritual do sacrifício e mortificação, quando
necessários, mas sempre redentores.
***
Como notas de informação, diga-se
que os escribas ou doutores da Lei pertenciam,
na sua maioria, ao partido dos fariseus, com a missão de ensinar ao povo a Lei
de Moisés, quer a tradição escrita, quer a oral, daqui a expressão: “Na cadeira de Moisés sentaram-se…”. Usavam as filactérias ou estojos de couro que continham fitas de pergaminho ou
papiro escritas com as 4 passagens mais notáveis da Lei (Ex 13,1-10.11-16; Dt 6,4-9;
11,13-21). Os fariseus,
interpretando materialmente Ex 13,9, levavam-nas atadas à testa e braço esquerdo (junto ao coração). Atribuíam-lhe um valor de proteção
(espécie de amuleto). Daí o nome derivado do grego fylláttein, proteger. Mas alguns pensam que o
nome vem do hebraico tefilim, orações,
por se usarem especialmente quando se fazia oração. As borlas eram as franjas que habitualmente rematavam
as capas e que os fariseus, usavam mais compridas que o comum das pessoas.
***
Em suma, o
importante é amar a Deus nos irmãos; e tornaremos o mundo melhor
Outrora
muitos foram os que se desviaram do bom caminho. Não procederam bem aqueles que
os imitaram. Que contas prestaram a Deus por tal procedimento? Os escribas e
fariseus foram severamente censurados pelo Senhor. Impuseram aos outros o que
não faziam. Que pena não aceitarem a conversão que Jesus Cristo lhes ofereceu! Hoje
infelizmente há ainda quem assim proceda. Por isso, vemos tanta desorientação
na sociedade; inventam-se obrigações que ninguém consegue cumprir, mas esquece-se
o essencial: o amor a Deus e n’Ele ao
próximo. Este é o único caminho a seguir, o caminho certo da salvação. Quem
ama a Deus não comete o pecado, mas cumpre os Mandamentos, escuta-O e vive
unido a Ele pela oração, recebe os sacramentos que Jesus Cristo nos deixou, faz
bem aos outros, ajudando, aconselhando e acompanhando. Quem ama a Deus combate
o crime, a destruição, os atentados, a guerra. Quem ama a Deus procura viver na
verdade e na paz.
Outrora
muitos seguiram o bom caminho. Os que os imitaram receberam de Deus força e
coragem para seguirem em frente. Os Apóstolos e os Santos foram louvados pelo
Senhor, pois com o exemplo apontaram aos outros aquilo em que acreditaram e,
por isso, receberam no fim a recompensa merecida. Após a conversão, Paulo consagrou-se
inteiramente ao Senhor no apostolado junto dos irmãos. Quantas conversões
operou Deus por seu intermédio! Quantos cristãos se tornaram santos com a sua
pregação!
Nós, cristãos
do século XXI, neste início do III milénio, temos grande missão a cumprir no
mundo. Quando entramos nas escolas, ainda vemos em muitas o Crucifixo onde está
a imagem d’Aquele que nos salvou. Quantos alunos, professores, funcionários e
pais encontram n’Ele a razão de ser das suas vidas! Porque é que o quiseram
retirar? Só em nome dum laicismo fundamentalista, que não dum sadio
republicanismo ou sã laicidade. Quando vamos pelas estradas do País vemos
cruzeiros, alminhas, imagens de Nossa
Senhora e dos santos. Não podemos consentir que as substituam por estátuas de
pessoas que não são referência.
Quando se
tenta legalizar a morte de inocentes no seio da mãe ou de idosos que tanto
trabalharam para nós vivermos bem, temos de proclamar que a vida é um dom de
Deus e que deve ser respeitada por todos. E, quando tudo se tenta enfraquecer
ou destruir a família ou se tenta equiparar o casamento a aberrações que
envergonham homens e mulheres, devemos recordar-nos de que a sociedade será
feliz na medida em que as famílias forem felizes.
“Quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado”
(Mt 23,12) – assim termina o texto do evangelho desta XXXI
dominga, pata exaltar a humildade (mesmo humilhação) voluntária, não
a forçada.
2017.11.05 – Louro de Carvalho
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