quarta-feira, 1 de novembro de 2017

O Presidente da República não mudou, cavalga as circunstâncias

No passado dia 18 de outubro, no rescaldo incendiário do fim de semana anterior, O Presidente da República, a partir dos Paços do Município de Oliveira do Hospital, fez um discurso aparentemente muito duro, que deixou perplexos observadores habitualmente menos atentos.
Com efeito, face ao cenário de destruição geral que varreu o país de alto a baixo e de lado a lado, mas com especial incidência na Região Centro, o Professor de Direito Público repetiu algo que todos sabemos, mas que soube a ameaça, segundo uns, e a colagem, segundo outros. Todos sabemos que os deputados, nomeadamente os que lhe garantem a existência, têm de decidir se querem manter um governo ou substituí-lo. A novidade reside apenas em tal asserção ser proferida como resposta ao desaire daqueles dias, em que, além das largas dezenas de feridos, se juntaram 45 vítimas mortais às 65 já herdadas dos incêndios de Pedrógão Grande (e concelhos limítrofes) de 17 a 22 de junho. Por outro lado, já se sabia que o CDS/PP tinha em curso a apresentação da sua moção de censura ao Governo. Quereria o Presidente que António Costa solicitasse uma moção de confiança, sendo o resultado o mesmo em termos de reforço da legitimidade governativa. Porém, para o leque partidário que viabiliza o Governo, era mais difícil a aprovação positiva de moção de confiança que a negação do voto favorável a moção de censura, compatível com umas críticas que, entretanto, pudessem (e puderam)  fazer ao Governo.
Seria intenção de Marcelo provocar António Costa? Então, se é assim tão efetivamente poderoso o Presidente, que o tivesse dito. Poderia ter exonerado o Primeiro-Ministro, alegando a garantia do regular funcionamento das instituições democráticas, ou dissolvido o Parlamento, invocando a excecionalidade da situação. Porque não o fez? Teve receio de que novas eleições legislativas não viessem a configurar novo ciclo político, como esperava das autárquicas? No entanto, insiste em falar de um novo ciclo… Com os mesmos protagonistas? A remodelação governamental limitou-se à criação de uma nova Secretaria de Estado, exoneração de uma Ministra, passagem de um titular duma pasta para outra e entrada de uma nova figura para a pasta ministerial que vagara!

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Marcelo, que soube dizer que não houvera ainda tempo de tirar consequências dos relatórios entregues há poucos dias ao Governo e tomar as medidas adequadas – mas se esqueceu de o acusar de não ter aprendido nada com os factos de junho – disse que esta era a única oportunidade que o Governo tinha de mostrar o que valia em termos do zelo pelo interesse público, ou seja, segundo alguns, exigiu ao Governo mudança de vida e acusou Costa de não ter, até então, entendido o que se passou no país (esqueceu o Conselho de Ministros extraordinário agendado para o sábado seguinte!). E prometeu atuar até ao limite dos seus poderes constitucionais (aliás acima discriminados) se não houver uma mudança de vida consistente.
Chegam a dizer que o discurso configurou a demissão em público da Ministra da Administração Interna, que já estava agendada, pelos vistos. Só me pergunto porque não foi exonerado o Ministro da Defesa, que não conseguiu assegurar a defesa de instalações militares nem empenhar de forma racional e eficaz os militares no apoio à situação materialmente calamitosa que o país viveu e, quando fala mete os pés pela mãos e vice-versa, sem nada vir a ser esclarecido; o Ministro do Ambiente (inocente nisto tudo); o Ministro da Agricultura, que diz uma coisa e o seu contrário, como, por exemplo, que a gestão do Pinhal de Leiria era a adequada, mas admitiu que possa ser alterada. Ora, há uns dez anos, não se investe na sua limpeza… por outro lado, em gestão adequada não se mexe, a não ser por capricho pessoal ou político.
O Presidente disse esperar que o Governo
Nessas decisões não se esqueça daquilo que nos últimos dias confirmou ou ampliou as lições de junho e olhe para estas gentes, para o seu sofrimento com maior atenção ainda do que aquela que merecem os que têm os poderes de manifestação pública em Lisboa”.
Segundo a revista “Visão”,
A gestão do governo das tragédias – envolta na frieza caraterística do Primeiro-Ministro, com a ajuda da ministra da Administração Interna a aludir às ‘férias que não teve’ e a pedir ‘resiliência’ às populações em chamas ou o Secretário de Estado Jorge Gomes a dizer que cada um dos cidadãos não podia estar à espera do Estado – foi massacrada em várias passagens do discurso do Presidente. Segundo Marcelo, até ao momento, Costa e o seu Governo têm demonstrado não ter entendido nada do essencial do que se passou no nosso país”.
E Marcelo foi duro:
Podemos e devemos dizer que a única forma de verdadeiramente pedir desculpa às vítimas de junho e outubro – e de facto é justificável que se peça desculpa [coisa que o governo sempre recusou fazer até há pouco] – é, por um lado, reconhecer com humildade que portugueses houve que não viram os poderes públicos como garante de segurança e de confiança; e, por outro lado, romper com o que motivou fragilidade ou motiva o desalento ou a descrença dos portugueses”.
Marcelo é arrogante, duríssimo e provocante ao dizer:
Quem não entenda isto, humildade cívica e rutura com o que não provou ou não convenceu, não entendeu nada do essencial do que se passou no nosso país”.
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Fala-se bem quando se joga com o drama das pessoas sem se ter a responsabilidade de lhes dar resposta e sendo duro para com os presumíveis e nominais responsáveis pela alocação de meios.
Às vezes ainda penso como agiria Marcelo se tivesse as funções de Primeiro-Ministro ou de um dos Ministros com visibilidade executiva. O único lugar executivo que teve foi o transitório de Ministro dos Assuntos Parlamentares (1982-1983) num Governo de Pinto Balsemão, tendo sido antes Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares (1981-1982).
No entanto, não podemos deixar de pensar que Marcelo sempre foi uma pessoa muito influente. E a influência é importante forma de poder, embora informal. Não foi preciso aparecer o Presidente Mário Soares a invocar, para lá dos poderes formais, como prerrogativa presidencial a chamada magistratura de influência que todos os Presidentes da República utilizaram, embora cada um a seu modo. Estranho modo de exercer o poder de influência era o de Américo Thomaz: falar de improviso em cerimónias públicas menos formais, para não ter de ler discurso alheio; falar com insistência ao interlocutor a convencê-lo deixando-o em pose incómoda até ele ceder; ou dizer a Salazar que, a adotar tal ou tal solução, teria de arranjar outro Chefe de Estado.
Marcelo, além da influência social e política de bastidores, sempre usou da pena e da voz para se pronunciar sobre tudo e todos, atribuindo notas a vários políticos, nem sempre da forma mais adequada e justa, através da Imprensa em que sobressaía o Expresso e, sobretudo, através dos comentários televisivos. Quem não se lembra dos juízos negativos de valor que fazia sobre os ministros de Santa Lopes e do próprio Primeiro-Ministro? Confesso que durante uma boa temporada era assíduo espectador da TVI para ouvir Marcelo. Se nem sempre concordava com as suas asserções, ficava a saber dos factos principais da semana. Deixei-me disso quando ele se tornou mais importante que os factos ou mudou de figurino passando a responder de qualquer forma a perguntas de telespectadores e a abordar os diversos temas de forma muito superficial e a fugir do âmago das questões quando poderia sentir-se minimamente envolvido. Depois, falava sistematicamente ex-catedra com expressões como: “as pessoas não sabem”; “o povinho não percebe”; “é assim, ponto final, parágrafo”; “qualquer estudante do 1.º ano de direito o sabe” … – ou corrigindo expressões do português nem sempre de forma mais ajustada.
Contudo, movia meio mundo com iniciativas do género de concursos, oferta de livros, certames, prendas a e de entrevistadores… Antecipava notícias, soluções, factos; perguntava; e retratava-se quase humildemente com os reparos de A ou C, que lhe chegavam por telefone, e-mail ou cartas.
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Foi com base neste seu estilo polífono e polígrafo que se atreveu a candidatar-se a Belém quase como “o candidato” entre a dezena de candidatos que se perfilaram (sem contar a dúzia das não concretizadas). Na campanha, sem ideias e comícios fortes, valeu-lhe o capital acumulado na comunicação social e nas poucas iniciativas políticas tomadas, como a exigência dos referendos para a IVG e para a regionalização, o ataque ao totonegócio, uma tentativa de AD. E a sua deambulação pré-presidencial pelo país foi um passeio de convivência, afetos, fogaças, copos, conversas e uma peregrinação para Belém, aonde Marcelo podia chegar a cavalo, de automóvel, de elétrico, de autocarro, de comboio, de metro, de barco, de avião, de helicóptero ou a pé (o que fez no percurso entre a casa em que pernoitou e o Palácio antes a tomada de posse). Enfim, chegou a Belém praticamente sem gastos eleitorais, como o avozinho simpático a mimar os netinhos.
E o passado dia 5 de junho comprova esse estatuto de proximidade em todo o lado (feito Papa Francisco civil), com todas as pessoas e de afetos. Com efeito, segundo a Comunicação Social de então, o Chefe de Estado escolheu a casa onde nasceu Manuel de Arriaga para homenageá-lo, para receber líderes partidários açorianos e destacar as qualidades do primeiro Presidente da República, considerando-o “um homem de diálogo” e “um pacificador”.
De visita à ilha do Faial, nos Açores, mais precisamente na cidade da Horta, o Presidente recebeu em breves audiências os líderes parlamentares dos seis partidos com assento na Assembleia Legislativa Regional dos Açores, na casa em que nasceu Arriaga, para conhecer as visões dos diferentes partidos sobre a situação política, económica e social do arquipélago, mas também enfatizar um estilo de presidência. A escolha do local dos encontros “não foi por acaso”, admitiu Marcelo, que quis homenagear o perfil político de Arriaga. E disse:
Foi um Presidente da República muito importante porque foi um pacificador e um homem de diálogo num período complexo do nascimento da república portuguesa.
Marcelo considerou que hoje a situação política do país é distinta, pois “a democracia portuguesa está estabilizada, a república portuguesa está estabilizadíssima”. E acrescentou que “o papel do Presidente Manuel Arriaga era muitíssimo mais complicado do que o papel do atual Presidente da República”. Não obstante não rejeita a comparação com o antecessor, bem pelo contrário. Garantiu que, ao ouvir os partidos açorianos, além do Governo Regional, melhora o estado da “democracia”, à semelhança do que fez Manuel de Arriaga noutros tempos. E disse que “as semelhanças estarão porventura na forma como ele tentou conduzir o seu magistério presidencial”, descrevendo: “com paciência, com diálogo, com o estabelecimento de pontes, e de plataformas”. Admitiu que “é muito mais fácil fazer isso hoje do que era no arranque da primeira república”. Porém, Marcelo sabe que a “paciência” também se faz com popularidade e a do atual presidente ganha pontos a cada dia que passa, na descrispação e pontificação.
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Todavia, Marcelo não se limita à magistratura de influência; pratica a de interferência. Chegou a estar com o Governo, a ir a reboque das decisões governativas e a antecipar-se ao Governo e ao Parlamento. Quis as celebrações do Dia de Portugal, presididas por si, também fora da Europa; atirou-se ao acordo ortográfico, sem êxito; impôs um regime de transição na avaliação externa dos alunos do ensino básico; interferiu na questão dos contratos de associação do ME com os colégios; condicionou a reforma da gestão da flexibilização curricular com base no perfil do aluno para o século XXI; interveio nas questões do BPI e da CGD; impôs uma interpretação dum decreto-lei (sobre a CGD) que promulgou atrelando a si o Governo, os partidos e o TC; pôs publicamente Centeno em xeque (CGD/MF); propôs um pacto da justiça entre os operadores da justiça para induzirem os partidos; abordou a hipótese de uma revisão constitucional (o que Aníbal também fizera arrastando atrás de si um chorrilho de críticas); dá opinião antes da produção dum normativo legal; explica porque promulga ou não diplomas do Governo ou do Parlamento; fala de tudo e mais alguma coisa; queixa-se de que, quando vira à direita, a direita está entretida com a esquerda; estrangula pretensões da direita e abafa excessos da esquerda, mas ampara as duas.
O Presidente mudou? Não. Mudaram algumas circunstâncias e palavras (Vulpes mutat pilum, non mores). E Costa teve de abandonar alguma frieza e algum otimismo, de que Marcelo o acusava tácita e explicitamente. Gosta do Governo? Este não é o Governo da sua área. Dá-se bem com ele? Que remédio! Demite o Governo ou dissolve o Parlamento? Não, pelo menos enquanto não se convencer que a solução pode ser inequivocamente favorável à formação antissituacional.
Furto e recuperação de armas, incêndios, catástrofes? Quer tudo investigado, doa a quem doer; e tudo bem explicado. Sim, senhor inquiridor. Sim, senhor professor. Há casas a reconstruir, plantio a repor, animais a recuperar ou a reproduzir? E vem a sentença: “É tempo de ‘arregaçar as mangas’ e reforçar compromisso com os cidadãos”; “a ‘solidariedade institucional’ entre os órgãos de poder passa por um compromisso com os portugueses”; “já todos reconheceram os erros, até António Costa reconheceu que o Estado falhou”.
Quanto a críticas ou à hipótese de o Governo ter ficado chocado com o país, Marcelo, o detentor daquele poder que paira sobre a terra, sobre as pessoas, sobre o tempo – um poder superior, que tudo tem a exigir (muito mais que um poder moderador) – reage respondendo que só fica chocado quem vê que não se choca com o estado do país quem o devia fazer, devendo tratar de agir.
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Em entrevista à TVI, António Costa foi questionado repetidamente sobre a comunicação ao país do Presidente na sequência dos incêndios de outubro, mas escusou-se a responder se sentiu deslealdade, traição ou choque face a esse discurso. E declarou:
Um dos bons contributos que o Primeiro-Ministro deve dar para um bom relacionamento institucional do Presidente da República é não comentar a atividade do Presidente da República”.
E alegou, em seguida:
Aos cidadãos o que interessa é que o Primeiro-Ministro tenha com o Presidente da República uma relação franca, leal, de cooperação institucional, que tem sido muito saudável para o país, e que seria uma enorme perda para o país que fosse prejudicada. […]. O país já tem um excesso de problemas para acrescentar os problemas institucionais ao que já existe. Já chega o que há.”.
Interrogado sobre o clima de crispação entre o executivo e o Chefe de Estado, Costa rejeitou qualquer contributo seu nesse sentido: “Da minha parte, não há crispação nenhuma”.
E, entre congratulação e advertência, lá seguirá como até a agora a relação Belém/São Bento!

2017.11.01 – Louro de Carvalho

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