sábado, 25 de novembro de 2017

A tragédia que a miséria acolheu e Salazar quis ocultar

Foi há 50 anos. Na noite de 25 para 26 de novembro de 1967, a água caída em catadupas do céu revolto arrasou arredores da cidade de Lisboa e concelhos circunvizinhos. Foi a quantidade de água, acompanhada do transporte forçado de barracas, adobes e outros materiais e lixos, a causadora da tragédia que vitimou (diz-se) 700 pessoas, mas não se sabe ao certo quantas, pois Salazar parou de contá-las ao número 462. Houve 1100 desalojados e 20 mil casas destruídas pela enxurrada e pela chuva que, naquela noite, representou 1/5 da precipitação do ano.  
Era sábado como este ano. A 25 de novembro de 1967, o dia tinha sido beneficiado por alguns chuviscos. Se em 1965 e 1966 tinha chovido mais do que nos últimos 80 anos, 1967 estava a ser um ano particularmente seco. Não tinha chovido o outono inteiro e aquela chuvinha de molha-tolos era refrigério de culturas e cabeças. Tudo, porém, mudou entre as sete da tarde e a meia-noite. Às duas da manhã, a tromba de água fez com que a água entrasse pelas casas, casebres, casinhotos, barracas e adobes das zonas baixas da península de Lisboa e levantasse as camas até ao teto em Vila Franca de Xira, Alhandra, Cascais, Alenquer, Loures, Odivelas e Oeiras.
Também o centro de Lisboa e de Cascais sofreram fortes inundações, mas nada que a prontidão das forças de socorro não tenham resolvido com alguma rapidez. Não era assim nos outros lugares acima indicados, para onde se tinham deslocado, a fugir da penúria miserável das aldeias e seus campos – palcos de vida cada vez mais madrasta cruel –, milhares e milhares de cidadãos e cidadãs que de cidadania apenas tinham a cédula pessoal. Os chefes de família para ali deslocados, primeiro sozinhos, depois chamando mulher e filhos, comungavam da pobreza do trabalho dos pequenos, que se alimentava do capricho pouco escrupuloso dos ricos e grandes. As obras, as fábricas, os transportes e a florestação de Monsanto absorveram muita da mão de obra baratinha e sofrida. As casas, feitas de lata (sobretudo de zinco, nome dado à folha de Flandres), tábuas, pregos, barro, nas colinas expostas ao sol ou nas encostas abrigadas dos ventos fortes, ou adobes à beira das linhas de água (ribeiras, regatos, corgos, arroios…) – era o abrigo e a proximidade de água que interessavam –, serviam de pernoita incómoda e de refúgio precário a desafiar as pequenas e granes tormentas. Não havia dinheiro para mais e a resignação fora o remédio para a vida que deixava entrar algum dinheiro nas carteiras da família, de modo que se pudesse viver com um pouco mais de desafogo e sustento que na aldeia de origem, pagando dívidas de família acumuladas, mas mantendo as mulheres a costura rudimentar, as crianças o jogo do pino, da macaca, das pedrinhas e da bola, e os homens o copinho de três e o jogo das cartas na tasca mais próxima nos tempos livres.
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Enquanto toda a gente dormia, com exceção dos que cumpriam turnos de trabalho, o nível da água do Tejo subia quatro metros em cinco horas. De noite chovera um quinto do que choveu em todo o ano. E a água enlameada e emaranhada de detritos deixara depois um rasto de destruição e morte e destruição: terão morrido mais de 700 pessoas, só no primeiro dos três dias de chuva constante. Mas o regime ditatorial, travestido de Estado Novo e Estado Corporativo e Social, exigiu que os jornais parassem de contar os mortos: para Salazar, os números ficaram em 462 (O contador avariou-lhe!). E não se podia falar de cheiro a cadáver, sendo que os títulos não podiam exceder metade da página de jornal. Tragédia medida a régua e esquadro!
Porém, os números eram tudo menos coerentes: passados 50 dias das grandes cheias de Lisboa, ainda apareciam corpos por debaixo das ruas enlameadas e dos edifícios destruídos pela força das correntes, mas as cheias de 1967 já não eram notícia dos jornais por essa altura. No domingo seguinte, o Diário de Lisboa fazia manchete com os “mais de 200 mortos” que tinham sido anunciados até então. A avenida de Ceuta, em Lisboa, ficou debaixo de água, a avenida da Índia encheu-se de lama, as linhas de comboio estiveram submersas e a avenida da Liberdade e a praça de Espanha mais pareciam piscinas que praças ou largas e longas artérias. A 29 de novembro, o Diário de Notícias confirmava 427 mortos e as autoridades atualizaram o número de vítimas mortais para 462. A península da capital não sofria cataclismo tão mortífero e destruidor desde o terramoto de 1755. Só que, ao contrário de então, em que não se impediu a exportação das notícias, a ponto de a Europa se comover perante o caso português, e se empenhou o Reino em enterrar os mortos e cuidar dos vivos, agora o Estado resolveu meter a cabeça na areia. A partir de determinada hora, não haveria mais notícias sobre o caso, porque as que havia eram travadas pela censura. O Governo passou a mandar documentos para as redações na tentativa de suavizar as notícias sobre o desastre cuja dimensão estava à vista de todos. Era conveniente ir atenuando a história: não adiantavam urnas e coisas semelhantes; e era chocante… Era altura de pôr os títulos mais pequenos as notícias irem à censura, apesar de terem ficado destruídas mais de 20 mil casas, pois em alguns locais do distrito de Lisboa, a água chegou a concentrar-se num volume de 170 litros por metro quadrado.
Não obstante o esforço do Estado em abafar o acontecimento, houve um grupo de pessoas que não se calou e não se vergou ao lápis azul dos censores: os estudantes. Dizem as crónicas que Jorge Simões e José Brazão estavam com Zeca Afonso numa viagem de Coimbra para Lisboa quando, pela rádio, souberam do que estava a acontecer. Juntaram-se a António Alves Redol, que já não estudava, mas continuava ligado à associação de estudantes, no Instituto Superior Técnico para engendrarem um plano para ajudar a população: à Rádio Renascença, Danilo Matos, um dos estudantes que participou na iniciativa, disse que a causa de tanta desgraça não foi a chuva, mas a miséria. Os estudantes puseram a nu as condições sociais em que muitas pessoas viviam na cidade e arredores, bem como a inoperância e hipocrisia do Governo, que mal se interessava por enterrar os motos e cuidar dos vivos. O governo atrasou-se, paralisou, só mandou para o terreno o Movimento Nacional Feminino, que atrapalhava, e a GNR, a polícia preparada para reprimir e não para salvar. Tal inoperância, que deixou sapadores e bombeiros marcados pela insuficiência de deslocação e meios, gerou enorme revolta na população.
O “Solidariedade Estudantil”, jornal que surgiu depois das inundações, era o único que fugia à censura e vendia 10 mil exemplares por número. Inundações e enxurrada foram tão catastróficas que mereceram a atenção internacional: Terence Spencer, o fotógrafo inglês vencedor de um World Press Photo em 1968, veio a Portugal fotografar sem filtros ditatoriais os cadáveres, a lama e os escombros pelas ruas lisboetas. Vendeu as fotografias à revista LIFE e a notícia sobre as cheias foram publicadas a 8 de dezembro. O artigo não tinha mais que um parágrafo e, embora sublinhasse a falta de ordenamento urbanístico em Lisboa, ficou-se pelo número oficial de mortos, muito inferior ao real, que só foi desvendado depois do 25 de Abril.
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Marcelo Rebelo de Sousa na altura esteve no socorro às vítimas.
Agora o Presidente diz que, em ditadura, há 50 anos, “era possível haver tragédias e nunca ninguém percebia bem quais eram os contornos, sendo tal desconhecimento público possível por não haver “um ministério público autónomo, juízes independentes e comunicação social livre”, o que em democracia existe.
Era preciso tirar os mortos da lama, carregá-los de braços ao alto em tábuas, pois não havia macas – nem, na maior parte dos sítios, carro que passasse – e levá-los até ao quartel dos bombeiros. Os corpos eram contados e levados para o Instituto de Medicina Legal, onde eram arrumados por área de origem. E o instituto estava cheiinho até acima. A enxurrada matou famílias inteiras, arrastou carros, árvores e animais e destruiu pontes, estradas e casas. E ficaram cerca de 1100 desalojados em Lisboa, Loures, Odivelas, Vila Franca de Xira e Alenquer. A chuva atingiu de noite as zonas baixas dos quatro concelhos da Grande Lisboa, mas só na manhã seguinte é que os portugueses se depararam com a verdadeira dimensão da tragédia. Urmeira, Póvoa de Santo Adrião, Frielas – povoações da bacia do rio Trancão –, e a Quinta dos Silvados, em Odivelas, foram os aglomerados urbanos mais atingidos. As casas eram de madeira e centenas de moradores foram engolidos pelas águas. Lisboa, por seu turno, ficou irreconhecível. A Avenida de Ceuta, em Alcântara, esteve submersa e o mar de lama desceu até à Avenida da Índia. A água entrou em todas as bifurcações, subiu e desceu escadarias, derrubou as portas de tabernas, lojas e rés-do-chão, arrastando mesas, cadeiras, bilhas de gás, contentores e bidões da estação ferroviária.
Perto das 23 horas a chuva irrompeu com mais força e as enxurradas atingiram um carro que circulava na Rua de Alcântara, encurralando os três ocupantes. Um soldado mergulhou nas águas e conseguiu retirar os três passageiros, minutos antes de o carro ser arrastado. Sucederam-se interrupções no trânsito desde a Avenida 24 de Julho ao Campo Pequeno, da zona do aeroporto da Portela à Avenida Almirante Reis, da Baixa a Santa Apolónia. Na Praça de Espanha e na Avenida da Liberdade, só se passava de barco e, na estação de caminhos-de-ferro, centenas de pessoas ficaram retidas nas carruagens porque a água submergiu as linhas.
Mesmo tendo o regime minimizado os impactos das chuvas, as suas repercussões atravessaram fronteiras e desencadearam um movimento de solidariedade internacional. Chegaram donativos dos Governo britânico e do Governo italiano, do Principado do Mónaco e mesmo o Chefe do Estado francês, o general De Gaulle, contribuiu com uma “dádiva pessoal” de 30 mil francos. O apoio em meios sanitários veio de França, Suíça e sobretudo de Espanha, que ofereceu mil doses de vacina contra a febre tifoide, que os estudantes da JUC (Juventude Universitária Católica) e da JEC (Juventude Escolar Católica), à revelia do Estado aplicavam aos sobreviventes, a quem entregavam víveres, medicamentos e roupas.
A maioria das vítimas vivia em habitações construídas em vales de cheia. 4 concelhos da Grande Lisboa foram afetados – Lisboa, Loures (e Odivelas, que ainda não era concelho), Vila Franca de Xira e Alenquer. 1100 desalojados perderam casa, gado e outros bens. Os prejuízos atingiram 3 milhões de dólares (preços da época). 111mm por m2 foi a precipitação registada em 5 horas (25% da precipitação média anual).
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Contra o que Salazar previa e muito menos desejaria, o evento foi ocasião de tomada de consciência crítica em relação ao regime. A politização aconteceu.
A máscara humanitária do regime caiu e ficou a nu a crueza e a podridão.
Foi de 5 mil o número de alunos que ajudaram as vítimas, um movimento que marcou uma geração e que se antecipou ao Maio de 68 parisiense.
No domingo, dia 26, os corifeus da ajuda humanitária foram todos para o Instituto Superior Técnico, onde estudavam, para tentarem perceber o que se estava a passar. António Alves Redol, filho do escritor com o mesmo nome (1911-1969), já tinha acabado o curso, mas continuava muito ligado à associação de estudantes. Sem sair do Técnico, foi um dos principais organizadores da ajuda estudantil às vítimas das cheias, uma ajuda proposta pela Juventude Universitária Católica, que conhecia o terreno, mas não tinha meios. Recorda:
Era no Técnico que recebíamos as inscrições dos estudantes, formávamos as equipas e distribuíamo-las pelo terreno depois de devidamente equipadas. Houve dias em que chegaram a estar mil estudantes a trabalhar ao mesmo tempo. Na altura, fizeram-se as contas e concluiu-se que os estudantes executaram, no total, 44 mil horas de trabalho.”.
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Os especialistas dizem que só chove assim de cem em cem anos. O ano de 1967 foi seco e o outono começou sem chuva. Só no início de novembro é que se começou a verificar uma sequência de dias chuvosos. O geógrafo Francisco Costa, que vem estudando o fenómeno das cheias, não tem dúvidas em afirmar que se tratou de “um fenómeno anormal, excecional mesmo à escala centenária, de grande concentração de chuva”. Segundo o IPMA, a probabilidade de um evento destes acontecer é de uma vez em cada cem anos.
Centenas de pessoas morreram. Oficialmente, foram 462, mas na realidade podem ter chegado ou ultrapassado as 700. Bairros e aldeias foram levados pelas cheias e pela lama, 20 mil casas ficaram danificadas, os prejuízos foram calculados em 3 milhões de dólares a preços da época – cerca de 20 milhões de dólares (mais de 17 milhões de euros) a preços atuais. Trata-se de prejuízos incomparáveis mesmo com outras cheias na Grande Lisboa.
Francisco Costa exemplifica com as cheias de 1983, que provocaram a morte de sete pessoas e danificaram 650 habitações. Acrescenta ainda a contabilidade das cheias de 2008, que provocaram um morto, um desaparecido e problemas na circulação.
Precipitação acumulada em 24 horas, a 26 de Novembro de 1967, na região de Lisboa. Estes dados do IPMA revelam que não foi onde a chuva foi mais forte que se registaram mais vítimas mortais. O número de mortos foi mais elevado nas zonas mais pobres e degradadas.
Porém, é possível que se esteja a incorrer em ilusão. São inquestionavelmente menos que em 1967 as vítimas mortais, porque as barracas praticamente são inexistentes, os meios de socorro são mais e de maior prontidão, as vias de comunicação são transitáveis, as notícias alastram e sem eufemismos. É escandalosa a diferença de causas de morte topadas nas Conservatória do Registo Civil nos concelhos atingidos pela catástrofe em 1967: uns morreram por afogamento; outros, por submersão acidental. Ora bolas! A alternativa ao afogamento foi a morte na lama ou nos escombros. E dizer que só chove assim de cem em cem anos pode ser tapar o sol com a peneira. Não estão em marcha as alterações climáticas e suas consequências nefastas? Ou Trump já decretou para Portugal a ineficácia das alterações climáticas com o excesso de calor e de liquefação? Depois, tromba de água não conhece limites nem fronteiras! Além disso, Lisboa tem de estar preparada para mais cataclismos, como cheias e sismos (edificação e limpeza de canais).
E não esqueçamos: foi há 50 anos…

2017.11.25 – Louro de Carvalho

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