Foi há 50 anos. Na noite de 25 para 26 de
novembro de 1967, a água caída em catadupas do céu revolto arrasou arredores da
cidade de Lisboa e concelhos circunvizinhos. Foi a quantidade de água,
acompanhada do transporte forçado de barracas, adobes e outros materiais e
lixos, a causadora da tragédia que vitimou (diz-se) 700 pessoas, mas não se sabe ao certo quantas,
pois Salazar parou de contá-las ao número
462. Houve 1100 desalojados e 20 mil casas destruídas pela enxurrada e pela chuva
que, naquela noite, representou 1/5 da precipitação do ano.
Era sábado
como este ano. A 25 de novembro de 1967, o dia tinha sido beneficiado por alguns
chuviscos. Se em 1965 e 1966 tinha chovido mais do que nos últimos 80 anos,
1967 estava a ser um ano particularmente seco. Não tinha chovido o outono
inteiro e aquela chuvinha de molha-tolos era refrigério de culturas e cabeças. Tudo,
porém, mudou entre as sete da tarde e a meia-noite. Às duas da manhã, a
tromba de água fez com que a água entrasse pelas casas, casebres, casinhotos,
barracas e adobes das zonas baixas da península de Lisboa e levantasse as camas
até ao teto em Vila Franca de Xira, Alhandra, Cascais, Alenquer, Loures,
Odivelas e Oeiras.
Também o
centro de Lisboa e de Cascais sofreram fortes inundações, mas nada que a
prontidão das forças de socorro não tenham resolvido com alguma rapidez. Não
era assim nos outros lugares acima indicados, para onde se tinham deslocado, a
fugir da penúria miserável das aldeias e seus campos – palcos de vida cada vez
mais madrasta cruel –, milhares e milhares de cidadãos e cidadãs que de
cidadania apenas tinham a cédula pessoal. Os chefes de família para ali
deslocados, primeiro sozinhos, depois chamando mulher e filhos, comungavam da
pobreza do trabalho dos pequenos, que se alimentava do capricho pouco
escrupuloso dos ricos e grandes. As obras, as fábricas, os transportes e a
florestação de Monsanto absorveram muita da mão de obra baratinha e sofrida. As
casas, feitas de lata (sobretudo de zinco, nome dado à folha de Flandres), tábuas, pregos, barro, nas colinas expostas ao sol
ou nas encostas abrigadas dos ventos fortes, ou adobes à beira das linhas de
água (ribeiras,
regatos, corgos, arroios…) – era o
abrigo e a proximidade de água que interessavam –, serviam de pernoita incómoda
e de refúgio precário a desafiar as pequenas e granes tormentas. Não havia
dinheiro para mais e a resignação fora o remédio para a vida que deixava entrar
algum dinheiro nas carteiras da família, de modo que se pudesse viver com um
pouco mais de desafogo e sustento que na aldeia de origem, pagando dívidas de
família acumuladas, mas mantendo as mulheres a costura rudimentar, as crianças
o jogo do pino, da macaca, das pedrinhas e da bola, e os homens o copinho de
três e o jogo das cartas na tasca mais próxima nos tempos livres.
***
Enquanto
toda a gente dormia, com exceção dos que cumpriam turnos de trabalho, o nível
da água do Tejo subia quatro metros em cinco horas. De noite chovera um quinto
do que choveu em todo o ano. E a água enlameada e emaranhada de detritos deixara
depois um rasto de destruição e morte e destruição: terão morrido mais de 700
pessoas, só no primeiro dos três dias de chuva constante. Mas o regime
ditatorial, travestido de Estado Novo e Estado Corporativo e Social, exigiu que
os jornais parassem de contar os mortos: para Salazar, os números ficaram em
462 (O contador
avariou-lhe!). E não se
podia falar de cheiro a cadáver, sendo que os títulos não podiam exceder metade
da página de jornal. Tragédia medida a régua e esquadro!
Porém, os
números eram tudo menos coerentes: passados 50 dias das grandes cheias de
Lisboa, ainda apareciam corpos por debaixo das ruas enlameadas e dos edifícios
destruídos pela força das correntes, mas as cheias de 1967 já não eram notícia
dos jornais por essa altura. No domingo seguinte, o Diário de Lisboa fazia manchete com os “mais de 200 mortos” que
tinham sido anunciados até então. A avenida de Ceuta, em Lisboa, ficou
debaixo de água, a avenida da Índia encheu-se de lama, as linhas de comboio
estiveram submersas e a avenida da Liberdade e a praça de Espanha mais pareciam
piscinas que praças ou largas e longas artérias. A 29 de novembro, o Diário de Notícias confirmava 427 mortos
e as autoridades atualizaram o número de vítimas mortais para 462. A península
da capital não sofria cataclismo tão mortífero e destruidor desde o terramoto
de 1755. Só que, ao contrário de então, em que não se impediu a exportação das
notícias, a ponto de a Europa se comover perante o caso português, e se
empenhou o Reino em enterrar os mortos e cuidar dos vivos, agora o Estado
resolveu meter a cabeça na areia. A partir de determinada hora, não haveria
mais notícias sobre o caso, porque as que havia eram travadas pela censura. O
Governo passou a mandar documentos para as redações na tentativa de suavizar as
notícias sobre o desastre cuja dimensão estava à vista de todos. Era conveniente
ir atenuando a história: não adiantavam urnas e coisas semelhantes; e era
chocante… Era altura de pôr os títulos mais pequenos as notícias irem à
censura, apesar de terem ficado destruídas mais de 20 mil casas, pois em alguns
locais do distrito de Lisboa, a água chegou a concentrar-se num volume de 170
litros por metro quadrado.
Não obstante
o esforço do Estado em abafar o acontecimento, houve um grupo de pessoas que
não se calou e não se vergou ao lápis azul dos censores: os estudantes. Dizem
as crónicas que Jorge Simões e José Brazão estavam com Zeca Afonso numa viagem
de Coimbra para Lisboa quando, pela rádio, souberam do que estava a acontecer.
Juntaram-se a António Alves Redol, que já não estudava, mas continuava ligado à
associação de estudantes, no Instituto Superior Técnico para engendrarem um
plano para ajudar a população: à Rádio Renascença, Danilo Matos, um dos
estudantes que participou na iniciativa, disse que a causa de tanta desgraça
não foi a chuva, mas a miséria. Os estudantes puseram a nu as condições sociais
em que muitas pessoas viviam na cidade e arredores, bem como a inoperância e hipocrisia
do Governo, que mal se interessava por enterrar os motos e cuidar dos vivos. O
governo atrasou-se, paralisou, só mandou para o terreno o Movimento Nacional Feminino, que atrapalhava, e a GNR, a polícia
preparada para reprimir e não para salvar. Tal inoperância, que deixou
sapadores e bombeiros marcados pela insuficiência de deslocação e meios, gerou
enorme revolta na população.
O “Solidariedade Estudantil”, jornal que
surgiu depois das inundações, era o único que fugia à censura e vendia 10 mil
exemplares por número. Inundações e enxurrada foram tão catastróficas que
mereceram a atenção internacional: Terence Spencer, o fotógrafo inglês vencedor
de um World Press Photo em 1968, veio a Portugal fotografar sem filtros
ditatoriais os cadáveres, a lama e os escombros pelas ruas lisboetas. Vendeu as
fotografias à revista LIFE e a notícia sobre as cheias foram publicadas a
8 de dezembro. O artigo não tinha mais que um parágrafo e, embora sublinhasse a
falta de ordenamento urbanístico em Lisboa, ficou-se pelo número oficial de
mortos, muito inferior ao real, que só foi desvendado depois do 25 de Abril.
***
Marcelo Rebelo de Sousa na altura esteve no socorro às vítimas.
Agora o Presidente diz que, em ditadura, há 50 anos, “era possível haver
tragédias e nunca ninguém percebia bem quais eram os contornos, sendo tal desconhecimento
público possível por não haver “um ministério público autónomo, juízes
independentes e comunicação social livre”, o que em democracia existe.
Era preciso tirar os mortos da lama, carregá-los de braços ao alto em
tábuas, pois não havia macas – nem, na maior parte dos sítios, carro que
passasse – e levá-los até ao quartel dos bombeiros. Os corpos eram contados e
levados para o Instituto de Medicina Legal, onde eram arrumados por área de
origem. E o instituto estava cheiinho até acima. A enxurrada matou famílias inteiras, arrastou
carros, árvores e animais e destruiu pontes, estradas e casas. E ficaram cerca
de 1100 desalojados em Lisboa, Loures, Odivelas, Vila Franca de Xira e
Alenquer. A chuva atingiu de noite as zonas baixas dos quatro concelhos da
Grande Lisboa, mas só na manhã seguinte é que os portugueses se depararam com a
verdadeira dimensão da tragédia. Urmeira, Póvoa de Santo Adrião, Frielas –
povoações da bacia do rio Trancão –, e a Quinta dos Silvados, em Odivelas,
foram os aglomerados urbanos mais atingidos. As casas eram de madeira e
centenas de moradores foram engolidos pelas águas. Lisboa, por seu turno, ficou
irreconhecível. A Avenida de Ceuta, em Alcântara, esteve submersa e o mar de
lama desceu até à Avenida da Índia. A água entrou em todas as bifurcações,
subiu e desceu escadarias, derrubou as portas de tabernas, lojas e rés-do-chão,
arrastando mesas, cadeiras, bilhas de gás, contentores e bidões da estação
ferroviária.
Perto
das 23 horas a chuva irrompeu com mais força e as enxurradas atingiram um carro
que circulava na Rua de Alcântara, encurralando os três ocupantes. Um soldado
mergulhou nas águas e conseguiu retirar os três passageiros, minutos antes de o
carro ser arrastado. Sucederam-se interrupções no trânsito desde a Avenida 24
de Julho ao Campo Pequeno, da zona do aeroporto da Portela à Avenida Almirante
Reis, da Baixa a Santa Apolónia. Na Praça de Espanha e na Avenida da Liberdade,
só se passava de barco e, na estação de caminhos-de-ferro, centenas de pessoas
ficaram retidas nas carruagens porque a água submergiu as linhas.
Mesmo
tendo o regime minimizado os impactos das chuvas, as suas repercussões
atravessaram fronteiras e desencadearam um movimento de solidariedade
internacional. Chegaram donativos dos Governo britânico e do Governo italiano,
do Principado do Mónaco e mesmo o Chefe do Estado francês, o general De Gaulle,
contribuiu com uma “dádiva pessoal” de 30 mil francos. O apoio em meios
sanitários veio de França, Suíça e sobretudo de Espanha, que ofereceu mil doses
de vacina contra a febre tifoide, que os estudantes da JUC (Juventude Universitária Católica) e da JEC (Juventude Escolar Católica), à revelia do Estado aplicavam aos
sobreviventes, a quem entregavam víveres, medicamentos e roupas.
A
maioria das vítimas vivia em habitações construídas em vales de cheia. 4 concelhos
da Grande Lisboa foram afetados – Lisboa, Loures (e Odivelas, que ainda não era concelho), Vila Franca de Xira e Alenquer. 1100
desalojados perderam casa, gado e outros bens. Os prejuízos atingiram 3 milhões
de dólares (preços da
época). 111mm por m2 foi
a precipitação registada em 5 horas (25% da precipitação média anual).
***
Contra o
que Salazar previa e muito menos desejaria, o evento foi ocasião de tomada de
consciência crítica em relação ao regime. A politização aconteceu.
A
máscara humanitária do regime caiu e ficou a nu a crueza e a podridão.
Foi de 5
mil o número de alunos que ajudaram as vítimas, um movimento que marcou uma
geração e que se antecipou ao Maio de 68
parisiense.
No domingo, dia 26, os corifeus da
ajuda humanitária foram todos para o Instituto Superior Técnico, onde
estudavam, para tentarem perceber o que se estava a passar. António Alves Redol,
filho do escritor com o mesmo nome (1911-1969), já tinha acabado o curso, mas continuava muito ligado à associação de
estudantes. Sem sair do Técnico, foi um dos principais organizadores da ajuda
estudantil às vítimas das cheias, uma ajuda proposta pela Juventude
Universitária Católica, que conhecia o terreno, mas não tinha meios. Recorda:
“Era
no Técnico que recebíamos as inscrições dos estudantes, formávamos as equipas e
distribuíamo-las pelo terreno depois de devidamente equipadas. Houve dias em
que chegaram a estar mil estudantes a trabalhar ao mesmo tempo. Na altura,
fizeram-se as contas e concluiu-se que os estudantes executaram, no total, 44
mil horas de trabalho.”.
***
Os
especialistas dizem que só chove assim de cem em cem anos. O ano de 1967 foi seco
e o outono começou sem chuva. Só no início de novembro é que se começou a
verificar uma sequência de dias chuvosos. O geógrafo Francisco Costa, que vem
estudando o fenómeno das cheias, não tem dúvidas em afirmar que se tratou de “um fenómeno anormal, excecional mesmo à
escala centenária, de grande concentração de chuva”. Segundo o IPMA, a
probabilidade de um evento destes acontecer é de uma vez em cada cem anos.
Centenas
de pessoas morreram. Oficialmente, foram 462, mas na realidade podem ter
chegado ou ultrapassado as 700. Bairros e aldeias foram levados pelas cheias e
pela lama, 20 mil casas ficaram danificadas, os prejuízos foram calculados em 3
milhões de dólares a preços da época – cerca de 20 milhões de dólares (mais
de 17 milhões de euros)
a preços atuais. Trata-se de prejuízos incomparáveis mesmo com outras cheias na
Grande Lisboa.
Francisco
Costa exemplifica com as cheias de 1983, que provocaram a morte de sete pessoas
e danificaram 650 habitações. Acrescenta ainda a contabilidade das cheias de
2008, que provocaram um morto, um desaparecido e problemas na circulação.
Precipitação
acumulada em 24 horas, a 26 de Novembro de 1967, na região de Lisboa. Estes
dados do IPMA revelam que não foi onde a chuva foi mais forte que se registaram
mais vítimas mortais. O número de mortos foi mais elevado nas zonas mais pobres
e degradadas.
Porém,
é possível que se esteja a incorrer em ilusão. São inquestionavelmente menos
que em 1967 as vítimas mortais, porque as barracas praticamente são
inexistentes, os meios de socorro são mais e de maior prontidão, as vias de
comunicação são transitáveis, as notícias alastram e sem eufemismos. É
escandalosa a diferença de causas de morte topadas nas Conservatória do Registo
Civil nos concelhos atingidos pela catástrofe em 1967: uns morreram por
afogamento; outros, por submersão acidental. Ora bolas! A alternativa ao
afogamento foi a morte na lama ou nos escombros. E dizer que só chove assim de
cem em cem anos pode ser tapar o sol com a peneira. Não estão em marcha as
alterações climáticas e suas consequências nefastas? Ou Trump já decretou para
Portugal a ineficácia das alterações climáticas com o excesso de calor e de
liquefação? Depois, tromba de água não conhece limites nem fronteiras! Além disso,
Lisboa tem de estar preparada para mais cataclismos, como cheias e sismos (edificação
e limpeza de canais).
E
não esqueçamos: foi há 50 anos…
2017.11.25
– Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário