Um exercício de síncrese
No domingo da Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do
Universo, o último do ano litúrgico (Ano A),
é gratificante ouvir o convite do Senhor aquando da festa judicial da Parusia. E
as leituras da liturgia desta Solenidade domingueira falam-nos do Reino de
Deus, de que Jesus é rei, mas rei-pastor e não rei-militar, que põe dum lado as
ovelhas e do outro os cabritos. O Reino é realidade que Jesus semeou, que os
discípulos são chamados a edificar na história através do amor e que terá o seu
tempo definitivo na vida do mundo que há de vir.
A 1.ª leitura (Ez 34,11-12.15-17) utiliza a imagem do Pastor para apresentar a relação de Deus
com os homens. Esta imagem diz-nos quem é Deus; sublinha a sua autoridade e
papel na condução do seu Povo pelos caminhos da história; e releva a
preocupação, o carinho, o cuidado, o amor de Deus pelo seu Povo. O Evangelho (Mt 25,31-46) apresenta-nos, num quadro
dramático, Jesus, o “rei” a interpelar os discípulos acerca do amor que
partilharam com os irmãos, sobretudo com os débeis, os pobres, os
desprotegidos. A questão é: o egoísmo, o fechamento em si próprio, a
indiferença para com o irmão que sofre, não têm lugar no Reino de Deus. Quem
insistir em conduzir a sua vida por esses critérios mesquinhos e mundanos ficará
à margem. E a 2.ª leitura (1Cor 15,20-26.28)
mostra o apóstolo Paulo a lembrar aos cristãos que o fim último da caminhada do
crente é a participação no “Reino de Deus” de vida plena, para o qual Cristo
nos encaminha. Nele, Deus manifestar-Se-á em tudo e atuará como Senhor de todas
as coisas.
***
A perícopa
evangélica deste domingo é a continuação lógica da parábola do mordomo fiel e
do mordomo infiel (Mt
24,45-51), da parábola das
dez virgens (Mt 25,1-13),
a concluir com a advertência de Jesus “Vigiai…
porque não sabeis o dia nem a hora”, e da parábola dos talentos (Mt 25,14-30) – parábolas que já apontavam para
um final, que podia ser de entrada no banquete e na alegria ou de autoexclusão
destas realidades. O texto apresenta agora o quadro grandioso do Filho do Homem
que identificamos com a pessoa de Jesus. Ele vem como juiz divino e com todo o
poder real anunciado já no livro de Daniel (vd Dn 7,14), que se senta no trono como Rei e senhor de todos os povos, com a
autoridade de quem andou pelas vias inóspitas a procurar as ovelhas que queria
reunir num só aprisco e por elas deu a vida. E o que chamamos Juízo final,
apresenta-se mais como a proclamação duma sentença que mais não é do que a
verificação da atitude fundamental e dos comportamentos que teve cada um na
vida. Assim, à partida, é feita a separação radical: benditos (ovelhas) para um lado e malditos (cabritos) para o outro, colhendo a imagem da
vida pastoril. Em noites frias, o pastor separa as ovelhas dos cabritos, pois
as ovelhas, com lã espessa, podem estar ao frio, ao passo que é necessário
resguardar os cabritos que não têm proteção natural. Os ‘benditos de meu Pai’, são convidados a entrar na posse do reino
para eles preparado, desde a criação do mundo, pela iniciativa soberana e
gratuita de Deus. Os benditos recebem em herança o reino porque partilharam o
destino e a condição do Filho. Os malditos
não têm lugar ali. A salvação é dom de Deus aos que a aceitam. A condenação é
produto humano, consequência natural da não aceitação da salvação oferecida por
Deus. É na vida do dia a dia que cada um, pela forma de viver consigo mesmo,
com os outros e com Deus, vai aceitando ou rejeitando o que Deus vai oferecendo
para ser vivido em plenitude um dia.
O Rei
apresenta-se como quem teve fome e sede, peregrino e nu, doente e prisioneiro.
É o juiz
glorioso, a quem os justos chamam Senhor e que tem o rosto do indefeso, indigente
e necessitado. O confronto decisivo entre os homens e o Filho do Homem não
ocorre com gesto extraordinário e heroico, mas na simplicidade do encontro
humano, com gesto simples que a tradição bíblica já recomendava (vd Is 58,7; Ez 18,7; Job 31,32; Tb
4,16). O homem justo
tinha a obrigação de se compadecer e ir ao encontro dos que, no momento
concreto, precisavam dele.
Em Mateus insiste-se
recorrentemente no amor para com o próximo e na realização na vontade do Pai.
Ora, a vontade do Pai (revelada
e realizada por Jesus)
resume-se no amor gratuito e ativo para com os doentes, pobres e necessitados.
Porém, o critério decisivo para a salvação não está só na prática do amor para
com os necessitados. A novidade evangélica está na identificação que Jesus faz
com estes: Sempre que (não) fizestes a um
destes (meus irmãos) mais pequeninos (não) o fizestes a mim (cf Mt 25,40.45).
Mateus expõe
um exemplo de como viver a espera vigilante e responsável da vinda do Filho do
Homem. O teste da verdade e fidelidade de homens, condição para a salvação,
joga-se nas relações quotidianas de acolhimento ou rejeição do necessitado,
sinal objetivo da presença escondida e humilde do Filho do Homem. Com este
texto, o do último discurso da atividade pública de Jesus antes de iniciar o
drama da paixão, o evangelista funde em maravilhosa síntese os dois polos em
torno dos quais gravita a mensagem evangélica: Cristo e o amor ativo, expoente
da vontade de Deus. No amor gratuito e universal vive-se a relação vital de fé
em Cristo, o Filho de Deus e Senhor, que no final se transformará em comunhão
salvífica plena.
***
Um esforço de análise: o ambiente e os tópicos de mensagem
Ezequiel é “o profeta da esperança”. Desterrado na Babilónia
desde 597 a.C. (no
reinado de Joaquin, quando Nabucodonosor conquista Jerusalém pela 1.ª vez e
deporta para a Babilónia a classe dirigente), Ezequiel exerce aí a sua missão profética entre os
exilados judeus. A 1.ª fase do seu ministério decorre entre 593 aC (seu chamamento) e 586 aC (em que Jerusalém é arrasada pelas
tropas de Nabucodonosor e uma 2.ª leva de exilados é encaminhada para a
Babilónia). Nesta fase,
o profeta destrói as falsas esperanças e anuncia que, ao invés do que pensam os
exilados, o cativeiro está para durar. Não só não regressarão a Jerusalém, mas
os que ficaram em Jerusalém (continuando a multiplicar pecados e infidelidades) farão companhia aos que já estão
desterrados na Babilónia. E a 2.ª fase do ministério de Ezequiel desenrola-se a
partir de 586 aC, prolongando-se até cerca de 570 a.C. Instalados em terra
estrangeira e privados do Templo, sacerdócio e culto, os exilados estão no
desespero e duvidam da bondade e do amor de Deus. Nesta fase, o profeta tudo
faz para alimentar a esperança dos exilados e transmitir ao Povo a certeza de
que o Deus salvador e libertador – que Israel descobriu na sua história – não
os abandonou nem esqueceu.
A perícopa bíblica proposta para 1.ª leitura (Ez 34,11-12.15-17) pertence, provavelmente, à 2.ª fase
do ministério do profeta. Depois de denunciar os “maus pastores” que exploraram e abusaram do Povo e o conduziram por
caminhos de morte e de desgraça até à catástrofe final de Jerusalém e ao Exílio
(cf Ez 34,1-9), o profeta anuncia o tempo novo em
que o próprio Deus vai conduzir o seu Povo e apascentar as suas ovelhas. É um
oráculo de esperança, que abre uma nova história e propõe um novo futuro ao
Povo de Deus.
O título de “pastor”, bastante expressivo em civilizações que
viviam da pastorícia e da agricultura, é frequentemente atribuído, no antigo
Médio Oriente, aos deuses e aos reis. Esta metáfora expressa eloquentemente
dois aspetos, aparentemente contrários e com frequência separados, da
autoridade exercida sobre os homens: o pastor é um chefe que dirige o rebanho e
um companheiro das ovelhas na sua caminhada para as pastagens de vida. Ademais,
o pastor é homem forte, capaz de defender o rebanho contra as feras, e é
delicado com as ovelhas. Conhece o estado e as necessidades de cada uma, leva
nos braços as mais frágeis e débeis, ama-as e trata-as com carinho. A sua
autoridade não se discute: está fundada na entrega e no amor. É sobre este
fundo que Ezequiel coloca a relação entre Deus e Israel. Ao Povo que os pastores
humanos (reis, sacerdotes,
a classe dirigente)
trataram tão mal, o profeta anuncia a chegada do tempo novo em que Jahwéh
assumirá a sua função de pastor do seu Povo. Deus cuidará das ovelhas e
interessar-se-á por elas. As ovelhas estavam dispersas em terra estranha, após os
acontecimentos dramáticos que trouxeram ao rebanho morte e desolação; mas Deus,
o Bom Pastor, vai reuni-las, reconduzi-las à sua própria terra e apascentá-las
em pastagens férteis e tranquilas (vv. 11-12). Mais: Deus irá procurar cada ovelha perdida e tresmalhada, cuidar da ferida
e doente, vigiar a gorda e forte (v. 16);
além disso, julgará pessoalmente os conflitos entre as mais poderosas e as mais
débeis, a fim de que o direito das fracas não seja pisado (v. 17).
À proclamação da perícopa do livro de Ezequiel sobre o
pastoreio de Deus responde-se com o salmo 23 (22), o do Bom Pastor. É um salmo individual de confiança em Deus, um belo exemplo deste género
literário pela beleza que exprime e pela serenidade que inspira. A proteção de
Deus é apresentada com a imagem idílica de um pastor a cuidar do seu rebanho. A
relação de proteção assim expressa envolve total compromisso e profunda
ternura. Está relacionado com o Salmo 28,9 (Deus salve o seu
povo e abençoe a sua herança, apascentando e guiando-o para sempre) e com o Salmo 80,2 (alia o pastoreio à realeza: Pastor
de Israel, que conduzes José como um rebanho e tens o teu trono sobre os
querubins) e é relacionável com o capítulo 34 de
Ezequiel, em que Deus reconduz o povo do Exílio e o apascenta, e com o capítulo
10 do Evangelho de João, cuja novidade é o Bom Pastor, Jesus-rei, dar a vida
pelas suas ovelhas.
***
A impressionante descrição do juízo final (Mt 25,31-46) é, como se disse, sequência lógica e
conclusão das três parábolas precedentes (a do mordomo fiel e do mordomo infiel; a das jovens previdentes
e das jovens descuidadas; e a dos talentos). Nessas parábolas como neste texto, aparecem dois polos
pessoais com atitudes e comportamentos diversos enquanto esperavam a vinda do
Senhor Jesus. Mateus mostra agora de forma clara qual será o “fim” definitivo
dos que se mantiveram e dos que não se mantiveram vigilantes e preparados para
a vinda do Senhor. Mais uma vez, para percebermos a sua catequese, temos
atender ao contexto da comunidade a que se dirige. Nos últimos decénios do
século I (década de 80), passado o entusiasmo inicial pela
vinda iminente de Jesus para instaurar o Reino, os cristãos estão
desinteressados, instalados, acomodados; vivem a fé de modo rotineiro, morno,
pouco exigente e pouco comprometido; e alguns, face às dificuldades, deixam a
comunidade e renunciam ao Evangelho. Mateus, preocupado com a situação, intenta
revitalizar a fé, reacender o entusiasmo, entusiasmar ao compromisso. E fá-lo
com uma catequese que exorta à vigilância, enquanto se espera o encontro final
com Cristo.
No texto do juízo final, Mateus mostra aos crentes – com a
linguagem veemente dos pregadores da época – o que esperam, no final da
caminhada, tanto os que se mantiveram vigilantes e viveram de acordo com os ensinamentos
de Jesus, como os que esqueceram os valores do Evangelho e que conduziram a
vida de acordo com outros interesses e preocupações.
A parábola começa com uma introdução (vv. 31-33) que apresenta o quadro: o “Filho do
Homem” sentado no trono, depois de separar as pessoas, umas das outras, “como o
pastor separa as ovelhas dos cabritos”. A seguir, vêm dois diálogos: um, entre
“o rei” e “as ovelhas” que estão à direita (vv. 34-40); outro, entre “o rei” e os “cabritos” que estão à esquerda (vv. 41-46).
No primeiro diálogo, o “rei” acolhe as “ovelhas” e convida-as
a tomar posse da herança do “Reino”; no segundo, o “rei” afasta os “cabritos” e
impede-os de tomar posse da herança do Reino. O critério decisivo que “o rei”
utiliza para acolher uns e rejeitar outros parece ser, na ótica de Mateus, a
atitude de amor ou de indiferença para com os irmãos mais pequenos de Jesus,
que se encontram em situações dramáticas de necessidade: os famintos, os sedentos,
os peregrinos, os que não têm que vestir, os doentes, os presos. Com efeito, Jesus
identifica-Se com os pequenos, os pobres, os débeis, os marginalizados. Assim,
manifestar amor e prestar solidariedade para com o pobre é fazê-lo ao próprio
Jesus, tal como manifestar egoísmo e indiferença para com o pobre é fazê-lo ao
próprio Jesus.
A cena pode interpretar-se de dois modos, dependendo de como
entendemos a palavra “irmão”. Em sentido genérico, “irmão” designaria qualquer
homem; neste caso, a exortação de Jesus convida os que querem entrar no Reino a
ir ao encontro de qualquer homem que tenha fome ou sede, que seja peregrino,
que esteja nu, doente ou na prisão, para lhe manifestar amor e solidariedade.
Entendida num sentido mais restrito, a palavra “irmão” designaria os membros da
comunidade cristã. Seja como for, os dois sentidos não se excluem; e é possível
que Mateus se refira às duas realidades. São irmãos de Jesus, sejam ou não da
comunidade.
A exortação que Mateus lança à sua comunidade cristã (e às comunidades de todos os tempos e
lugares) nas parábolas
precedentes ganha aqui uma força impressionante à luz desta cena final. Com os
dados deste Evangelho, fica evidente que “estar vigilantes e preparados” (o grande tema do “discurso
escatológico” dos capítulos 24 e 25) consiste, principalmente, em viver o amor e a solidariedade
para com os pobres, os pequenos, os desprotegidos, os marginalizados. Em última
análise, é esse o critério que decide a entrada ou a não entrada no Reino de
Deus. Esta exortação dirige-se a uma comunidade que negligencia o amor aos
irmãos, vive na indiferença ao sofrimento dos mais débeis, é insensível ao
drama dos pobres e não cuida dos pequenos e dos desprotegidos. Como estas são
atitudes que não se coadunam com a lógica do Reino, quem vive desse modo não
poderá fazer parte do Reino. Daí a atualidade da parábola.
A cena do juízo final não é uma descrição exata e fotográfica
do que acontecerá no final dos tempos. Mateus não é repórter, mas catequista a
instruir a comunidade sobre os critérios e lógicas de Deus. O objetivo é
esclarecer que Deus não aprova a vida conduzida por critérios de egoísmo, onde
não há lugar para o amor a todos, em especial aos mais pobres e débeis. Um dos
pormenores mais sugestivos é a identificação de Cristo com os famintos e
sedentos, os abandonados, os pequenos, os desprotegidos: todos eles são membros
de Cristo e não os amar é não amar Cristo. Dizer que se ama Cristo e não viver
ao estilo de Cristo, no amor a todos os homens, é mentira e incoerência.
Não é Deus quem condena os maus (“os cabritos”) ao inferno. Deus não condena
ninguém. Quem se condena ou não é o homem, na medida em que não aceita ou aceita
a vida que Deus lhe oferece. Assim, é justo perguntar se haverá quem, tendo
consciência plena do que está em jogo, rejeita o amor e escolhe, em definitivo,
o egoísmo, o orgulho, a autossuficiência, ou seja, o afastamento definitivo de
Deus e do Reino; e se haverá quem, percebendo o sem sentido dessas opções, se
obstina nelas por toda a eternidade. Porém, Mateus põe Jesus a dizer aos
“cabritos”: “afastai-vos de mim,
malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e para os seus anjos”.
Isto, porque Mateus é o pregador veemente, que usa a técnica dos pregadores da
época e gosta de recorrer a imagens fortes que toquem o auditório e que o levem
a sentir-se interpelado. Para além dos exageros de linguagem, a mensagem é: o egoísmo e a indiferença para com o irmão
não têm lugar no Reino de Deus.
***
Durante a sua segunda viagem missionária, Paulo chegou a
Corinto, provindo de Atenas, e ali ficou cerca 18 meses (anos 50-52). De acordo com At 18,2-4, Paulo
começou a trabalhar em casa de Priscila e Áquila, um casal de judeo-cristãos.
No sábado, falava na sinagoga. Com a chegada de Silvano e Timóteo a Corinto (2Cor 1,19; At 18,5), Paulo consagrou-se totalmente ao
anúncio do Evangelho. Mas não tardou a entrar em conflito com os judeus e foi
expulso da sinagoga.
Como resultado da pregação paulina nasceu a comunidade cristã
de Corinto. A maior parte dos membros da comunidade eram de origem grega,
embora, em geral, de condição humilde (cf 1 Cor 11,26-29; 8,7; 10,14.20; 12,2), mas também havia elementos de
origem hebraica (cf At
18,8; 1 Cor 1,22-24; 10,32; 12,13). Em geral, a comunidade era viva e fervorosa. Contudo,
estava exposta aos perigos do ambiente corrupto que ali se respirava e era
influenciada por ele. É neste contexto que entendemos alguns problemas sentidos
na comunidade e apontados na 1.ª Carta aos Coríntios: moral dissoluta (cf 1Cor 6,12-20; 5,1-2), querelas, disputas e lutas (cf 1 Cor 1,11-12), sedução da sabedoria pagã que se
introduzia na Igreja revestida dum superficial verniz cristão (cf 1Cor 1,19-2,10)… Na comunidade coríntia, a fé
cristã tinha dificuldade em inserir-se num ambiente hostil, marcado pela
cultura pagã e por um conjunto de valores contrariantes da pureza do Evangelho.
Um dos pontos de notória dificuldade em conciliar os dados da fé cristã com os
valores do mundo grego era a questão da ressurreição. Enquanto a ressurreição
dos mortos era relativamente bem aceite no judaísmo (habituado a ver o homem na sua unidade), constituía um problema sério para
a mentalidade grega. A cultura grega estava influenciada por filosofias
dualistas, que viam no corpo uma realidade negativa e na alma uma realidade
nobre e ideal. Aceitar que a alma viveria sempre não era difícil para os gregos.
O problema era aceitar a ressurreição do homem total: sendo o homem (de acordo com a mentalidade grega) constituído por alma e corpo era
impensável falar da ressurreição do homem.
Frente às objeções e dúvidas dos coríntios, Paulo parte da
ressurreição de Cristo (cf
1Cor 15,1-11), para
inferir que todos os que se identificarem com Ele ressuscitarão também (cf 1Cor 15,12-34).
O texto de Paulo começa com a afirmação de que “Cristo ressuscitou dos mortos, como
primícias dos que morreram” (v. 20).
A sua ressurreição não foi um caso único e excecional, mas o primeiro caso.
“Primeiro” deve ser entendido aqui, não apenas em sentido cronológico, mas no
sentido do princípio ativo da ressurreição de todos os homens e mulheres.
Cristo foi constituído por Deus princípio da nova humanidade; a sua
ressurreição arrasta atrás de si toda a sua “descendência” – ou seja, todos
aqueles que se identificam com Ele, que acolheram a sua proposta de vida e O
seguiram – ao encontro da vida plena e eterna (vv. 21-23). O destino da nova humanidade é o Reino de Deus. E este
Reino será a realidade onde o egoísmo, a injustiça, a miséria, o sofrimento, o
medo, o pecado e até a morte (todos os inimigos da vida e do homem) estarão definitivamente ausentes, pois terão sido vencidos
por Cristo (vv. 24-26). No Reino definitivo, Deus
manifestar-Se-á em tudo e atuará como Senhor de todas as coisas (v. 28).
A reflexão paulina lembra aos cristãos que o fim último da
caminhada crente é a participação no “Reino de Deus” de vida plena e definitiva,
para o qual Cristo nos atrai.
Por uma atualização da mensagem
- A imagem do Pastor é imagem privilegiada para apresentar
Deus e definir a sua relação com os homens. Frisa a sua autoridade e papel na
condução do seu Povo pelos caminhos da história; e exalta a preocupação, o
carinho, o cuidado, o amor de Deus pelo seu Povo. Já nem todos hoje entenderão
a figura do “pastor”, mas todos são convidados a entregar-se nas mãos de Deus,
a confiar totalmente n’Ele, a deixar-se conduzir por Ele, fazendo a experiência
do seu amor e da sua bondade. É experiência tranquilizante e libertadora, que
traz serenidade e paz.
A questão não é se Deus é ou não “pastor” (Ele é “pastor”), mas se estamos ou não dispostos a
segui-l’O, a deixar-nos conduzir por Ele, a confiar n’Ele para atravessar vales
sombrios, a deixar-nos levar ao seu colo para os nossos pés não se ferirem nas
pedras do caminho. Alguma cultura contemporânea pretende que nos realizemos
libertando-nos de Deus e sermos os guias de nós próprios. Ora, é importante
discernir o que releva para a nossa felicidade e plenitude de vida: Deus ou o
nosso orgulho e autossuficiência. Há que discernir e optar.
- Fugindo de Deus, agarramo-nos a outros “pastores” e fazemos
deles a nossa referência, o nosso líder, o nosso ídolo. Se a riqueza e o poder
condicionam a nossa opção, levam-nos à desilusão. Valores ditados por quem
presume saber tudo, pautar-se pelo política e socialmente correto, seguir a
opinião pública, obedecer ao líder partidário, acolher o comodismo e a
instalação, zelar pela preservação dos esquemas egoístas e dos privilégios,
almejar a todo o custo o êxito e o triunfo, apreciar o herói mais giro da
telenovela ou do cinema, visualizar o programa de maior audiência da estação
televisiva de maior audiência – são categorias que se esgotam e nos esgotam. “Vaidade das vaidades e tudo é vaidade” (Ecl 1,2)!
- A meta final da caminhada é o Reino, isto é, a realidade da
vida plena, donde estarão ausentes a doença, a tristeza, o sofrimento, a
injustiça, a prepotência, a morte. Há que ter presente esta realidade ao longo
desta peregrinação pela terra, pois a vida presente não é um drama absurdo, sem
sentido e sem finalidade; é caminhada tranquila, confiante – embora feita no
sofrimento e na dor – em direção a esse desabrochar pleno, a essa vida total
que Deus nos reserva.
- Chegamos a este saber e sentir identificando-nos com
Cristo. A ressurreição de Cristo é o selo de garantia de Deus para uma vida
oferecida ao Reino. Mostra que a vida vivida na escuta atenta do projeto do Pai
e no amor e serviço ao homem leva à vida plena; que a vida gasta na luta contra
o egoísmo, opressão e pecado leva à vida definitiva; e que a vida ao serviço da
construção do Reino leva à vida verdadeira. Se a nossa vida for gasta do mesmo
jeito, seguimos Cristo na ressurreição, atingimos a vida nova do Homem Novo e
estaremos para sempre com Ele nesse Reino livre do sofrimento, do pecado e da
morte que Deus reserva para os seus filhos.
- Descobrir que o Reino é a nossa meta final significa
eliminar definitivamente o medo que nos impede de atuar e de assumir um
protagonismo na construção de um mundo novo. Quem tem no horizonte final da
vida o Reino pode comprometer-se na luta pela justiça e pela paz, com a certeza
de que a injustiça, a opressão, a oposição dos poderosos, a morte não podem pôr
fim à vida que nos anima. Ter o Reino como meta significa libertarmo-nos do
medo que paralisa e encontrarmos razões para o real compromisso com Deus, com o
mundo e com os homens.
- Em geral, o “homem de sucesso” que todos consideram
importante e realizado é o que tem dinheiro bastante para concretizar todos os
sonhos e fantasias, que tem poder bastante para ser temido, que tem êxito bastante
para juntar à sua volta uma plêiade de aduladores, que tem fama bastante para
ser invejado, que tem talento bastante para ser admirado, que tem o desplante
suficiente para dizer ou fazer o que lhe apetece, que tem vaidade bastante para
se apresentar aos outros como modelo de vida. Porém, de acordo com o Evangelho,
o critério fundamental de Jesus para definir quem é uma “pessoa de sucesso” é a
capacidade de amar o irmão, mormente o mais pobre e desprotegido. É, pois de
questionar o que faz mais sentido para nós: se o critério do mundo, se o
critério de Deus; se interessa mais ser o “homem de sucesso” do mundo ou o
“homem de sucesso” de Deus. Há que discernir e optar.
- O amor ao irmão é, pois, condição para fazer parte do
Reino. Nós, os cristãos, cidadãos do Reino, devemos ter consciência disso e
sentir-nos responsáveis por todos os irmãos que sofrem, que não têm trabalho,
pão ou casa, que devem poder contar com a nossa solidariedade ativa, bem como os
imigrantes e refugiados, perdidos numa realidade cultural e social estranha,
vítimas de injustiças e violências, condenados a um trabalho escravo e que,
tantas vezes, não respeita a sua dignidade. Também devem poder contar com a
nossa solidariedade ativa os pobres, vítimas de injustiças, que nem sequer têm
a possibilidade de recorrer aos tribunais para lhes ser feita justiça; os que
sobrevivem com pensões de miséria, sem possibilidades de comprar os
medicamentos necessários para aliviar os seus padecimentos; os que estão
sozinhos, abandonados por todos, sem amor nem amizade; e os que estão presos a
um leito de hospital ou a uma cela de prisão, marginalizados e condenados em
vida.
- O Reino de Deus é semente que Jesus semeou, que os
discípulos edificam na história e que terá o seu tempo definitivo no mundo que
há de vir. Não esqueçamos, entretanto, que o Reino está no meio de nós e que a
nossa missão é fazer com que ele seja realidade bem viva e presente no nosso
mundo. Depende de nós fazer com que o Reino deixe de ser uma miragem, para passar
a ser realidade a crescer e a transformar o mundo e a vida dos homens. Na
verdade, nós os cristãos, caminhamos ao encontro do mundo que há de vir, mas de
pés bem assentes na terra, atentos à realidade que nos rodeia e preocupados em
construir, desde já, um mundo de justiça, de fraternidade, de liberdade e de
paz. A experiência religiosa não pode, nunca, servir-nos de pretexto para a
evasão, para a fuga às responsabilidades, para a demissão das nossas obrigações
para com o mundo e para com os irmãos.
***
Há, pois, que encarar a vida, iluminá-la com a luz do
Evangelho e atender à moção do Espírito. A comunidade dará ajuda. Depois, há
que discernir entre os critérios de Jesus e os do mundo e ter a coragem de
optar.
2017.11.26
– Louro de Carvalho
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