domingo, 26 de novembro de 2017

Vinde, benditos de meu Pai…


Um exercício de síncrese
No domingo da Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, o último do ano litúrgico (Ano A), é gratificante ouvir o convite do Senhor aquando da festa judicial da Parusia. E as leituras da liturgia desta Solenidade domingueira falam-nos do Reino de Deus, de que Jesus é rei, mas rei-pastor e não rei-militar, que põe dum lado as ovelhas e do outro os cabritos. O Reino é realidade que Jesus semeou, que os discípulos são chamados a edificar na história através do amor e que terá o seu tempo definitivo na vida do mundo que há de vir.
A 1.ª leitura (Ez 34,11-12.15-17) utiliza a imagem do Pastor para apresentar a relação de Deus com os homens. Esta imagem diz-nos quem é Deus; sublinha a sua autoridade e papel na condução do seu Povo pelos caminhos da história; e releva a preocupação, o carinho, o cuidado, o amor de Deus pelo seu Povo. O Evangelho (Mt 25,31-46) apresenta-nos, num quadro dramático, Jesus, o “rei” a interpelar os discípulos acerca do amor que partilharam com os irmãos, sobretudo com os débeis, os pobres, os desprotegidos. A questão é: o egoísmo, o fechamento em si próprio, a indiferença para com o irmão que sofre, não têm lugar no Reino de Deus. Quem insistir em conduzir a sua vida por esses critérios mesquinhos e mundanos ficará à margem. E a 2.ª leitura (1Cor 15,20-26.28) mostra o apóstolo Paulo a lembrar aos cristãos que o fim último da caminhada do crente é a participação no “Reino de Deus” de vida plena, para o qual Cristo nos encaminha. Nele, Deus manifestar-Se-á em tudo e atuará como Senhor de todas as coisas.
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A perícopa evangélica deste domingo é a continuação lógica da parábola do mordomo fiel e do mordomo infiel (Mt 24,45-51), da parábola das dez virgens (Mt 25,1-13), a concluir com a advertência de Jesus “Vigiai… porque não sabeis o dia nem a hora”, e da parábola dos talentos (Mt 25,14-30) – parábolas que já apontavam para um final, que podia ser de entrada no banquete e na alegria ou de autoexclusão destas realidades. O texto apresenta agora o quadro grandioso do Filho do Homem que identificamos com a pessoa de Jesus. Ele vem como juiz divino e com todo o poder real anunciado já no livro de Daniel (vd Dn 7,14), que se senta no trono como Rei e senhor de todos os povos, com a autoridade de quem andou pelas vias inóspitas a procurar as ovelhas que queria reunir num só aprisco e por elas deu a vida. E o que chamamos Juízo final, apresenta-se mais como a proclamação duma sentença que mais não é do que a verificação da atitude fundamental e dos comportamentos que teve cada um na vida. Assim, à partida, é feita a separação radical: benditos (ovelhas) para um lado e malditos (cabritos) para o outro, colhendo a imagem da vida pastoril. Em noites frias, o pastor separa as ovelhas dos cabritos, pois as ovelhas, com lã espessa, podem estar ao frio, ao passo que é necessário resguardar os cabritos que não têm proteção natural. Os ‘benditos de meu Pai’, são convidados a entrar na posse do reino para eles preparado, desde a criação do mundo, pela iniciativa soberana e gratuita de Deus. Os benditos recebem em herança o reino porque partilharam o destino e a condição do Filho. Os malditos não têm lugar ali. A salvação é dom de Deus aos que a aceitam. A condenação é produto humano, consequência natural da não aceitação da salvação oferecida por Deus. É na vida do dia a dia que cada um, pela forma de viver consigo mesmo, com os outros e com Deus, vai aceitando ou rejeitando o que Deus vai oferecendo para ser vivido em plenitude um dia.
O Rei apresenta-se como quem teve fome e sede, peregrino e nu, doente e prisioneiro.
É o juiz glorioso, a quem os justos chamam Senhor e que tem o rosto do indefeso, indigente e necessitado. O confronto decisivo entre os homens e o Filho do Homem não ocorre com gesto extraordinário e heroico, mas na simplicidade do encontro humano, com gesto simples que a tradição bíblica já recomendava (vd Is 58,7; Ez 18,7; Job 31,32; Tb 4,16). O homem justo tinha a obrigação de se compadecer e ir ao encontro dos que, no momento concreto, precisavam dele.
Em Mateus insiste-se recorrentemente no amor para com o próximo e na realização na vontade do Pai. Ora, a vontade do Pai (revelada e realizada por Jesus) resume-se no amor gratuito e ativo para com os doentes, pobres e necessitados. Porém, o critério decisivo para a salvação não está só na prática do amor para com os necessitados. A novidade evangélica está na identificação que Jesus faz com estes: Sempre que (não) fizestes a um destes (meus irmãos) mais pequeninos (não) o fizestes a mim (cf Mt 25,40.45).
Mateus expõe um exemplo de como viver a espera vigilante e responsável da vinda do Filho do Homem. O teste da verdade e fidelidade de homens, condição para a salvação, joga-se nas relações quotidianas de acolhimento ou rejeição do necessitado, sinal objetivo da presença escondida e humilde do Filho do Homem. Com este texto, o do último discurso da atividade pública de Jesus antes de iniciar o drama da paixão, o evangelista funde em maravilhosa síntese os dois polos em torno dos quais gravita a mensagem evangélica: Cristo e o amor ativo, expoente da vontade de Deus. No amor gratuito e universal vive-se a relação vital de fé em Cristo, o Filho de Deus e Senhor, que no final se transformará em comunhão salvífica plena.
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Um esforço de análise: o ambiente e os tópicos de mensagem
Ezequiel é “o profeta da esperança”. Desterrado na Babilónia desde 597 a.C. (no reinado de Joaquin, quando Nabucodonosor conquista Jerusalém pela 1.ª vez e deporta para a Babilónia a classe dirigente), Ezequiel exerce aí a sua missão profética entre os exilados judeus. A 1.ª fase do seu ministério decorre entre 593 aC (seu chamamento) e 586 aC (em que Jerusalém é arrasada pelas tropas de Nabucodonosor e uma 2.ª leva de exilados é encaminhada para a Babilónia). Nesta fase, o profeta destrói as falsas esperanças e anuncia que, ao invés do que pensam os exilados, o cativeiro está para durar. Não só não regressarão a Jerusalém, mas os que ficaram em Jerusalém (continuando a multiplicar pecados e infidelidades) farão companhia aos que já estão desterrados na Babilónia. E a 2.ª fase do ministério de Ezequiel desenrola-se a partir de 586 aC, prolongando-se até cerca de 570 a.C. Instalados em terra estrangeira e privados do Templo, sacerdócio e culto, os exilados estão no desespero e duvidam da bondade e do amor de Deus. Nesta fase, o profeta tudo faz para alimentar a esperança dos exilados e transmitir ao Povo a certeza de que o Deus salvador e libertador – que Israel descobriu na sua história – não os abandonou nem esqueceu.
A perícopa bíblica proposta para 1.ª leitura (Ez 34,11-12.15-17) pertence, provavelmente, à 2.ª fase do ministério do profeta. Depois de denunciar os “maus pastores” que exploraram e abusaram do Povo e o conduziram por caminhos de morte e de desgraça até à catástrofe final de Jerusalém e ao Exílio (cf Ez 34,1-9), o profeta anuncia o tempo novo em que o próprio Deus vai conduzir o seu Povo e apascentar as suas ovelhas. É um oráculo de esperança, que abre uma nova história e propõe um novo futuro ao Povo de Deus.
O título de “pastor”, bastante expressivo em civilizações que viviam da pastorícia e da agricultura, é frequentemente atribuído, no antigo Médio Oriente, aos deuses e aos reis. Esta metáfora expressa eloquentemente dois aspetos, aparentemente contrários e com frequência separados, da autoridade exercida sobre os homens: o pastor é um chefe que dirige o rebanho e um companheiro das ovelhas na sua caminhada para as pastagens de vida. Ademais, o pastor é homem forte, capaz de defender o rebanho contra as feras, e é delicado com as ovelhas. Conhece o estado e as necessidades de cada uma, leva nos braços as mais frágeis e débeis, ama-as e trata-as com carinho. A sua autoridade não se discute: está fundada na entrega e no amor. É sobre este fundo que Ezequiel coloca a relação entre Deus e Israel. Ao Povo que os pastores humanos (reis, sacerdotes, a classe dirigente) trataram tão mal, o profeta anuncia a chegada do tempo novo em que Jahwéh assumirá a sua função de pastor do seu Povo. Deus cuidará das ovelhas e interessar-se-á por elas. As ovelhas estavam dispersas em terra estranha, após os acontecimentos dramáticos que trouxeram ao rebanho morte e desolação; mas Deus, o Bom Pastor, vai reuni-las, reconduzi-las à sua própria terra e apascentá-las em pastagens férteis e tranquilas (vv. 11-12). Mais: Deus irá procurar cada ovelha perdida e tresmalhada, cuidar da ferida e doente, vigiar a gorda e forte (v. 16); além disso, julgará pessoalmente os conflitos entre as mais poderosas e as mais débeis, a fim de que o direito das fracas não seja pisado (v. 17).
À proclamação da perícopa do livro de Ezequiel sobre o pastoreio de Deus responde-se com o salmo 23 (22), o do Bom Pastor. É um salmo individual de confiança em Deus, um belo exemplo deste género literário pela beleza que exprime e pela serenidade que inspira. A proteção de Deus é apresentada com a imagem idílica de um pastor a cuidar do seu rebanho. A relação de proteção assim expressa envolve total compromisso e profunda ternura. Está relacionado com o Salmo 28,9 (Deus salve o seu povo e abençoe a sua herança, apascentando e guiando-o para sempre) e com o Salmo 80,2 (alia o pastoreio à realeza: Pastor de Israel, que conduzes José como um rebanho e tens o teu trono sobre os querubins) e é relacionável com o capítulo 34 de Ezequiel, em que Deus reconduz o povo do Exílio e o apascenta, e com o capítulo 10 do Evangelho de João, cuja novidade é o Bom Pastor, Jesus-rei, dar a vida pelas suas ovelhas.
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A impressionante descrição do juízo final (Mt 25,31-46) é, como se disse, sequência lógica e conclusão das três parábolas precedentes (a do mordomo fiel e do mordomo infiel; a das jovens previdentes e das jovens descuidadas; e a dos talentos). Nessas parábolas como neste texto, aparecem dois polos pessoais com atitudes e comportamentos diversos enquanto esperavam a vinda do Senhor Jesus. Mateus mostra agora de forma clara qual será o “fim” definitivo dos que se mantiveram e dos que não se mantiveram vigilantes e preparados para a vinda do Senhor. Mais uma vez, para percebermos a sua catequese, temos atender ao contexto da comunidade a que se dirige. Nos últimos decénios do século I (década de 80), passado o entusiasmo inicial pela vinda iminente de Jesus para instaurar o Reino, os cristãos estão desinteressados, instalados, acomodados; vivem a fé de modo rotineiro, morno, pouco exigente e pouco comprometido; e alguns, face às dificuldades, deixam a comunidade e renunciam ao Evangelho. Mateus, preocupado com a situação, intenta revitalizar a fé, reacender o entusiasmo, entusiasmar ao compromisso. E fá-lo com uma catequese que exorta à vigilância, enquanto se espera o encontro final com Cristo.
No texto do juízo final, Mateus mostra aos crentes – com a linguagem veemente dos pregadores da época – o que esperam, no final da caminhada, tanto os que se mantiveram vigilantes e viveram de acordo com os ensinamentos de Jesus, como os que esqueceram os valores do Evangelho e que conduziram a vida de acordo com outros interesses e preocupações.
A parábola começa com uma introdução (vv. 31-33) que apresenta o quadro: o “Filho do Homem” sentado no trono, depois de separar as pessoas, umas das outras, “como o pastor separa as ovelhas dos cabritos”. A seguir, vêm dois diálogos: um, entre “o rei” e “as ovelhas” que estão à direita (vv. 34-40); outro, entre “o rei” e os “cabritos” que estão à esquerda (vv. 41-46).
No primeiro diálogo, o “rei” acolhe as “ovelhas” e convida-as a tomar posse da herança do “Reino”; no segundo, o “rei” afasta os “cabritos” e impede-os de tomar posse da herança do Reino. O critério decisivo que “o rei” utiliza para acolher uns e rejeitar outros parece ser, na ótica de Mateus, a atitude de amor ou de indiferença para com os irmãos mais pequenos de Jesus, que se encontram em situações dramáticas de necessidade: os famintos, os sedentos, os peregrinos, os que não têm que vestir, os doentes, os presos. Com efeito, Jesus identifica-Se com os pequenos, os pobres, os débeis, os marginalizados. Assim, manifestar amor e prestar solidariedade para com o pobre é fazê-lo ao próprio Jesus, tal como manifestar egoísmo e indiferença para com o pobre é fazê-lo ao próprio Jesus.
A cena pode interpretar-se de dois modos, dependendo de como entendemos a palavra “irmão”. Em sentido genérico, “irmão” designaria qualquer homem; neste caso, a exortação de Jesus convida os que querem entrar no Reino a ir ao encontro de qualquer homem que tenha fome ou sede, que seja peregrino, que esteja nu, doente ou na prisão, para lhe manifestar amor e solidariedade. Entendida num sentido mais restrito, a palavra “irmão” designaria os membros da comunidade cristã. Seja como for, os dois sentidos não se excluem; e é possível que Mateus se refira às duas realidades. São irmãos de Jesus, sejam ou não da comunidade.
A exortação que Mateus lança à sua comunidade cristã (e às comunidades de todos os tempos e lugares) nas parábolas precedentes ganha aqui uma força impressionante à luz desta cena final. Com os dados deste Evangelho, fica evidente que “estar vigilantes e preparados” (o grande tema do “discurso escatológico” dos capítulos 24 e 25) consiste, principalmente, em viver o amor e a solidariedade para com os pobres, os pequenos, os desprotegidos, os marginalizados. Em última análise, é esse o critério que decide a entrada ou a não entrada no Reino de Deus. Esta exortação dirige-se a uma comunidade que negligencia o amor aos irmãos, vive na indiferença ao sofrimento dos mais débeis, é insensível ao drama dos pobres e não cuida dos pequenos e dos desprotegidos. Como estas são atitudes que não se coadunam com a lógica do Reino, quem vive desse modo não poderá fazer parte do Reino. Daí a atualidade da parábola.
A cena do juízo final não é uma descrição exata e fotográfica do que acontecerá no final dos tempos. Mateus não é repórter, mas catequista a instruir a comunidade sobre os critérios e lógicas de Deus. O objetivo é esclarecer que Deus não aprova a vida conduzida por critérios de egoísmo, onde não há lugar para o amor a todos, em especial aos mais pobres e débeis. Um dos pormenores mais sugestivos é a identificação de Cristo com os famintos e sedentos, os abandonados, os pequenos, os desprotegidos: todos eles são membros de Cristo e não os amar é não amar Cristo. Dizer que se ama Cristo e não viver ao estilo de Cristo, no amor a todos os homens, é mentira e incoerência.
Não é Deus quem condena os maus (“os cabritos”) ao inferno. Deus não condena ninguém. Quem se condena ou não é o homem, na medida em que não aceita ou aceita a vida que Deus lhe oferece. Assim, é justo perguntar se haverá quem, tendo consciência plena do que está em jogo, rejeita o amor e escolhe, em definitivo, o egoísmo, o orgulho, a autossuficiência, ou seja, o afastamento definitivo de Deus e do Reino; e se haverá quem, percebendo o sem sentido dessas opções, se obstina nelas por toda a eternidade. Porém, Mateus põe Jesus a dizer aos “cabritos”: “afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e para os seus anjos”. Isto, porque Mateus é o pregador veemente, que usa a técnica dos pregadores da época e gosta de recorrer a imagens fortes que toquem o auditório e que o levem a sentir-se interpelado. Para além dos exageros de linguagem, a mensagem é: o egoísmo e a indiferença para com o irmão não têm lugar no Reino de Deus.
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Durante a sua segunda viagem missionária, Paulo chegou a Corinto, provindo de Atenas, e ali ficou cerca 18 meses (anos 50-52). De acordo com At 18,2-4, Paulo começou a trabalhar em casa de Priscila e Áquila, um casal de judeo-cristãos. No sábado, falava na sinagoga. Com a chegada de Silvano e Timóteo a Corinto (2Cor 1,19; At 18,5), Paulo consagrou-se totalmente ao anúncio do Evangelho. Mas não tardou a entrar em conflito com os judeus e foi expulso da sinagoga.
Como resultado da pregação paulina nasceu a comunidade cristã de Corinto. A maior parte dos membros da comunidade eram de origem grega, embora, em geral, de condição humilde (cf 1 Cor 11,26-29; 8,7; 10,14.20; 12,2), mas também havia elementos de origem hebraica (cf At 18,8; 1 Cor 1,22-24; 10,32; 12,13). Em geral, a comunidade era viva e fervorosa. Contudo, estava exposta aos perigos do ambiente corrupto que ali se respirava e era influenciada por ele. É neste contexto que entendemos alguns problemas sentidos na comunidade e apontados na 1.ª Carta aos Coríntios: moral dissoluta (cf 1Cor 6,12-20; 5,1-2), querelas, disputas e lutas (cf 1 Cor 1,11-12), sedução da sabedoria pagã que se introduzia na Igreja revestida dum superficial verniz cristão (cf 1Cor 1,19-2,10)… Na comunidade coríntia, a fé cristã tinha dificuldade em inserir-se num ambiente hostil, marcado pela cultura pagã e por um conjunto de valores contrariantes da pureza do Evangelho. Um dos pontos de notória dificuldade em conciliar os dados da fé cristã com os valores do mundo grego era a questão da ressurreição. Enquanto a ressurreição dos mortos era relativamente bem aceite no judaísmo (habituado a ver o homem na sua unidade), constituía um problema sério para a mentalidade grega. A cultura grega estava influenciada por filosofias dualistas, que viam no corpo uma realidade negativa e na alma uma realidade nobre e ideal. Aceitar que a alma viveria sempre não era difícil para os gregos. O problema era aceitar a ressurreição do homem total: sendo o homem (de acordo com a mentalidade grega) constituído por alma e corpo era impensável falar da ressurreição do homem.
Frente às objeções e dúvidas dos coríntios, Paulo parte da ressurreição de Cristo (cf 1Cor 15,1-11), para inferir que todos os que se identificarem com Ele ressuscitarão também (cf 1Cor 15,12-34).
O texto de Paulo começa com a afirmação de que “Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram” (v. 20). A sua ressurreição não foi um caso único e excecional, mas o primeiro caso. “Primeiro” deve ser entendido aqui, não apenas em sentido cronológico, mas no sentido do princípio ativo da ressurreição de todos os homens e mulheres. Cristo foi constituído por Deus princípio da nova humanidade; a sua ressurreição arrasta atrás de si toda a sua “descendência” – ou seja, todos aqueles que se identificam com Ele, que acolheram a sua proposta de vida e O seguiram – ao encontro da vida plena e eterna (vv. 21-23). O destino da nova humanidade é o Reino de Deus. E este Reino será a realidade onde o egoísmo, a injustiça, a miséria, o sofrimento, o medo, o pecado e até a morte (todos os inimigos da vida e do homem) estarão definitivamente ausentes, pois terão sido vencidos por Cristo (vv. 24-26). No Reino definitivo, Deus manifestar-Se-á em tudo e atuará como Senhor de todas as coisas (v. 28).
A reflexão paulina lembra aos cristãos que o fim último da caminhada crente é a participação no “Reino de Deus” de vida plena e definitiva, para o qual Cristo nos atrai.

Por uma atualização da mensagem
- A imagem do Pastor é imagem privilegiada para apresentar Deus e definir a sua relação com os homens. Frisa a sua autoridade e papel na condução do seu Povo pelos caminhos da história; e exalta a preocupação, o carinho, o cuidado, o amor de Deus pelo seu Povo. Já nem todos hoje entenderão a figura do “pastor”, mas todos são convidados a entregar-se nas mãos de Deus, a confiar totalmente n’Ele, a deixar-se conduzir por Ele, fazendo a experiência do seu amor e da sua bondade. É experiência tranquilizante e libertadora, que traz serenidade e paz.
A questão não é se Deus é ou não “pastor” (Ele é “pastor”), mas se estamos ou não dispostos a segui-l’O, a deixar-nos conduzir por Ele, a confiar n’Ele para atravessar vales sombrios, a deixar-nos levar ao seu colo para os nossos pés não se ferirem nas pedras do caminho. Alguma cultura contemporânea pretende que nos realizemos libertando-nos de Deus e sermos os guias de nós próprios. Ora, é importante discernir o que releva para a nossa felicidade e plenitude de vida: Deus ou o nosso orgulho e autossuficiência. Há que discernir e optar.
- Fugindo de Deus, agarramo-nos a outros “pastores” e fazemos deles a nossa referência, o nosso líder, o nosso ídolo. Se a riqueza e o poder condicionam a nossa opção, levam-nos à desilusão. Valores ditados por quem presume saber tudo, pautar-se pelo política e socialmente correto, seguir a opinião pública, obedecer ao líder partidário, acolher o comodismo e a instalação, zelar pela preservação dos esquemas egoístas e dos privilégios, almejar a todo o custo o êxito e o triunfo, apreciar o herói mais giro da telenovela ou do cinema, visualizar o programa de maior audiência da estação televisiva de maior audiência – são categorias que se esgotam e nos esgotam. “Vaidade das vaidades e tudo é vaidade” (Ecl 1,2)!
- A meta final da caminhada é o Reino, isto é, a realidade da vida plena, donde estarão ausentes a doença, a tristeza, o sofrimento, a injustiça, a prepotência, a morte. Há que ter presente esta realidade ao longo desta peregrinação pela terra, pois a vida presente não é um drama absurdo, sem sentido e sem finalidade; é caminhada tranquila, confiante – embora feita no sofrimento e na dor – em direção a esse desabrochar pleno, a essa vida total que Deus nos reserva.
- Chegamos a este saber e sentir identificando-nos com Cristo. A ressurreição de Cristo é o selo de garantia de Deus para uma vida oferecida ao Reino. Mostra que a vida vivida na escuta atenta do projeto do Pai e no amor e serviço ao homem leva à vida plena; que a vida gasta na luta contra o egoísmo, opressão e pecado leva à vida definitiva; e que a vida ao serviço da construção do Reino leva à vida verdadeira. Se a nossa vida for gasta do mesmo jeito, seguimos Cristo na ressurreição, atingimos a vida nova do Homem Novo e estaremos para sempre com Ele nesse Reino livre do sofrimento, do pecado e da morte que Deus reserva para os seus filhos.
- Descobrir que o Reino é a nossa meta final significa eliminar definitivamente o medo que nos impede de atuar e de assumir um protagonismo na construção de um mundo novo. Quem tem no horizonte final da vida o Reino pode comprometer-se na luta pela justiça e pela paz, com a certeza de que a injustiça, a opressão, a oposição dos poderosos, a morte não podem pôr fim à vida que nos anima. Ter o Reino como meta significa libertarmo-nos do medo que paralisa e encontrarmos razões para o real compromisso com Deus, com o mundo e com os homens.
- Em geral, o “homem de sucesso” que todos consideram importante e realizado é o que tem dinheiro bastante para concretizar todos os sonhos e fantasias, que tem poder bastante para ser temido, que tem êxito bastante para juntar à sua volta uma plêiade de aduladores, que tem fama bastante para ser invejado, que tem talento bastante para ser admirado, que tem o desplante suficiente para dizer ou fazer o que lhe apetece, que tem vaidade bastante para se apresentar aos outros como modelo de vida. Porém, de acordo com o Evangelho, o critério fundamental de Jesus para definir quem é uma “pessoa de sucesso” é a capacidade de amar o irmão, mormente o mais pobre e desprotegido. É, pois de questionar o que faz mais sentido para nós: se o critério do mundo, se o critério de Deus; se interessa mais ser o “homem de sucesso” do mundo ou o “homem de sucesso” de Deus. Há que discernir e optar.
- O amor ao irmão é, pois, condição para fazer parte do Reino. Nós, os cristãos, cidadãos do Reino, devemos ter consciência disso e sentir-nos responsáveis por todos os irmãos que sofrem, que não têm trabalho, pão ou casa, que devem poder contar com a nossa solidariedade ativa, bem como os imigrantes e refugiados, perdidos numa realidade cultural e social estranha, vítimas de injustiças e violências, condenados a um trabalho escravo e que, tantas vezes, não respeita a sua dignidade. Também devem poder contar com a nossa solidariedade ativa os pobres, vítimas de injustiças, que nem sequer têm a possibilidade de recorrer aos tribunais para lhes ser feita justiça; os que sobrevivem com pensões de miséria, sem possibilidades de comprar os medicamentos necessários para aliviar os seus padecimentos; os que estão sozinhos, abandonados por todos, sem amor nem amizade; e os que estão presos a um leito de hospital ou a uma cela de prisão, marginalizados e condenados em vida.
- O Reino de Deus é semente que Jesus semeou, que os discípulos edificam na história e que terá o seu tempo definitivo no mundo que há de vir. Não esqueçamos, entretanto, que o Reino está no meio de nós e que a nossa missão é fazer com que ele seja realidade bem viva e presente no nosso mundo. Depende de nós fazer com que o Reino deixe de ser uma miragem, para passar a ser realidade a crescer e a transformar o mundo e a vida dos homens. Na verdade, nós os cristãos, caminhamos ao encontro do mundo que há de vir, mas de pés bem assentes na terra, atentos à realidade que nos rodeia e preocupados em construir, desde já, um mundo de justiça, de fraternidade, de liberdade e de paz. A experiência religiosa não pode, nunca, servir-nos de pretexto para a evasão, para a fuga às responsabilidades, para a demissão das nossas obrigações para com o mundo e para com os irmãos.
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Há, pois, que encarar a vida, iluminá-la com a luz do Evangelho e atender à moção do Espírito. A comunidade dará ajuda. Depois, há que discernir entre os critérios de Jesus e os do mundo e ter a coragem de optar.

2017.11.26 – Louro de Carvalho

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