sábado, 18 de novembro de 2017

O Dia Mundial dos Pobres visa a relação de acolhimento transformador

No próximo dia 19 de novembro, XXXIII domingo do Tempo Comum no Ano A, penúltimo domingo do Ano Litúrgico, a Igreja Católica vai assinalar o Dia Mundial dos Pobres, instituído pelo Papa Francisco no final do Ano Santo da Misericórdia (dezembro 2015-novembro 2016), pela Carta Apostólica Misericordia et misera (n.º 21), de 26 de novembro de 2016.
Neste documento pontifício, Francisco escreve:
Os pobres não são um problema: são um recurso de que lançar mão para acolher e viver a essência do Evangelho”.
A propósito desta jubilosa e operativa efeméride, o Pontífice emanou para a Igreja e para o Mundo uma substanciosa mensagem, em torno do tema joânico “Não amemos com palavras nem com a boca, mas com obras e com verdade” (1Jo 3,18), em que alerta para a necessidade de a Igreja não se resignar ao escândalo da pobreza. Com efeito, “não podemos ficar inertes nem tão pouco resignados” perante o escândalo do “alastramento da pobreza nos grandes setores da sociedade do mundo inteiro”.
O Dia Mundial dos Pobres constitui para toda a comunidade cristã, na esteira do Ano Jubilar da Misericórdia, uma ocasião para testar a capacidade “de estender a mão aos pobres, aos débeis, aos homens e às mulheres aos quais muitas vezes é espezinhada a dignidade”, como explicou o arcebispo Dom Rino Fisichella, Presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, apresentando o texto da mensagem na manhã de terça-feira, 13 de junho, na Sala de imprensa da Santa Sé. Nesta perspetiva, o dicastério preparou um subsídio pastoral que esteve disponível a partir do mês de setembro, para permitir “que sacerdotes e o mundo do voluntariado vivam ainda mais intensamente” o sentido desta jornada.
O momento central de 19 de novembro será a missa presidida pelo Pontífice com a participação de 4000 pobres e voluntários. Em particular, para estes últimos está prevista também uma vigília de oração hoje, sábado dia 18, em São Lourenço fora dos Muros: uma ocasião para fazer memória do diácono e “grande santo romano” que elevou “a figura do pobre a verdadeiro e único ‘tesouro’ da Igreja”. Esta atenção privilegiada representou uma constante na história eclesial, como sublinhou na sua intervenção o bispo José Octavio Ruiz Arenas, secretário do dicastério, recordando que para o Papa Francisco “a opção pelos pobres é uma categoria teológica antes de ser cultural, sociológica, política ou filosófica”, constituindo “uma forma especial de primazia no exercício da caridade cristã, da qual toda a tradição da Igreja dá testemunho”. Por outro lado, almoçarão com o Pontífice 1500 homens e mulheres dos mais necessitados provindos de várias partes do mundo acompanhados por dezenas de voluntários, ao som dos acordes da banda da polícia vaticana e um coro de crianças entre os 5 e os 14 anos.
Também Francisco fez, no dia 16 uma visita surpresa ao pequeno hospital de campanha montado na Praça Pio XII, junto do Vaticano, por ocasião do I Dia Mundial dos Pobres. O espaço, com várias tendas, oferece consultas médicas e de enfermagem a pessoas necessitadas que vivem na capital italiana.
O Papa cumprimentou o pessoal médico, voluntários e várias pessoas que se encontravam na fila à espera de consulta gratuita. E falou com voluntários da Confederação das Misericórdias italianas, que lhe ofereceram, como fazem a todos os que deslocam ao espaço, uma bebida quente para combater o frio.
Em Lisboa, um conjunto de organizações católicas de solidariedade vai assinalar a data numa iniciativa promovida pela Cáritas Portuguesa que começa no Largo da Trindade e prossegue às 11 horas, na igreja de São Roque, presidida por Dom António Vitalino, bispo emérito de Beja e vogal da Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana.
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O Semanário Ecclesia, do dia 17, apresenta uma entrevista com Teresa Vasconcelos, vogal da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), em que a entrevistada faz a sua leitura do significado da efeméride, da mensagem pontifícia e das preocupações da CNJP.
E a ideia fulcral de Teresa Vasconcelos é que “a relação da Igreja com os pobres passa por acolhimento transformador”, o que implica a transformação das relações humanas e sociais e uma caminhada conjunta em que todos têm algo a dar e a receber.
Segundo a entrevistada, a iniciativa do Papa de instituir o Dia Mundial dos Pobres é fundamental e vem na linha de vários predecessores de Francisco, nomeadamente João XXIII, “que chamaram a atenção para a questão dos pobres, com um desafio aos cristãos: não se pode pôr em prática a mensagem do Evangelho sem olhar para os mais desprotegidos”. E “esta é uma linha já coerente, dentro da Igreja Católica”.
O facto de Francisco ter lançado este dia mundial constitui “a possibilidade de, no contexto de uma jornada, se refletir sobre esta questão da pobreza no mundo”. Na verdade, “nunca, a não ser no tempo da escravatura ou da exploração total dos trabalhadores, houve tanta desigualdade – e o nosso país é um dos piores a nível da Europa – entre uma minoria dos mais ricos e uma maioria de pobres. E, apesar de em Portugal, as coisas estarem um pouco “mais estabilizadas”, “este cancro que mina a sociedade” existe. Com efeito, encontramos cada vez mais pessoas que optam por viver na rua ou para ela são empurradas e “famílias que vivem muitas vezes uma pobreza escondida”.
Porém, no seu desafio, o Papa “pega nas coisas um bocadinho ao contrário, ao dizer que os pobres – cuidar dos pobres, pensar nos pobres – podem ser um meio fundamental para o nosso crescimento, a exemplo de Jesus Cristo”. Ora, “se nós cultivarmos, e se a Igreja nos ajudar a cultivar, esta atenção prioritária aos pobres, nós cada vez mais caminhamos na linha dos Evangelhos, daquilo que Cristo nos interpelou”.
Francisco não se contenta com olhar os pobres numa ótica assistencialista, “mas como companheiros de crescimento”. Ora, esta interpelação papal “vem colocar-nos num patamar superior”. Assim, o apelo não é à “caridadezinha” – mas “é fundamental, na situação de crise, providenciar com aquilo que é urgente, necessário” – é, antes, a que “nos debrucemos realmente sobre as estruturas injustas das sociedades em que vivemos para, de alguma forma, encontrarmos meios de trabalhar para uma maior justiça social”. E a entrevistada evoca o exemplo de Teresa de Ávila:
Eu lembro sempre uma coisa muito bonita de Santa Teresa de Ávila, quando ela tinha as experiências místicas, nomeadamente na Sétima Morada, dizia sempre: a união com Deus, tal como eu a experimento, é provisória, é temporária. Eu tenho de regressar ao mundo e fazer obras”.
Este é o apelo: “a nossa vida será sempre trabalhar para o Reino de Deus”, no mundo, “aqui e agora”, também ao nível da sociedade portuguesa, “a que mais diretamente nos interessa, mas também ao nível do equilíbrio entre ricos e pobres no mundo”, cuja “situação é absolutamente dramática”.
A entrevistadora Lígia Silveira pergunta se a mensagem do Papa é recado para quem está numa situação social diferente para que olhe para a pobreza sem perpetuar estruturas assistencialistas que consideram que pobreza haverá sempre. Ao que T. Vasconcelos responde:
Mais uma vez, o Papa fala num patamar diferente. Questiona estruturas da Igreja e da sociedade civil, e lança-lhes a questão de saber em que medida estão a fazer apenas um remedeio temporário ou estão a ajudar os pobres a serem donos do seu próprio destino, dando-lhes meios, educação, trabalho, para que o ciclo da pobreza seja interrompido.”.
Falando da sua antiga experiência de trabalho numa IPSS, diz que “há um salto qualitativo que a Igreja”, em sua opinião, “deve fazer, formando as direções e quem trabalha nestas instituições, para uma postura de acolhimento dos pobres que seja um acolhimento transformador e não algo que os humilhe, que os faça sentir que são um ‘cancro’ na sociedade”. E sustenta que “há um trabalho muito grande a fazer, se queremos desenvolver, como o Papa nos desafia, uma verdadeira atitude de compaixão e de misericórdia”.
No atinente ao facto de Francisco indicar exemplos, como a figura de São Francisco de Assis, com uma intenção pedagógica, porque este “fazer caminho com” acaba por ser transformador aduz que este processo “envolve o nosso coração”, pois, “neste caminho transformador, é preciso encarar o pobre, que muitas vezes não é atrativo, a maior parte das vezes – o pobre da rua, vestido Deus sabe como, sem os mínimos cuidados de higiene…”. E explicita:
É preciso acolher como iguais, aqui no verdadeiro sentido de hospitalidade: acolher o outro, mas não de cima para baixo, pensando que eu posso fazer alguma coisa pelo pobre e que ele pode fazer muita coisa por mim. No verdadeiro sentido do que são as obras de misericórdia, corporais e espirituais. Eu também posso ser objeto das obras de misericórdia.”.
Em relação à  pobreza evangélica de que fala o Papa, disse com amarga ironia:
Estamos muito longe, a começar por mim, que nem sempre penso que há outros que vivem pior do que eu. Depois, as estruturas mais altas da Igreja Católica não são sempre exemplo de um abraçar do Evangelho e aí também é importante que todos olhem para este estado de coisas e nos possamos perguntar: o que é que Cristo faria se estivesse no meu lugar?”.
E assegura: 
Se levarmos a sério a profundidade desta questão ‘Como é que Cristo faria no meu lugar”, a Igreja Católica e o mundo, em geral, serão muito mais justos e solidários. Tenho a convicção absoluta de que foi para isso que Cristo viveu entre nós.”.
O que se pergunta a cada um, na ótica da entrevistadora, “é não tanto que o fazes ao teu dinheiro, mas o que o teu dinheiro faz de ti”. E a entrevistada acorre, de imediato, com a universalidade da questão:
É para todos. Esta interpelação é para todos. Eu posso ter o meu dinheiro e ter liberdade interior em relação a ele, saber que o dinheiro é para o serviço da comunidade. Posso ter, infelizmente, a atitude oposta, inclusive em pessoas que se autodenominam católicas, que é a ganância. Dizer: eu quero mais, eu quero mais, eu quero mais dinheiro. Pode ser uma dependência como qualquer outra.”.
E conclui que “é importante que os cristãos se interpelem uns aos outros”, dizendo que é a razão pela qual está, como vogal, na CNJP, “para que, de uma forma mais institucional, aquilo em que acredito possa ter impacto na sociedade”.
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Replicando à entrevistadora, que aduz que “o Papa recorda a pobreza que atinge os jovens que não conseguem encontrar o seu primeiro emprego” e que pergunta se “esta é uma realidade que a sociedade portuguesa enfrenta muito, como a chamada pobreza envergonhada”, explica-se com base em situações diferentes, incluindo aspetos pessoais:
Há níveis muito diversificados de pobreza. Mais facilmente penso na pessoa que está à porta de uma igreja a pedir pão, mas se nós fôssemos mais solidários com os jovens… Por exemplo, quando me aposentei, fui convidada por uma universidade, podendo acumular rendimentos, e eu disse: não, há dezenas de jovens que fizeram os seus graus e que vocês devem contratar. Para mim é uma questão ética.”.
Sobre as questões que os jovens nos podem colocar neste âmbito, sustenta:
Os jovens podem questionar se os cristãos estão a ser solidários com eles, se estamos a viver a vida das primeiras comunidades cristãs, onde cada qual vivia de acordo com as suas necessidades e havia uma partilha de bens. Isso é o que os Atos dos Apóstolos nos dizem.” (cf At 2,42-47; 4,32-37).
E, pretendendo estender a interrogação a todos nós, questiona-se:
Como é que eu partilho, nos tempos de hoje, com os mais jovens que não conseguem o primeiro emprego ou trabalham com níveis de salários absolutamente escandalosos”?
Estriba-se nas estatísticas para vituperar a sociedade. Na verdade estas “dizem que, mesmo numa situação de ligeira melhoria, as relações laborais – exploração, subemprego – pioraram”. E acusa que “continuam a piorar”, pois “não vivemos, por muito que haja tentativas de melhorar as coisas, numa sociedade mais justa”. Com efeito, “todas as estruturas, a nível micro, meso ou macro, devem ser passadas em revista por nós, cristãos, de uma forma crítica, para depois se pensar, individualmente ou em grupo, como é que se podem abalar essas estruturas”.
É a coesão social que está fendida quando quem não tem um emprego e não aufere um salário digno para cobrir as suas despesas não tem vontade de participar civicamente. A isto, Teresa Vasconcelos diz que “o primeiro passo da cidadania é a consciência de que se pode participar” e que a participação de cada um “tem impacto”; ao invés, “as pessoas desistem e conformam-se”. E confidencia:
Das piores situações que vi, no mundo, foi na Índia, porque a pobreza é absolutamente conformada. Há uma aceitação tácita de que, porque se nasceu numa casta, não se tem hipótese. Cá, sem termos um sistema de castas, temos um sistema que referencia pessoas que assumem que não há nada a fazer ou vivem à sombra de uma caridade que não é uma caridade que transforme a situação.”.
Contra a apatia, o conformismo e a aceitação das fendas da coesão social, há que estabelecer e desenvolver a “cultura do encontro”, expressão tão cara ao Papa Francisco, e da pró-atividade. Segundo esta dinâmica cultural, apesar de “vivermos numa situação de esperança perante o absurdo da sociedade”, somos induzidos “a continuar o trabalho que todos somos chamados a fazer”. Ora, “é preciso que a Igreja e os cristãos divulguem este tipo de ações”, que pretendem colmatar as fendas de coesão, puxam à solidariedade, promovem a cidadania consciente, responsável e com impacto, criam o encontro. De facto, “sermos companheiros de viagem é”, como diz, “a essência desta carta e o chamamento que Deus, através de Jesus Cristo, nos faz”.
Quanto a um futuro influenciado positivamente pelo Dia Mundial dos Pobres, a entrevistada adianta:
Vamos esperar que, ano a ano, uma vez que se atribui um Dia Mundial dos Pobres pouco antes de iniciar o Advento, este dia nos traga uma reflexão imbuída de ação para melhorarmos estruturas injustas. Mas também para, à semelhança de São Francisco de Assis, nos tornarmos companheiros não dando de cima para baixo, mas entrando no mesmo caminho. Os pobres podem interpelar-nos, chamar à ação e treinar o nosso olhar para a verdadeira misericórdia – essa palavra que vem do coração.”.
O que ressalta na mensagem é “a forma ampla como o conceito de pobreza é tratado pelo Papa”. Quando ele diz isto, é porque o vive e “isso é uma grande bênção”. De facto, a pobreza interpela-nos, para que de algum modo refaçamos a vida, juntamente com os pobres.
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É imperioso que a Mensagem de Francisco leve a que o Dia Mundial dos Pobres constitua um marco de referência que evidencie para todos os anseios gritantes dos pobres, mesmo que silenciados ou sufocados. Que a pobreza humana não seja mais uma fatalidade, que os cristãos saibam enveredar pela séria partilha dos bens espirituais, sociais, culturais e materiais. É a dignidade do homem que o postula. Há sempre alternativa.

2017.11.18 – Louro de Carvalho

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