No próximo
dia 19 de novembro, XXXIII domingo do Tempo Comum no Ano A, penúltimo domingo
do Ano Litúrgico, a Igreja Católica vai assinalar o Dia Mundial dos Pobres, instituído pelo Papa Francisco no final do
Ano Santo da Misericórdia (dezembro 2015-novembro 2016), pela Carta Apostólica Misericordia et misera (n.º 21), de 26 de novembro de 2016.
Neste documento pontifício, Francisco escreve:
“Os
pobres não são um problema: são um recurso de que lançar mão para acolher e
viver a essência do Evangelho”.
A propósito
desta jubilosa e operativa efeméride, o Pontífice emanou para a Igreja e para o
Mundo uma substanciosa mensagem, em torno do tema joânico “Não
amemos com palavras nem com a boca, mas com obras e com verdade” (1Jo 3,18), em que alerta para a necessidade de
a Igreja não se resignar ao escândalo da
pobreza. Com efeito, “não
podemos ficar inertes nem tão pouco resignados” perante o escândalo do “alastramento da pobreza nos grandes setores da
sociedade do mundo inteiro”.
O Dia
Mundial dos Pobres constitui
para toda a comunidade cristã, na esteira do Ano Jubilar da Misericórdia, uma ocasião para testar a capacidade “de estender a mão aos pobres, aos débeis,
aos homens e às mulheres aos quais muitas vezes é espezinhada a dignidade”,
como explicou o arcebispo Dom Rino Fisichella, Presidente do Pontifício
Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, apresentando o texto da
mensagem na manhã de terça-feira, 13 de junho, na Sala de imprensa da Santa Sé.
Nesta perspetiva, o dicastério preparou um subsídio pastoral que esteve
disponível a partir do mês de setembro, para permitir “que sacerdotes e o mundo
do voluntariado vivam ainda mais intensamente” o sentido desta jornada.
O momento
central de 19 de novembro será a missa presidida pelo Pontífice com a
participação de 4000 pobres e voluntários. Em particular, para estes últimos
está prevista também uma vigília de oração hoje, sábado dia 18, em São Lourenço
fora dos Muros: uma ocasião para fazer memória do diácono e “grande santo
romano” que elevou “a figura do pobre a
verdadeiro e único ‘tesouro’ da Igreja”. Esta atenção privilegiada
representou uma constante na história eclesial, como sublinhou na sua
intervenção o bispo José Octavio Ruiz Arenas, secretário do dicastério,
recordando que para o Papa Francisco “a
opção pelos pobres é uma categoria teológica antes de ser cultural,
sociológica, política ou filosófica”, constituindo “uma forma especial de primazia no exercício da caridade cristã, da qual
toda a tradição da Igreja dá testemunho”. Por outro lado, almoçarão com o
Pontífice 1500 homens e mulheres dos mais necessitados provindos de várias
partes do mundo acompanhados por dezenas de voluntários, ao som dos acordes da banda da polícia vaticana e um
coro de crianças entre os 5 e os 14 anos.
Também Francisco fez, no dia 16 uma visita surpresa ao
pequeno hospital de campanha montado na Praça Pio XII, junto do Vaticano, por
ocasião do I Dia Mundial dos Pobres.
O espaço, com várias tendas, oferece consultas médicas e de enfermagem a
pessoas necessitadas que vivem na capital italiana.
O Papa cumprimentou o pessoal médico, voluntários e
várias pessoas que se encontravam na fila à espera de consulta gratuita. E
falou com voluntários da Confederação das Misericórdias italianas, que lhe
ofereceram, como fazem a todos os que deslocam ao espaço, uma bebida quente
para combater o frio.
Em Lisboa, um conjunto de organizações católicas de
solidariedade vai assinalar a data numa iniciativa promovida pela Cáritas
Portuguesa que começa no Largo da Trindade e prossegue às 11 horas, na igreja
de São Roque, presidida por Dom António Vitalino, bispo emérito de Beja e vogal
da Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana.
***
O Semanário Ecclesia, do dia 17, apresenta uma
entrevista com Teresa Vasconcelos, vogal da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), em que a entrevistada faz a sua leitura do
significado da efeméride, da mensagem pontifícia e das preocupações da CNJP.
E a ideia fulcral de Teresa Vasconcelos é que “a relação da Igreja com os pobres passa por acolhimento
transformador”, o que implica a
transformação
das relações humanas e sociais e uma caminhada conjunta em que todos têm algo a
dar e a receber.
Segundo a
entrevistada, a
iniciativa do Papa de instituir o Dia
Mundial dos Pobres é fundamental e vem na linha de vários predecessores de
Francisco, nomeadamente João XXIII, “que chamaram a atenção para a questão dos
pobres, com um desafio aos cristãos: não
se pode pôr em prática a mensagem do Evangelho sem olhar para os mais
desprotegidos”. E “esta é uma linha já coerente, dentro da Igreja Católica”.
O facto de
Francisco ter lançado este dia mundial constitui “a possibilidade de, no
contexto de uma jornada, se refletir sobre esta questão da pobreza no mundo”. Na
verdade, “nunca, a não ser no tempo da
escravatura ou da exploração total dos trabalhadores, houve tanta desigualdade –
e o nosso país é um dos piores a nível da Europa – entre uma minoria dos mais
ricos e uma maioria de pobres”. E,
apesar de em Portugal, as coisas estarem um pouco “mais estabilizadas”, “este
cancro que mina a sociedade” existe. Com efeito, encontramos cada vez mais
pessoas que optam por viver na rua ou para ela são empurradas e “famílias que
vivem muitas vezes uma pobreza escondida”.
Porém, no seu
desafio, o Papa “pega nas coisas um bocadinho ao
contrário, ao dizer que os pobres – cuidar dos pobres, pensar nos pobres –
podem ser um meio fundamental para o nosso crescimento, a exemplo de Jesus
Cristo”. Ora, “se nós cultivarmos, e se a
Igreja nos ajudar a cultivar, esta atenção prioritária aos pobres, nós cada vez
mais caminhamos na linha dos Evangelhos, daquilo que Cristo nos interpelou”.
Francisco não se contenta com olhar os pobres numa ótica
assistencialista, “mas como companheiros de crescimento”. Ora, esta interpelação papal “vem colocar-nos
num patamar superior”. Assim, o apelo não é à “caridadezinha” – mas “é
fundamental, na situação de crise, providenciar com aquilo que é urgente,
necessário” – é, antes, a que “nos
debrucemos realmente sobre as estruturas injustas das sociedades em que vivemos
para, de alguma forma, encontrarmos meios de trabalhar para uma maior justiça
social”. E a entrevistada evoca o exemplo de Teresa de Ávila:
“Eu
lembro sempre uma coisa muito bonita de Santa Teresa de Ávila, quando ela
tinha as experiências místicas, nomeadamente na Sétima Morada, dizia sempre: a
união com Deus, tal como eu a experimento, é provisória, é temporária. Eu
tenho de regressar ao mundo e fazer obras”.
Este é o
apelo: “a nossa vida será sempre trabalhar para o Reino de Deus”, no mundo,
“aqui e agora”, também ao nível da sociedade portuguesa, “a que mais
diretamente nos interessa, mas também ao nível do equilíbrio entre ricos e
pobres no mundo”, cuja “situação é absolutamente dramática”.
A
entrevistadora Lígia Silveira pergunta se a mensagem do Papa é “recado para quem
está numa situação social diferente para que olhe para a pobreza sem perpetuar
estruturas assistencialistas que consideram que pobreza haverá sempre. Ao que T.
Vasconcelos responde:
“Mais uma vez, o Papa
fala num patamar diferente. Questiona estruturas da Igreja e da sociedade
civil, e lança-lhes a questão de saber em que medida estão a fazer apenas um
remedeio temporário ou estão a ajudar os pobres a serem donos do seu próprio
destino, dando-lhes meios, educação, trabalho, para que o ciclo da pobreza seja
interrompido.”.
Falando da
sua antiga experiência de trabalho numa IPSS, diz que “há um salto qualitativo
que a Igreja”, em sua opinião, “deve
fazer, formando as direções e quem trabalha nestas instituições, para uma
postura de acolhimento dos pobres que seja um acolhimento transformador e não
algo que os humilhe, que os faça sentir que são um ‘cancro’ na sociedade”.
E sustenta que “há um trabalho muito
grande a fazer, se queremos desenvolver, como o Papa nos desafia, uma
verdadeira atitude de compaixão e de misericórdia”.
No atinente ao facto de Francisco indicar
exemplos, como a figura de São Francisco de Assis, com uma intenção pedagógica,
porque este “fazer caminho com” acaba por ser transformador aduz que este processo “envolve o nosso coração”, pois, “neste caminho transformador,
é preciso encarar o pobre, que muitas vezes não é atrativo, a maior parte das
vezes – o pobre da rua, vestido Deus sabe como, sem os mínimos cuidados de
higiene…”. E explicita:
“É
preciso acolher como iguais, aqui no verdadeiro sentido de hospitalidade:
acolher o outro, mas não de cima para baixo, pensando que eu posso fazer alguma
coisa pelo pobre e que ele pode fazer muita coisa por mim. No verdadeiro
sentido do que são as obras de misericórdia, corporais e espirituais. Eu também
posso ser objeto das obras de misericórdia.”.
Em relação à pobreza
evangélica de que fala o Papa, disse com amarga ironia:
“Estamos muito longe, a
começar por mim, que nem sempre penso que há outros que vivem pior do que
eu. Depois, as estruturas mais altas da Igreja Católica não são sempre exemplo
de um abraçar do Evangelho e aí também é importante que todos olhem para este
estado de coisas e nos possamos perguntar: o
que é que Cristo faria se estivesse no meu lugar?”.
E assegura:
“Se levarmos a sério a
profundidade desta questão ‘Como é que
Cristo faria no meu lugar”, a Igreja
Católica e o mundo, em geral, serão muito mais justos e solidários. Tenho a
convicção absoluta de que foi para isso que Cristo viveu entre nós.”.
O que se pergunta a cada um, na ótica da
entrevistadora, “é não tanto que o fazes ao teu dinheiro, mas o que o teu
dinheiro faz de ti”. E a entrevistada acorre, de imediato, com a universalidade da questão:
“É para todos. Esta
interpelação é para todos. Eu posso ter o meu dinheiro e ter liberdade interior
em relação a ele, saber que o dinheiro é para o serviço da comunidade. Posso
ter, infelizmente, a atitude oposta, inclusive em pessoas que se autodenominam
católicas, que é a ganância. Dizer: eu quero mais, eu quero mais, eu quero mais
dinheiro. Pode ser uma dependência como qualquer outra.”.
E conclui que
“é importante que os cristãos se interpelem uns aos outros”, dizendo que é a
razão pela qual está, como vogal, na CNJP, “para que, de uma forma mais
institucional, aquilo em que acredito possa ter impacto na sociedade”.
***
Replicando
à entrevistadora, que aduz que “o Papa recorda a pobreza que atinge os jovens
que não conseguem encontrar o seu primeiro emprego” e que pergunta se “esta é
uma realidade que a sociedade portuguesa enfrenta muito, como a chamada pobreza
envergonhada”, explica-se com base em situações diferentes,
incluindo aspetos pessoais:
“Há níveis muito
diversificados de pobreza. Mais facilmente penso na pessoa que está à porta de
uma igreja a pedir pão, mas se nós fôssemos mais solidários com os jovens… Por
exemplo, quando me aposentei, fui convidada por uma universidade, podendo
acumular rendimentos, e eu disse: não, há dezenas de jovens que fizeram os seus
graus e que vocês devem contratar. Para mim é uma questão ética.”.
Sobre as
questões que os jovens nos podem colocar neste âmbito, sustenta:
“Os
jovens podem questionar se os cristãos estão a ser solidários com eles, se
estamos a viver a vida das primeiras comunidades cristãs, onde cada qual vivia
de acordo com as suas necessidades e havia uma partilha de bens. Isso é o que
os Atos dos Apóstolos nos dizem.” (cf At 2,42-47; 4,32-37).
E,
pretendendo estender a interrogação a todos nós, questiona-se:
“Como
é que eu partilho, nos tempos de hoje, com os mais jovens que não conseguem o
primeiro emprego ou trabalham com níveis de salários absolutamente escandalosos”?
Estriba-se
nas estatísticas para vituperar a sociedade. Na verdade estas “dizem que, mesmo
numa situação de ligeira melhoria, as relações laborais – exploração,
subemprego – pioraram”. E acusa que “continuam a piorar”, pois “não vivemos,
por muito que haja tentativas de melhorar as coisas, numa sociedade mais justa”.
Com efeito, “todas as estruturas, a nível micro, meso ou macro, devem ser passadas
em revista por nós, cristãos, de uma forma crítica, para depois se pensar,
individualmente ou em grupo, como é que se podem abalar essas estruturas”.
É a coesão social que está fendida quando quem não tem um
emprego e não aufere um salário digno para cobrir as suas despesas não tem vontade
de participar civicamente. A isto, Teresa Vasconcelos diz que “o primeiro passo da cidadania é a
consciência de que se pode participar” e que a participação de cada um “tem
impacto”; ao invés, “as pessoas desistem e conformam-se”. E confidencia:
“Das
piores situações que vi, no mundo, foi na Índia, porque a pobreza é
absolutamente conformada. Há uma aceitação tácita de que, porque se nasceu numa
casta, não se tem hipótese. Cá, sem termos um sistema de castas, temos um
sistema que referencia pessoas que assumem que não há nada a fazer ou vivem à
sombra de uma caridade que não é uma caridade que transforme a situação.”.
Contra a apatia,
o conformismo e a aceitação das fendas da coesão social, há que estabelecer e
desenvolver a “cultura do encontro”, expressão tão cara ao Papa Francisco, e da pró-atividade. Segundo esta dinâmica cultural, apesar de “vivermos numa situação de esperança
perante o absurdo da sociedade”, somos induzidos “a continuar o trabalho que
todos somos chamados a fazer”. Ora, “é preciso que a Igreja e os cristãos
divulguem este tipo de ações”, que pretendem colmatar as fendas de coesão,
puxam à solidariedade, promovem a cidadania consciente, responsável e com
impacto, criam o encontro. De facto, “sermos companheiros de viagem é”, como diz,
“a essência desta carta e o chamamento que Deus, através de Jesus Cristo,
nos faz”.
Quanto a
um futuro influenciado positivamente pelo Dia Mundial dos Pobres, a
entrevistada adianta:
“Vamos
esperar que, ano a ano, uma vez que se atribui um Dia Mundial dos Pobres pouco antes de iniciar o Advento, este dia
nos traga uma reflexão imbuída de ação para melhorarmos estruturas injustas. Mas
também para, à semelhança de São Francisco de Assis, nos tornarmos companheiros
não dando de cima para baixo, mas entrando no mesmo caminho. Os pobres podem
interpelar-nos, chamar à ação e treinar o nosso olhar para a verdadeira
misericórdia – essa palavra que vem do coração.”.
O que ressalta na mensagem é “a forma ampla como o conceito de pobreza
é tratado pelo Papa”. Quando ele diz isto, é porque o vive e “isso é
uma grande bênção”. De facto, a
pobreza interpela-nos, para que de algum modo refaçamos a vida, juntamente com
os pobres.
***
É
imperioso que a Mensagem de Francisco leve a que o Dia Mundial dos Pobres constitua um marco de referência que
evidencie para todos os anseios gritantes dos pobres, mesmo que silenciados ou
sufocados. Que a pobreza humana não seja mais uma fatalidade, que os cristãos
saibam enveredar pela séria partilha dos bens espirituais, sociais, culturais e
materiais. É a dignidade do homem que o postula. Há sempre alternativa.
2017.11.18 –
Louro de Carvalho
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