A utilização do Panteão Nacional para um jantar
exclusivo que assinalou o encerramento da Web
Summit está a gerar controvérsia, merecendo críticas nas redes sociais e
órgãos de comunicação social. Este jantar da “Founders Summit”, onde participaram algumas dezenas de pessoas
escolhidas pela organização, decorreu no dia 10 de novembro à noite, no espaço
central do Panteão, junto aos túmulos de personalidades como Amália, Eusébio,
Almeida Garrett e Sophia de Mello Breyner Andresen. A este respeito, o
embaixador Seixas da Costa, que partilhou foto do evento e foi secundado por
críticas de mais internautas, escreve:
“Com o tempo e com as incertezas da
sabedoria, inquietamo-nos sobre a justeza de certas opiniões pessoais. Seremos
nós quem não está a ver bem as coisas? Aconteceu-me agora. Ajudem-me: acham
mesmo normal que o jantar final do Web
Summit seja entre os túmulos do Panteão Nacional?”.
É óbvio que
os defuntos – heróis ou não – não se importam, não dão voltas no túmulo.
Provavelmente deles não restam senão cinzas ou outras quaisquer relíquias, a
que pouco acrescenta de real a existência de cenotáfios ou de urnas em
sepulturas. Mas fica de pé a obrigação ético-estética de não profanar a memória
dos que morreram e cujo mérito a Pátria, quiçá tardiamente, acabou por
reconhecer. Podem dizer que são mais 22 monumentos nacionais em que espetáculos
culturais, cocktails e jantares,
eventos académicos, sociais, infantis e especiais (eventos
comerciais, empresariais, de moda…) podem ser
desenvolvidos, bem como onde podem fazer-se filmagens sem identificação do
lugar (para
televisão, cinema, marketing comercial…). Todavia,
a igreja de Santa Engrácia foi destinada exclusivamente para fins de homenagem
panteónica, pelo que tudo o que saiba a pantagruelismo não fica ali bem, a não
ser eventualmente o lanche discreto de alguns dos que ali trabalham.
Não caberia
na cabeça de ninguém organizar um banquete, por exemplo, em torno da Chama da Pátria no Mosteiro da Batalha
ou em frente do túmulo de Dom Afonso Henriques em Coimbra ou na nave da igreja
do Mosteiro dos Jerónimos.
Perceberia
que ali ficasse bem um espetáculo musical do tipo Requiem de Verdi ou Requiem
de Mozart ou uma ópera épica do tipo Nabucco. De resto, como diz alguém, “Panteão
Nacional acolheu jantar exclusivo com elite da Web Summit – toda esta frase é medonha”. E o absurdo é que, dizem
outros, “é que a teoria oficiosa para jantares no Panteão é a dessacralização
dos monumentos nacionais”, pelo que, “logo o Panteão visa sacralizar os grandes
da pátria”, o que é exatamente ao contrário. Por
isso, está bem o Ministro da Cultura, bem como o Primeiro-Ministro – o que
Marcelo parece aplaudir – desfazer o que exibe o site oficial do Panteão:
“O Panteão Nacional disponibiliza alguns
espaços únicos para organização de jantares de gala, receções, cocktails,
concertos, lançamento de livros, simpósios, conferências, seminários e
colóquios. Para além dos eventos referenciados, poderão ser autorizados outros,
consentâneos com as caraterísticas e condições do monumento”.
A tabela de preços por espaço espaço está publicada em Diário da República num
dos quadros do Anexo I ao Regulamento de
Utilização de Espaços, aprovado pelo Despacho n.º 8356/2014, de 27 de junho, dos
Gabinetes dos Secretários de Estado da Cultura e Adjunto e do Orçamento. Só a Sala Sul não está disponível
para jantares. O Corpo Central está disponível por 3000 euros, o Coro Alto por
2500 euros, o Terraço por 3000 e o Adro por 4000 euros. A estes valores
acrescem o IVA e custos de “vigilância/guardaria”, caso o evento decorra fora
das horas de funcionamento do espaço.
***
Desde 2014 que são 23 os imóveis históricos que alugam espaços a privados
para promoção de jantares, festas, eventos culturais ou sociais e até filmagens
– com o objetivo da captação de verbas que ajudem à sua preservação e
sustentabilidade.
Os monumentos mais requisitados em 2016 foram o Mosteiro dos Jerónimos,
onde os preços começam nos 3000 euros, mas podem ir até aos 40 mil, e o Palácio
Nacional da Ajuda, onde o aluguer varia entre os 2500 e os 7500 euros. Outros
monumentos muito requisitados são o Museu Nacional dos Coches (pode-se alugar o Salão Nobre para jantares desde que se desembolse 10 mil
euros) e o Mosteiro
de Alcobaça. Ao longo dos últimos três anos, a receita cobrada com a cedência
de espaços foi de mais de um milhão e 161 mil euros.
Na tabela relativa ao aluguer de espaços em monumentos e museus, um dos
mais baratos é o Museu Monográfico de Conímbriga, cujo aluguer de sala custa
entre 50 e 1500 euros. No Museu Soares dos Reis, no Porto, os preços
estipulados também são mais acessíveis, entre os 500 e os dois mil euros.
Segundo dados da DGPC, houve crescimento de 2014 para 2015, mas decréscimo
de 2015 para 2016. E a diretora-geral do Património Cultural, Paula Silva,
declarou, em julho, ao JN que “a
cedência de espaços é muito irregular”, adiantando que “a cedência de espaços
representa 2,22% do total da receita arrecadada em 2016” e esclarecendo:
“A lei do enquadramento orçamental não
permite a consignação de receita à despesa. Todas as receitas cobradas são
centralizadas na DGPC, bem como todas as despesas. Assim, as despesas dos
serviços são pagas com receita própria arrecadada.”.
***
Mas não foi apenas a “Founders Summit” que ali organizou um jantar. Também
a empresa
pública NAV (Navegação Aérea)
organizou um jantar no Panteão Nacional, no passado dia 16 de outubro. As
imagens do evento também estão nas redes sociais. O propósito foi o de homenagear trabalhadores
da NAV Portugal e, ao jornal “Observador”,
a diretora de comunicação da empresa, Sofia Azevedo, explicou que a escolha do
local se deveu, entre outros aspetos, à originalidade do espaço.
Segundo o contrato publicado no portal BASE, o jantar custou à empresa
17.600 euros, acrescido de IVA, e nele terão participado cerca de 200 pessoas.
E Sofia Azevedo garantiu ainda que os túmulos do Panteão se encontravam “em
zonas fechadas e não acessíveis aos convidados da NAV”.
Era o que faltava virem os mortos sentarem-se à mesa ou convidarem os vivos
para a dança duma valsa ou dum tango!
***
Indignado com jantar da Web Summit, Costa proíbe festas no Panteão Nacional. Na verdade, o Primeiro-Ministro considerou,
em comunicado do dia 11, “absolutamente indigna” a utilização do Panteão
Nacional para aquele jantar, referindo:
“É absolutamente indigna do respeito devido à memória dos que aí
honramos. Apesar de enquadrado legalmente, através de despacho proferido pelo
anterior Governo, é ofensivo utilizar deste modo um monumento nacional com as
caraterísticas e particularidades do Panteão Nacional.”.
E
prometeu o Chefe do Governo:
“Tal como já foi divulgado pelo Ministério da Cultura, o Governo
procederá à alteração do referido despacho, para que situações semelhantes não
voltem a repetir-se, violando a história, a memória coletiva e os símbolos
nacionais”.
Também
em comunicado, o ministro da Cultura, Luís Castro Mendes, assumiu ter tomado
conhecimento da realização do jantar, um “facto que estranhou”. E, tendo
interpelado os serviços sobre o evento, o Ministro informou que “a decisão foi
tomada ao abrigo do Despacho n.º 8356/2014, de 27 de junho, do
anterior Governo, que aprovou o Regulamento de Utilização dos Espaços sob
tutela da Direcção-Geral do Património Cultural. No comunicado lê-se ainda:
“O Ministro da Cultura, perante esta informação, entende determinar a
imediata revisão do referido despacho. Essa revisão determinará a proibição de
realização de eventos de natureza festiva no Corpo Central do Panteão Nacional”.
E
assegura o Ministro que
“Não permitirá que a utilização para eventos públicos dos monumentos
nacionais possa pôr em causa o caráter e a dignidade próprias de cada um desses
monumentos”.
O
ex-Secretário de Estado da Cultura Jorge Barreto Xavier e outros afetos ao
anterior Governo vêm dizer com alguma verdade que o aludido Despacho acautela,
no texto preambular, que
“O acesso aos seus espaços [daqueles imóveis], pela sua dignidade e pelas
coleções que alguns deles encerram, deve ser
controlado por forma a salvaguardar-se uma utilização menos consentânea com as
suas origens, com a sua dignidade ou com a sua mensagem cultural”. Por outro
lado […] importa definir os critérios gerais desse acesso e dessa utilização,
por forma a que, quer o potencial utilizador, quer o serviço responsável pelo
imóvel saibam exatamente como atuar.”.
Também
o art.º 3.º, no âmbito dos princípios gerais, estabelece que
“Todas
as atividades e eventos a desenvolver terão que respeitar o posicionamento
associado ao prestígio histórico e cultural do espaço cedido”.
Só
que estas indicações são demasiado vagas e cabe, por isso,
“À Direção da DGPC decidir, após parecer
dos Serviços Dependentes, da oportunidade e interesse da cedência, bem como das
respetivas condições a aplicar” (cf n. 1 do art.º 2.º).
E
desde 2014, a prática tem sido usual. Já aconteceram no Panteão concertos,
exposições, espetáculos de bailado e lançamentos de livros.
***
Agora,
no Panteão Nacional, realizou-se o mais exclusivo dos eventos paralelos da Web Summit, em que participam cerca de
200 CEO (presidentes-executivos) fundadores de
empresas e startups, investidores de alto nível e gente com muito
dinheiro, com o objetivo de estabelecer ligações entre eles (networking). O jantar, denominado
“Founders Summit”, ocorreu no dia 10, em Lisboa, a seguir ao dia do
encerramento da feira tecnológica. O grande interesse estratégico que alguns
dos participantes representam para Portugal levou-os ao Palácio das
Necessidades, ao Palácio da Ajuda e ao Panteão Nacional.
Após
o encerramento da Web Summit (no dia 9), o Governo ofereceu
um cocktail no Palácio das Necessidades, o do Ministério dos
Negócios Estrangeiros, à nata das natas dos chamados “fundadores”, onde
estiveram presentes o Primeiro-Ministro e o ministro dos Negócios Estrangeiros.
Depois do cocktail, os founders jantaram no
Palácio Nacional da Ajuda, já no âmbito deste encontro exclusivo e em evento
privado, para o qual estava convidado também António Costa, que não compareceu.
Dois
dias antes, o Primeiro-ministro também ali oferecera um jantar alargado a quase
200 empreendedores, oradores e responsáveis políticos e empresariais. Fonte do
gabinete de Costa adiantou ao Diário de Notícias que foram
endereçados 185 convites para esse jantar e a reportagem da Lusa, presente na entrada do Palácio da
Ajuda, viu chegar figuras como o ator Joseph Gordon-Levitt, o futebolista
Ronaldinho Gaúcho (ambos são oradores) e o próprio cofundador da Web Summit, Paddy
Cosgrave. No campo político e além do Primeiro-Ministro, estiveram presentes personalidades
como o antigo presidente da Comissão Europeia Durão Barroso, o atual comissário
europeu Carlos Moedas, o antigo Vice-Primeiro-Ministro Paulo Portas, diversos
ministros e secretários de Estado do atual Governo e o autarca de Lisboa, o socialista
Fernando Medina, e vários embaixadores.
O
jantar do dia 9 para os founders foi mais restrito, mas no
dia seguinte, dia 10, houve outro que ainda o seria mais. No dia da própria “Founders
Summit”, o local escolhido para o jantar foi o corpo central do Panteão
Nacional, a que só tiveram acesso, por convite, personalidades escolhidas entre
multimilionários, grandes investidores e fundadores de grandes startups.
Em
Lisboa, à margem dum congresso de estudantes de Medicina, o Presidente da
República criticou a utilização do espaço nos termos seguintes:
“A imagem que eu tenho do Panteão Nacional não é a de ser um local
adequado para um jantar, nem que seja o jantar mais importante de Estado. […] Portanto, se o Governo tomou uma
decisão no sentido de isso deixar de ser possível, acho que é uma decisão muito
sensata, muito óbvia, que corresponde àquilo que qualquer pessoa com algum bom senso
faria nesse caso concreto.”.
O fundador da Web Summit, Paddy Cosgrave,
pediu desculpa, no dia 11, através do Twitter, pela realização daquele jantar
com convidados da cimeira tecnológica no Panteão Nacional:
"Querido Portugal, peço desculpa. Sou
irlandês. Culturalmente temos uma abordagem muito diferente à morte. Nós
celebramo-la. Isso não o torna a abordagem correta quando em Portugal. Amo este
país como uma segunda casa e nunca procuraria ofender os grandes heróis
portugueses do passado.”.
***
Já
em 2003, no Panteão Nacional, a editorial Presença ali recriou a escola
de feitiçaria frequentada por Harry Potter para a festa de lançamento dum novo
livro da saga de J. K. Rowling, tendo o então deputado socialista José Lello
levado o caso ao Parlamento, mas, entre os que defenderam publicamente a
decisão, contava-se, por exemplo, o escritor e editor Francisco José Viegas,
que viria a ser secretário de Estado da Cultura. Obviamente não é correta a
junção de feiticeiros/as no espaço evocativo de mortos, muito menos de heróis.
Temos
agora mais um caso polémico a adicionar aos alegados estragos no Convento de
Cristo em Tomar pela equipa do realizador Terry Gilliam e das investigações à
antiga diretora do Mosteiro dos Jerónimos por irregularidades nos alugueres daquele
monumento.
***
A
“Founders Summit”, que terminou no dia 11, com eventos turísticos ligados ao
surf e à gastronomia, é uma iniciativa paralela à Web Summit, tal como a Venture
Summit, mas ainda mais restrita, sendo mesmo vista como uma espécie de
cimeira de Davos do setor tecnológico. Ora, estes eventos estão a ser
aproveitados pelo Governo para vender uma nova imagem de Portugal, como
reconhece o ministro da Economia, Manuel Caldeira Cabral, que disse à RTP:
“A aposta é que [a Web Summit]
seja um sucesso ainda maior do que foi o ano passado (...) Mas uma das grandes
apostas é a Venture Summit, que traz
cá mais de 1200 investidores de grande nível. A grande aposta é que estes
investidores, para além destas empresas tecnológicas, olhem em particular para
o sistema tecnológico português e olhem para o bom momento que a economia
portuguesa está a atravessar e decidam também fazer outros investimentos em
Portugal.”.
***
Progresso
tecnológico quanto mais melhor, desde que não faça das pessoas robôs nem que os
robôs se limitem a pôr as pessoas no desemprego ou na inatividade.
Industrialização e internacionalização da nossa indústria e serviços são
bem-vindas. Contudo, é importante manter a piedade para com os nossos mortos e
os espaços que seus restos mortais (reais ou simbólicos) ocupam, mas à nossa moda, não segundo as categorias culturais
de outrem. Requer-se, se não a “pietas”, greco-romana ou a judaico-cristã, ao
menos, a humanista criada pelo iluminismo. E, assim, é possível suscitar
sinergias e congraçar sensibilidades.
Não percebo
como a Diretora do Panteão Nacional (DPN) não assume o erro, se lhe cabia avaliar o evento à luz da norma, ao
abrigo da qual solicita autorização à DGPC. Quem é que devia pedir desculpa?
Quem fez avaliação inadequada do caso (DPN) e quem autorizou o evento (DGPC)!
2017.11.12 – Louro de Carvalho
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