domingo, 12 de novembro de 2017

Por entre os mortos ou seus vestígios e símbolos, vivos banqueteiam-se

A utilização do Panteão Nacional para um jantar exclusivo que assinalou o encerramento da Web Summit está a gerar controvérsia, merecendo críticas nas redes sociais e órgãos de comunicação social. Este jantar da “Founders Summit”, onde participaram algumas dezenas de pessoas escolhidas pela organização, decorreu no dia 10 de novembro à noite, no espaço central do Panteão, junto aos túmulos de personalidades como Amália, Eusébio, Almeida Garrett e Sophia de Mello Breyner Andresen. A este respeito, o embaixador Seixas da Costa, que partilhou foto do evento e foi secundado por críticas de mais internautas, escreve:
Com o tempo e com as incertezas da sabedoria, inquietamo-nos sobre a justeza de certas opiniões pessoais. Seremos nós quem não está a ver bem as coisas? Aconteceu-me agora. Ajudem-me: acham mesmo normal que o jantar final do Web Summit seja entre os túmulos do Panteão Nacional?”.
É óbvio que os defuntos – heróis ou não – não se importam, não dão voltas no túmulo. Provavelmente deles não restam senão cinzas ou outras quaisquer relíquias, a que pouco acrescenta de real a existência de cenotáfios ou de urnas em sepulturas. Mas fica de pé a obrigação ético-estética de não profanar a memória dos que morreram e cujo mérito a Pátria, quiçá tardiamente, acabou por reconhecer. Podem dizer que são mais 22 monumentos nacionais em que espetáculos culturais, cocktails e jantares, eventos académicos, sociais, infantis e especiais (eventos comerciais, empresariais, de moda…) podem ser desenvolvidos, bem como onde podem fazer-se filmagens sem identificação do lugar (para televisão, cinema, marketing comercial…). Todavia, a igreja de Santa Engrácia foi destinada exclusivamente para fins de homenagem panteónica, pelo que tudo o que saiba a pantagruelismo não fica ali bem, a não ser eventualmente o lanche discreto de alguns dos que ali trabalham.
Não caberia na cabeça de ninguém organizar um banquete, por exemplo, em torno da Chama da Pátria no Mosteiro da Batalha ou em frente do túmulo de Dom Afonso Henriques em Coimbra ou na nave da igreja do Mosteiro dos Jerónimos.
Perceberia que ali ficasse bem um espetáculo musical do tipo Requiem de Verdi ou Requiem de Mozart ou uma ópera épica do tipo Nabucco. De resto, como diz alguém, “Panteão Nacional acolheu jantar exclusivo com elite da Web Summit – toda esta frase é medonha”. E o absurdo é que, dizem outros, “é que a teoria oficiosa para jantares no Panteão é a dessacralização dos monumentos nacionais”, pelo que, “logo o Panteão visa sacralizar os grandes da pátria”, o que é exatamente ao contrário. Por isso, está bem o Ministro da Cultura, bem como o Primeiro-Ministro – o que Marcelo parece aplaudir – desfazer o que exibe o site oficial do Panteão:
O Panteão Nacional disponibiliza alguns espaços únicos para organização de jantares de gala, receções, cocktails, concertos, lançamento de livros, simpósios, conferências, seminários e colóquios. Para além dos eventos referenciados, poderão ser autorizados outros, consentâneos com as caraterísticas e condições do monumento”.
A tabela de preços por espaço espaço está publicada em Diário da República num dos quadros do Anexo I ao Regulamento de Utilização de Espaços, aprovado pelo Despacho n.º 8356/2014, de 27 de junho, dos Gabinetes dos Secretários de Estado da Cultura e Adjunto e do Orçamento. Só a Sala Sul não está disponível para jantares. O Corpo Central está disponível por 3000 euros, o Coro Alto por 2500 euros, o Terraço por 3000 e o Adro por 4000 euros. A estes valores acrescem o IVA e custos de “vigilância/guardaria”, caso o evento decorra fora das horas de funcionamento do espaço.
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Desde 2014 que são 23 os imóveis históricos que alugam espaços a privados para promoção de jantares, festas, eventos culturais ou sociais e até filmagens – com o objetivo da captação de verbas que ajudem à sua preservação e sustentabilidade.
Os monumentos mais requisitados em 2016 foram o Mosteiro dos Jerónimos, onde os preços começam nos 3000 euros, mas podem ir até aos 40 mil, e o Palácio Nacional da Ajuda, onde o aluguer varia entre os 2500 e os 7500 euros. Outros monumentos muito requisitados são o Museu Nacional dos Coches (pode-se alugar o Salão Nobre para jantares desde que se desembolse 10 mil euros) e o Mosteiro de Alcobaça. Ao longo dos últimos três anos, a receita cobrada com a cedência de espaços foi de mais de um milhão e 161 mil euros.
Na tabela relativa ao aluguer de espaços em monumentos e museus, um dos mais baratos é o Museu Monográfico de Conímbriga, cujo aluguer de sala custa entre 50 e 1500 euros. No Museu Soares dos Reis, no Porto, os preços estipulados também são mais acessíveis, entre os 500 e os dois mil euros.
Segundo dados da DGPC, houve crescimento de 2014 para 2015, mas decréscimo de 2015 para 2016. E a diretora-geral do Património Cultural, Paula Silva, declarou, em julho, ao JN que “a cedência de espaços é muito irregular”, adiantando que “a cedência de espaços representa 2,22% do total da receita arrecadada em 2016” e esclarecendo:
A lei do enquadramento orçamental não permite a consignação de receita à despesa. Todas as receitas cobradas são centralizadas na DGPC, bem como todas as despesas. Assim, as despesas dos serviços são pagas com receita própria arrecadada.”.
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Mas não foi apenas a “Founders Summit” que ali organizou um jantar. Também a empresa pública NAV (Navegação Aérea) organizou um jantar no Panteão Nacional, no passado dia 16 de outubro. As imagens do evento também estão nas redes sociais. O propósito foi o de homenagear trabalhadores da NAV Portugal e, ao jornal “Observador”, a diretora de comunicação da empresa, Sofia Azevedo, explicou que a escolha do local se deveu, entre outros aspetos, à originalidade do espaço.
Segundo o contrato publicado no portal BASE, o jantar custou à empresa 17.600 euros, acrescido de IVA, e nele terão participado cerca de 200 pessoas. E Sofia Azevedo garantiu ainda que os túmulos do Panteão se encontravam “em zonas fechadas e não acessíveis aos convidados da NAV”.
Era o que faltava virem os mortos sentarem-se à mesa ou convidarem os vivos para a dança duma valsa ou dum tango!
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Indignado com jantar da Web Summit, Costa proíbe festas no Panteão Nacional. Na verdade, o Primeiro-Ministro considerou, em comunicado do dia 11, “absolutamente indigna” a utilização do Panteão Nacional para aquele jantar, referindo:
É absolutamente indigna do respeito devido à memória dos que aí honramos. Apesar de enquadrado legalmente, através de despacho proferido pelo anterior Governo, é ofensivo utilizar deste modo um monumento nacional com as caraterísticas e particularidades do Panteão Nacional.”.
E prometeu o Chefe do Governo:
Tal como já foi divulgado pelo Ministério da Cultura, o Governo procederá à alteração do referido despacho, para que situações semelhantes não voltem a repetir-se, violando a história, a memória coletiva e os símbolos nacionais”. 
Também em comunicado, o ministro da Cultura, Luís Castro Mendes, assumiu ter tomado conhecimento da realização do jantar, um “facto que estranhou”. E, tendo interpelado os serviços sobre o evento, o Ministro informou que “a decisão foi tomada ao abrigo do Despacho n.º 8356/2014, de 27 de junho, do anterior Governo, que aprovou o Regulamento de Utilização dos Espaços sob tutela da Direcção-Geral do Património Cultural. No comunicado lê-se ainda:
O Ministro da Cultura, perante esta informação, entende determinar a imediata revisão do referido despacho. Essa revisão determinará a proibição de realização de eventos de natureza festiva no Corpo Central do Panteão Nacional”.
E assegura o Ministro que
Não permitirá que a utilização para eventos públicos dos monumentos nacionais possa pôr em causa o caráter e a dignidade próprias de cada um desses monumentos”. 
O ex-Secretário de Estado da Cultura Jorge Barreto Xavier e outros afetos ao anterior Governo vêm dizer com alguma verdade que o aludido Despacho acautela, no texto preambular, que
O acesso aos seus espaços [daqueles imóveis], pela sua dignidade e pelas coleções que alguns deles encerram, deve ser controlado por forma a salvaguardar-se uma utilização menos consentânea com as suas origens, com a sua dignidade ou com a sua mensagem cultural”. Por outro lado […] importa definir os critérios gerais desse acesso e dessa utilização, por forma a que, quer o potencial utilizador, quer o serviço responsável pelo imóvel saibam exatamente como atuar.”.
Também o art.º 3.º, no âmbito dos princípios gerais, estabelece que
Todas as atividades e eventos a desenvolver terão que respeitar o posicionamento associado ao prestígio histórico e cultural do espaço cedido”.
Só que estas indicações são demasiado vagas e cabe, por isso,
À Direção da DGPC decidir, após parecer dos Serviços Dependentes, da oportunidade e interesse da cedência, bem como das respetivas condições a aplicar” (cf n. 1 do art.º 2.º). 
E desde 2014, a prática tem sido usual. Já aconteceram no Panteão concertos, exposições, espetáculos de bailado e lançamentos de livros.
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Agora, no Panteão Nacional, realizou-se o mais exclusivo dos eventos paralelos da Web Summit, em que participam cerca de 200 CEO (presidentes-executivos) fundadores de empresas e startups, investidores de alto nível e gente com muito dinheiro, com o objetivo de estabelecer ligações entre eles (networking). O jantar, denominado “Founders Summit”, ocorreu no dia 10, em Lisboa, a seguir ao dia do encerramento da feira tecnológica. O grande interesse estratégico que alguns dos participantes representam para Portugal levou-os ao Palácio das Necessidades, ao Palácio da Ajuda e ao Panteão Nacional.
Após o encerramento da Web Summit (no dia 9), o Governo ofereceu um cocktail no Palácio das Necessidades, o do Ministério dos Negócios Estrangeiros, à nata das natas dos chamados “fundadores”, onde estiveram presentes o Primeiro-Ministro e o ministro dos Negócios Estrangeiros. Depois do cocktail, os founders jantaram no Palácio Nacional da Ajuda, já no âmbito deste encontro exclusivo e em evento privado, para o qual estava convidado também António Costa, que não compareceu.
Dois dias antes, o Primeiro-ministro também ali oferecera um jantar alargado a quase 200 empreendedores, oradores e responsáveis políticos e empresariais. Fonte do gabinete de Costa adiantou ao Diário de Notícias que foram endereçados 185 convites para esse jantar e a reportagem da Lusa, presente na entrada do Palácio da Ajuda, viu chegar figuras como o ator Joseph Gordon-Levitt, o futebolista Ronaldinho Gaúcho (ambos são oradores) e o próprio cofundador da Web Summit, Paddy Cosgrave. No campo político e além do Primeiro-Ministro, estiveram presentes personalidades como o antigo presidente da Comissão Europeia Durão Barroso, o atual comissário europeu Carlos Moedas, o antigo Vice-Primeiro-Ministro Paulo Portas, diversos ministros e secretários de Estado do atual Governo e o autarca de Lisboa, o socialista Fernando Medina, e vários embaixadores.
O jantar do dia 9 para os founders foi mais restrito, mas no dia seguinte, dia 10, houve outro que ainda o seria mais. No dia da própria “Founders Summit”, o local escolhido para o jantar foi o corpo central do Panteão Nacional, a que só tiveram acesso, por convite, personalidades escolhidas entre multimilionários, grandes investidores e fundadores de grandes  startups
Em Lisboa, à margem dum congresso de estudantes de Medicina, o Presidente da República criticou a utilização do espaço nos termos seguintes:
A imagem que eu tenho do Panteão Nacional não é a de ser um local adequado para um jantar, nem que seja o jantar mais importante de Estado. […] Portanto, se o Governo tomou uma decisão no sentido de isso deixar de ser possível, acho que é uma decisão muito sensata, muito óbvia, que corresponde àquilo que qualquer pessoa com algum bom senso faria nesse caso concreto.”.
O fundador da Web Summit, Paddy Cosgrave, pediu desculpa, no dia 11, através do Twitter, pela realização daquele jantar com convidados da cimeira tecnológica no Panteão Nacional:
"Querido Portugal, peço desculpa. Sou irlandês. Culturalmente temos uma abordagem muito diferente à morte. Nós celebramo-la. Isso não o torna a abordagem correta quando em Portugal. Amo este país como uma segunda casa e nunca procuraria ofender os grandes heróis portugueses do passado.”.
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Já em  2003, no Panteão Nacional, a editorial Presença ali recriou a escola de feitiçaria frequentada por Harry Potter para a festa de lançamento dum novo livro da saga de J. K. Rowling, tendo o então deputado socialista José Lello levado o caso ao Parlamento, mas, entre os que defenderam publicamente a decisão, contava-se, por exemplo, o escritor e editor Francisco José Viegas, que viria a ser secretário de Estado da Cultura. Obviamente não é correta a junção de feiticeiros/as no espaço evocativo de mortos, muito menos de heróis.
Temos agora mais um caso polémico a adicionar aos alegados estragos no Convento de Cristo em Tomar pela equipa do realizador Terry Gilliam e das investigações à antiga diretora do Mosteiro dos Jerónimos por irregularidades nos alugueres daquele monumento.

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A “Founders Summit”, que terminou no dia 11, com eventos turísticos ligados ao surf e à gastronomia, é uma iniciativa paralela à Web Summit, tal como a Venture Summit, mas ainda mais restrita, sendo mesmo vista como uma espécie de cimeira de Davos do setor tecnológico. Ora, estes eventos estão a ser aproveitados pelo Governo para vender uma nova imagem de Portugal, como reconhece o ministro da Economia, Manuel Caldeira Cabral, que disse à RTP:
A aposta é que [a Web Summit] seja um sucesso ainda maior do que foi o ano passado (...) Mas uma das grandes apostas é a Venture Summit, que traz cá mais de 1200 investidores de grande nível. A grande aposta é que estes investidores, para além destas empresas tecnológicas, olhem em particular para o sistema tecnológico português e olhem para o bom momento que a economia portuguesa está a atravessar e decidam também fazer outros investimentos em Portugal.”.
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Progresso tecnológico quanto mais melhor, desde que não faça das pessoas robôs nem que os robôs se limitem a pôr as pessoas no desemprego ou na inatividade. Industrialização e internacionalização da nossa indústria e serviços são bem-vindas. Contudo, é importante manter a piedade para com os nossos mortos e os espaços que seus restos mortais (reais ou simbólicos) ocupam, mas à nossa moda, não segundo as categorias culturais de outrem. Requer-se, se não a “pietas”, greco-romana ou a judaico-cristã, ao menos, a humanista criada pelo iluminismo. E, assim, é possível suscitar sinergias e congraçar sensibilidades.
Não percebo como a Diretora do Panteão Nacional (DPN) não assume o erro, se lhe cabia avaliar o evento à luz da norma, ao abrigo da qual solicita autorização à DGPC. Quem é que devia pedir desculpa? Quem fez avaliação inadequada do caso (DPN) e quem autorizou o evento (DGPC)!

2017.11.12 – Louro de Carvalho

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