quarta-feira, 29 de novembro de 2017

O que levou o Papa Francisco a Myanmar?

Ele o diz na videomensagem que enviou ao povo daquele país: “proclamar o Evangelho de Jesus Cristo, numa mensagem de reconciliação, perdão e paz”. E especifica dizendo que, em primeiro lugar, deseja “confirmar a comunidade católica de Myanmar na sua fé em Deus e no seu testemunho do Evangelho”. E é o Evangelho que ensina a dignidade de cada homem e mulher e exige que abramos os nossos corações aos outros, especialmente aos pobres e necessitados”; e, em segundo lugar, mas tão importante como o primeiro, quer “visitar a Nação com espírito de respeito e encorajamento por cada esforço que visa construir harmonia e cooperação no serviço ao bem comum”. E espera que os dias que passar com aquela gente “possam ser fonte de esperança e encorajamento para todos”.
Conforta-o o facto de vivermos “numa época em que os crentes e os homens de boa vontade sentem cada vez mais a necessidade de crescer na compreensão e no respeito recíproco e de se sustentarem uns aos outros como membros da única família humana”. Na verdade, independentemente da condição de cada um, “todos somos filhos de Deus”.
***
No encontro com os líderes religiosos de Myanmar, a 28 de novembro, no arcebispado de Rangún, Francisco deixou palavras de Deus, extraídas do salmo 133: “Oh! Como é bom e agradável viverem os irmãos unidos!”. Mas adverte contra a uniformidade e unanimismo:
Unidos não quer dizer iguais. A unidade não é uniformidade, nem mesmo dentro da mesma confissão. Cada um tem os seus valores, as suas riquezas e também as suas deficiências.”.
Então o Pontífice não foi ali para anular as diferenças, mas para ajudar à harmonia:
Somos todos diferentes e cada confissão tem as suas riquezas, as suas tradições, as suas riquezas para dar, para compartilhar. E isto somente pode acontecer se se vive em paz. E a paz constrói-se no coro das diferenças. A unidade dá-se sempre com as diferenças.”.
Criticando a tendência mundial para o pensamento único, a uniformidade, a sociedade líquida, o Papa sustenta:
Isso é matar a humanidade. Isso é uma colonização cultural. E nós devemos entender a riqueza das nossas diferenças – étnicas, religiosas, populares –, pois, a partir dessas diferenças, dá-se o diálogo e, a partir dessas, um aprende do outro, como os irmãos, como irmãos que vão ajudando a construir este País, que tem, mesmo geograficamente, tantas riquezas e diferenças. Com efeito, a natureza em Myanmar tem sido muito rica nas diferenças”.
Depois, o Pontífice incitou a que não se tenha medo das diferenças:
Um só é o nosso Pai e nós somos irmãos. Queiramo-nos como irmãos. E, se discutimos entre nós, que seja como irmãos que, a seguir, se reconciliam, voltam sempre a ser irmãos. Eu penso que só assim se constrói a paz.”.
A seguir, exortou:
Construí a paz. Não vos deixeis igualar pela colonização de culturas. A verdadeira harmonia divina faz-se através das diferenças. As diferencias são uma riqueza para a paz.”.
E terminou assumindo como oração de irmão para irmãos uma antiga bênção que inclui a todos:
O Senhor vos abençoe e vos proteja. Faça brilhar o seu rosto sobre vós e vos mostre a sua graça. Volte para vós o seu rosto e vos conceda a paz.” (Nm 6,24-26).
***
No encontro com as Autoridades, com a Sociedade Civil e com o Corpo Diplomático,  no Centro Internacional de Congressos de Nay Pyi Taw, Francisco diz que o seu objetivo é “rezar com a pequena, mas fervorosa comunidade católica da nação, para a confirmar na fé e encorajá-la no esforço de, contribuir para o bem da nação”, depois do estabelecimento formal das relações diplomáticas entre Myanmar e a Santa Sé, vendo nesta decisão o sinal do empenho da nação em prosseguir o diálogo e a cooperação construtiva dentro da comunidade internacional alargada, bem como em renovar o tecido da sociedade civil.
E insiste em oferecer uma palavra de encorajamento a quantos trabalham na construção duma ordem social justa, reconciliada e inclusiva.
Reitera que Myanmar foi abençoado com o dom duma beleza extraordinária e numerosos recursos naturais, sendo o seu maior tesouro o povo, que muito sofreu e continua a sofrer por causa de conflitos civis e hostilidades que duraram muito tempo e criaram profundas divisões. E propõe como “prioridade política e espiritual fundamental” a “cura destas feridas”. Por isso, expressa o seu apreço “pelos esforços do Governo em enfrentar este desafio, em particular através da Conferência de Paz de Panglong, que reúne os representantes dos vários grupos numa tentativa para pôr fim à violência, criar confiança e garantir o respeito pelos direitos de quantos consideram esta terra como a sua casa”.
E sustenta que o processo de “construção da paz e reconciliação nacional” só avança “através do compromisso com a justiça e do respeito pelos direitos humanos”.
Recordando um dado da sabedoria dos antigos e dos antigos profetas, diz que a justiça é “a vontade de reconhecer a cada um o que lhe é devido” e “o fundamento da paz verdadeira e duradoura”.
Sobre a presença do Corpo Diplomático, diz que “entre nós, testemunha não só o lugar que o Myanmar ocupa entre as nações, mas também o compromisso do país em manter e perseguir estes princípios fundamentais”. Assim, o futuro de Myanmar, segundo o Pontífice,
Deve ser a paz, uma paz fundada no respeito pela dignidade e os direitos de cada membro da sociedade, no respeito por cada grupo étnico e sua identidade, no respeito pelo Estado de Direito e uma ordem democrática que permita a cada um dos indivíduos e a todos os grupos – sem excluir nenhum – oferecer a sua legítima contribuição para o bem comum”.
Quanto ao papel das comunidades religiosas do Myanmar no trabalho da reconciliação e integração nacional, insiste em que “as diferenças religiosas não devem ser fonte de divisão e difidência”, mas “uma força em prol da unidade, do perdão, da tolerância e da sábia construção da nação”. Assim, “as religiões podem desempenhar um papel significativo na cura das feridas emocionais, espirituais e psicológicas” dos que “sofreram nos anos de conflito” ajudando a “extirpar as causas do conflito, construir pontes de diálogo, procurar a justiça e ser uma voz profética para as pessoas que sofrem”.
E abona como “grande sinal de esperança” o facto de os líderes das várias tradições religiosas deste país” se comprometerem “a trabalhar juntos, com espírito de harmonia e respeito mútuo, pela paz, pela ajuda aos pobres e pela educação nos valores religiosos e humanos autênticos”. Com efeito, ao procurar “construir uma cultura do encontro e da solidariedade”, estão a contribuir “para o bem comum” e a estabelecer “as bases morais indispensáveis para um futuro de esperança e prosperidade para as gerações vindouras”.
Não esquecendo os jovens, aponta-os como “um dom a estimar e encorajar, um investimento que só produzirá um bom rendimento na base de oportunidades reais de emprego e duma educação de qualidade”. Sendo este um requisito impelente de justiça intergeracional, o Papa garante que o futuro de Myanmar, “num mundo em rápida evolução e interconexão, dependerá da formação dos seus jovens, não só nos campos técnicos, mas sobretudo na formação para os valores éticos de honestidade, integridade e solidariedade humanas, que podem garantir a consolidação da democracia e o crescimento da unidade e da paz em todos os níveis da sociedade”. E para o estabelecimento duma sadia justiça intergeracional, Francisco propõe:
De igual modo a justiça intergeracional requer que as futuras gerações herdem um meio ambiente que não esteja corrompido pela ganância e a depredação humana. É indispensável que os nossos jovens não sejam espoliados da esperança e da possibilidade de empregar o seu idealismo e os seus talentos na projetação do futuro do seu país, melhor, da família humana inteira.”.
Mas o Pontífice não esquece no discurso oficial o grupo especial que o leva à visita:
Quero encorajar os meus irmãos e irmãs católicos a perseverar na sua fé e a continuar a expressar a sua mensagem de reconciliação e fraternidade através de obras caritativas e humanitárias, de que toda a sociedade possa beneficiar. Espero que, na respeitosa cooperação com os seguidores de outras religiões e com todos os homens e mulheres de boa vontade, contribuam para abrir uma nova era de concórdia e progresso para os povos desta amada nação.”.
***
Entretanto, o Papa Francisco encontrou-se com o chefe das Forças Armadas de Myanmar logo em 27 de novembro, embora em reunião fora do programa inicial previsto.
Note-se que este chefe é considerado um dos principais rostos da repressão sobre os rohingyas.
Do lado das Forças Armadas, estiveram presentes no encontro 4 generais e um tenente-coronel. Do lado da Igreja Católica, esteve o Papa acompanhado por um tradutor da Igreja de Myanmar.
No fim do encontro, que teve uma duração aproximada de 15 minutos, o comunicado da Santa Sé refere que foi discutida “a grande responsabilidade das autoridades do país neste momento de transição”. Houve ainda oportunidade para a troca de presentes, O Papa ofereceu uma medalha alusiva a esta viagem e os responsáveis militares ofereceram uma harpa em forma de arco e uma taça de arroz decorada.
Recorde-se que a repressão e perseguição à comunidade rohingya tem colocado as autoridades birmanesas e a própria Nobel, debaixo de fortes críticas. No país, 91% da população é budista, os rohingya são uma minoria muçulmana.
***
O Papa Francisco e a prémio Nobel da Paz Aung Suu Kyi encontraram-se no dia 28, na capital do Myanmar. A palavra “rohingya” não foi referida, mas o tema esteve presente em ambos os discursos. A prioridade política e espiritual é, como se disse, “curar as feridas” de Myanmar.
Aung Suu Kyi é a conselheira do Estado, posição equiparável à de primeira-ministra.
Apesar de o problema dos rohingya estar a mais de 300 quilómetros de distância, o assunto esteve presente em ambos os discursos, do Papa e da conselheira do Estado.
Francisco disse aos seus anfitriões, no discurso já referido, que a sua grande prioridade deve ser “curar as feridas” existentes no país.
A primeira a usar da palavra foi Aung Suu Kyi, durante longos anos o rosto da oposição ao regime militar e que agora ocupa o principal cargo político do país em termos nominais, embora o poder de facto continue nas mãos das Forças Armadas.
A prémio Nobel da Paz, que tem sido criticada pela situação de repressão sobre a minoria muçulmana do Estado de Rakhine, referiu-se especificamente à questão, embora sem referir a palavra “rohingya”, uma vez que o regime rejeita o termo, considerando que os muçulmanos são bengalis, da mesma etnia que o povo do Bangladesh. Disse Aung Suu Kyi:
Entre os muitos desafios que o nosso governo tem enfrentado, a situação em Rakhine tem capturado as atenções do mundo. Enquanto lidamos com assuntos sociais, económicos e políticos de longa data, que minaram a confiança e compreensão, harmonia e cooperação entre diferentes comunidades no Rakhine, o apoio do nosso povo e dos nossos bons amigos, que só desejam o nosso sucesso, tem sido inestimável.”.
A líder birmanesa referiu-se depois à mensagem do Papa para o dia Mundial da Paz de 2017, em que aponta as bem-aventuranças como “programa e desabafo para líderes políticos e religiosos” na construção da paz, dizendo:
Sua Santidade, os dons da compaixão e encorajamento que nos traz serão estimados e levaremos a peito as suas palavras na mensagem pelo Dia Mundial da Paz”.
Ao contrário de Aung Suu Kyi, Francisco não se referiu nunca diretamente ao problema em Rakhine, mas sublinhou a importância do respeito pelos diferentes grupos étnicos:
O futuro do Myanmar deve ser a paz, uma paz fundada no respeito pela dignidade e os direitos de cada membro da sociedade, no respeito por cada grupo étnico e sua identidade, no respeito pelo Estado de Direito e uma ordem democrática que permita a cada um dos indivíduos e a todos os grupos – sem excluir nenhum – oferecer a sua legítima contribuição para o bem comum.
***
O Myanmar (antiga Birmânia) é de esmagadora maioria budista, mas há minorias muçulmanas – como os rohingya – e cristãs, incluindo uma pequena percentagem de católicos, quase todos descendentes de portugueses. Aung Suu Kyi referiu-se a estes dizendo ao Papa que “os filhos da sua Igreja neste país são também filhos do Myanmar, amados e estimados”, e recordou que ela mesmo estudou num colégio católico em Rangum, “o que me leva a pensar que tenho direito a uma bênção especial sua” – disse, brincando.
Reitero que o Papa Francisco disse no seu discurso que as religiões têm um papel importante a desempenhar na construção da paz. Com efeito, “as diferenças religiosas não devem ser fonte de divisão e difidência, mas sim uma força em prol da unidade, do perdão, da tolerância e da sábia construção da nação.” Mais:
As religiões podem desempenhar um papel significativo na cura das feridas emocionais, espirituais e psicológicas daqueles que sofreram nos anos de conflito. Impregnando-se de tais valores profundamente enraizados, elas podem ajudar a extirpar as causas do conflito, construir pontes de diálogo, procurar a justiça e ser uma voz profética para as pessoas que sofrem.”.
O Papa esteve em Nepiedó, uma cidade que foi inaugurada apenas em 2006, tendo sido construída de raiz para ser a nova capital do país. Francisco regressou a Rangum, a principal cidade do Myanmar. No dia 30, partirá para o Bangladesh, donde regressará a Roma no dia 2 de dezembro.

2017.11.29 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário