quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Ultraje à piedade para com os cadáveres e os sentimentos dos enlutados

Como é do conhecimento geral, após os respetivos hospitais terem produzido as necessárias certidões de óbito de duas vítimas mortais da legionella, que infetou mais de três dezenas de pessoas no Hospital de São Francisco Xavier, os corpos foram entregues às famílias. Porém, já no decurso dos velórios, em igrejas diferentes, “a PSP entrou de rompante” (escreve o JN de hoje, dia 8), ontem à noite, nos velórios” para cumprir “ordens do Ministério Público, emanadas depois das 18 horas”.
Os corpos das duas vítimas foram levados, um da igreja do Santo Condestável, em Campo de Ourique, em Lisboa, e outro do Mosteiro dos Jerónimos, em Belém, para o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF), provocando a consternação e a revolta nos familiares dos falecidos, cujos funerais seriam realizados hoje. Isto sucedeu, porque as autópsias, segundo a PGR (Procuradoria-Geral da República), foram consideradas “essenciais para a investigação em curso”.
Os agentes da PSP aduziram a posse de mandato, pelo que os familiares, num primeiro momento, terão acatado a operação por se tratar de mandato que a polícia tinha de cumprir. Porém, quando alegadamente chegaram uns indivíduos que pretendiam transportar os cadáveres em saco de plástico, os ânimos exaltaram-se e, num caso, a exigência foi de que o cadáver podia sair dali, mas em caixão, em nome da dignidade com que a pessoa defunta merecia ser tratada.
É de recordar que o insólito resulta do facto de as sobreditas certidões de óbito terem sido passadas sem qualquer problema burocrático pelos hospitais onde ocorreram os óbitos, nomeadamente: o Hospital de Santa Maria e o Hospital d’ Os Lusíadas.
Ao serem questionados estes hospitais, remeteram a responsabilidade do sucedido para a DGS (Direção-Geral de Saúde); e esta, para o Ministério Público (MP). Por seu turno, a PGR, que informara estar a “recolher elementos” sobre o caso, confirmou a abertura de um inquérito.
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Fonte do Comando Metropolitano da PSP de Lisboa confirmou à Lusa que a recolha dos corpos foi efetuada por ordem do DIAP [Departamento de Investigação e Ação Penal] de Lisboa quando já estavam a decorrer os velórios. Segundo a mesma fonte, a situação “foi desconfortável”, mas a ordem teve que ser cumprida. Diz a PSP, em comunicado, a este respeito:
Dizer que é uma situação muito sensível é pouco e foi difícil de gerir. Foi desconfortável, mas teve de se cumprir. As pessoas estavam desagradadas com a situação, o que é natural, mas não houve problemas de maior.”.
E fonte do Comando Nacional da PSP confirmou à Lusa que os corpos foram recolhidos durante os velórios, explicando que se tratou de cumprir um “procedimento obrigatório”.
Da sua parte, o MP refere que, não tendo recebido “qualquer comunicação de óbito relacionada com esta matéria”, teve necessidade de recolher elementos que “permitissem identificar as vítimas, bem como as circunstâncias que rodearam as mortes, designadamente o local onde ocorreram”, pelo que teve de solicitar as autópsias, que “são essenciais” para a investigação. Sobre esta decisão diz a PGR em comunicado:
O Ministério Público decidiu, esta terça-feira e por iniciativa própria, face às notícias vindas a público sobre surto de legionella e suas consequências, instaurar um inquérito. Tendo sido noticiadas mortes, entendeu-se, desde logo, que a realização de autópsia e de perícias médico-legais eram essenciais para a investigação em curso”.
“Uma vez obtidos esses elementos, o Ministério Público foi, igualmente, informado de que os corpos já haviam sido entregues às famílias”, explica a nota. Assim, o MP decidiu ordenar o encaminhamento dos corpos para o INMLCF, apesar de “consciente da sensibilidade da situação”, mas lamentando “o ocorrido bem como o sofrimento que daí resultou para os familiares das vítimas”.
O Ministro da Saúde lamenta o sucedido e diz que “terá havido um problema ao nível do diálogo” entre os diversos departamentos, mas sustenta que o Ministério Público tem de fazer o seu trabalho.
É verdade que, desde 2014, todos os médicos, seja do setor público, seja do setor privado, estão obrigados a emitir certificados de óbito eletronicamente através do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito, mais conhecido pelo acrónimo SICO. A finalidade do sistema é permitir uma melhoria da qualidade e do rigor da informação, através da articulação entre as diversas entidades envolvidas no processo de certificação de óbitos.
No entanto, ao fim de três anos, o sistema está longe de estar a ser usado em todas as suas potencialidades. E é precisamente isso que explica a razão por que o MP deu ordens à PSP para que recolhesse os corpos das vítimas de legionella enquanto decorria o velório. Com efeito, o MP tem acesso às certidões de óbito, mas o que se passa é que alguns magistrados ainda preferem trabalhar com papel e aquele sistema é pouco utilizado. É uma questão de mentalidade, procedimentos e formação.
Não vale a pena embandeirar a descoordenação do Estado a vários níveis, que existe em muitos aspetos e não apenas neste, nem utilizar o incidente como arma de arremesso político-partidário, como não vale vir o Ministro do Ambiente ou outro membro do Governo aduzir o vazio legal nesta ou naquela matéria: a negligência é penalizável à face da nossa lei penal, qualquer que seja o setor em causa. Aquando do surto da legionella em Vila Franca de Xira, assacavam-se responsabilidades às entidades privadas, que não solicitavam as vistorias necessárias nem cumpriam o mínimo de requisitos; agora é ao Estado, porque se trata de hospital público. Mas o problema não se resolve com a definição dum mínimo de biocidas a inserir nos tanques, nem num mínimo de inspeções nem com mais um ou dois SICO.
Os privados falham, o Estado falha. Quanto mais e melhor fizerem em termos legislativos será de saudar, quanto mais e melhor se fizer em termos de inspeção e correção será de aplaudir. Porém, quando se falha, há que ter a humildade suficiente de reconhecer erros, pedir desculpa, investigar e responsabilizar. Há sempre lei, nem que seja contra a negligência e pela vigilância.
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A irrupção da PSP nos velórios é um ato chocante e até violento e a posse de mandato judicial ou do Ministério Público não desagrava a iniquidade do ato. Os familiares dos falecidos merecem respeito e que lhes seja propiciada a tranquilidade possível.
Não tenho motivos para duvidar da essencialidade das autópsias para a validade das investigações em curso sobre o surto de legionella, mas em tese, pelo menos, é lícito duvidar da sua pertinência, dado que os hospitais conhecem os procedimentos e não foram previamente advertidos para este acautelamento. Ou então, terão de ser responsabilizados por facilitismo. Irão sê-lo? Depois, se as autopsias revelarem a sua inanidade na investigação que fará o MP? Arrepende-se, pede desculpa, indemniza ou refugia-se no seu poder absoluto de que o serviço do tribunal se sobrepõe a todo o serviço? É que eu já ouvi disso no outro milénio! Um Digno Agente do MP (era assim que se dizia) queria interpor-se à minha frente numa Conservatória do Registo Civil para ser atendido alegando que o serviço do tribunal se sobrepõe a todo o serviço.
Porém, as autoridades deveriam ter acautelado a surpresa da intervenção e a índole invasiva da sua entrada no velório. Porque a decisão fora tomada tardiamente, chamavam de parte alguém da família e combinavam uma forma discreta da transferência dos cadáveres com a compostura que a dignidade postula. Tinham de evitar ao máximo o espetáculo e o ensacamento das pessoas. Não se brinca com os vivos nem com a memória dos mortos, sobretudo se ainda fresca.
Pretender transportar o cadáver em saco de plástico significa a coisificação do cadáver. E, por mais higiénico que se mostre o método, não deixa de ultrajar um cadáver que representa uma pessoa autoindefensável. E, mesmo que a representação seja – e é – biodegradável, não deixa de significar para os familiares e para a comunidade um património que representa, por um lado, o prolongamento da vida do antepassado nos presentes e, por outro, uma perda de uma certa parte de cada um dos familiares com a perda do ente querido. Repare-se que, para os gregos e para os romanos, os “Familiares” eram deuses – a par dos deuses “Lares” – e, como tais, eram venerados. Por outro lado, eram considerados “pessoas”, pelo que lhes colocavam na boca do cadáver a moeda para o pagamento do óbolo ao barqueiro que os fazia atravessar o grande Lago. É a crença na vida para lá da morte! Para os judeus, os mortos eram considerados como tendo sido recebidos no seio de Pai Abraão, onde gozavam da beatitude. O cristianismo venera os cadáveres dos defuntos rezando à sua volta, consigo e por si; emolduram-nos com velas acesas e coroas de flores; aspergem-nos com água benta e, em celebrações solenes, incensam-nos e até cantam nos funerais, se as famílias pedirem ou concordarem. E, se o cadáver não está presente em certas celebrações exequiais, colocam em seu lugar a “essa”, o “catafalco” ou, ao menos, o pano que os cobre e aqui os representa – também emoldurado de velas, flores, orações, cânticos, aspersão com água benta e eventualmente incenso. É a crença na imortalidade, a fé na Ressurreição dos mortos, a esperança na vida eterna!  
Esta é a “pietas” greco-romana, a crença judaico-cristã na Ressurreição e na imortalidade. Este, mesmo para os não crentes, é um ato civilizacional e cultural. Esta é a piedade análoga ao respeito e amor filiais para com o pai e/ou para com a mãe. Em certa medida, o antepassado é “pai” ou “mãe”, pelo menos cultural, dos familiares sobrevivos, como, obviamente, estes são seus filhos ou filhas, pelo menos, culturais. E não é lícito aos poderes quebrarem, de ânimo leve, esta relação paterno-filial.
No caso vertente, os hospitais dizem ter cumprido os trâmites legais; o Ministério Público diz não ter conhecimento do caso das certidões. A ser verdade, o MP deveria ter confrontado, antes de mais, os hospitais em causa, os primeiros responsáveis pela saída das pessoas tornadas cadáver e, só depois, tomar atitudes rodeadas de segurança judiciária e de discrição suficiente junto das famílias, evitando ao máximo o espetáculo e a má disposição.
Não é apenas o Parlamento e o Governo que precisam de ser escrutinados e criticados. O poder judiciário, mesmo que as suas decisões (e, destas, só as transitadas em julgado) se sobreponham às das demais autoridades, não pode comportar-se como dono e senhor absoluto da lei, dos factos e das pessoas. Deve sempre e em todo o lugar usar da prudência, discrição e eficiência; e usar a força, apenas quando absolutamente necessário – se quer merecer o respeito e a confiança.

2017.11.08 – Louro de Carvalho

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