Como é
do conhecimento geral, após os respetivos hospitais terem produzido as
necessárias certidões de óbito de duas vítimas mortais da legionella, que
infetou mais de três dezenas de pessoas no Hospital de São Francisco Xavier, os
corpos foram entregues às famílias. Porém, já no decurso dos velórios, em igrejas
diferentes, “a PSP entrou de rompante” (escreve o JN de hoje, dia 8), ontem à noite, nos velórios”
para cumprir “ordens do Ministério Público, emanadas depois das 18 horas”.
Os corpos
das duas vítimas foram levados, um da igreja do Santo Condestável, em Campo de
Ourique, em Lisboa, e outro do Mosteiro dos Jerónimos, em Belém, para o Instituto
Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF), provocando a consternação e a revolta
nos familiares dos falecidos, cujos funerais seriam realizados hoje. Isto
sucedeu, porque as autópsias, segundo a PGR (Procuradoria-Geral
da República), foram
consideradas “essenciais para a investigação em curso”.
Os agentes
da PSP aduziram a posse de mandato, pelo que os familiares, num primeiro momento,
terão acatado a operação por se tratar de mandato que a polícia tinha de
cumprir. Porém, quando alegadamente chegaram uns indivíduos que pretendiam transportar
os cadáveres em saco de plástico, os ânimos exaltaram-se e, num caso, a
exigência foi de que o cadáver podia sair dali, mas em caixão, em nome da
dignidade com que a pessoa defunta merecia ser tratada.
É de
recordar que o insólito resulta do facto de as sobreditas certidões de óbito
terem sido passadas sem qualquer problema burocrático pelos hospitais onde
ocorreram os óbitos, nomeadamente: o Hospital de Santa Maria e o Hospital d’ Os
Lusíadas.
Ao serem
questionados estes hospitais, remeteram a responsabilidade do sucedido para a
DGS (Direção-Geral
de Saúde); e esta,
para o Ministério Público (MP). Por seu turno, a PGR, que informara estar a “recolher
elementos” sobre o caso, confirmou a abertura de um inquérito.
***
Fonte
do Comando Metropolitano da PSP de Lisboa confirmou à Lusa que a recolha dos corpos foi efetuada por ordem do DIAP [Departamento de Investigação e Ação
Penal] de Lisboa quando
já estavam a decorrer os velórios. Segundo a mesma fonte, a situação “foi
desconfortável”, mas a ordem teve que ser cumprida. Diz a PSP, em comunicado, a
este respeito:
“Dizer
que é uma situação muito sensível é pouco e foi difícil de gerir. Foi
desconfortável, mas teve de se cumprir. As pessoas estavam desagradadas com a
situação, o que é natural, mas não houve problemas de maior.”.
E fonte do Comando
Nacional da PSP confirmou à Lusa que os
corpos foram recolhidos durante os velórios, explicando que se tratou de
cumprir um “procedimento obrigatório”.
Da sua parte, o MP refere que, não tendo recebido
“qualquer comunicação de óbito relacionada com esta matéria”, teve necessidade
de recolher elementos que “permitissem identificar as vítimas, bem como as
circunstâncias que rodearam as mortes, designadamente o local onde
ocorreram”, pelo que teve de solicitar as autópsias, que “são essenciais” para a investigação.
Sobre esta decisão diz a PGR em comunicado:
“O Ministério Público decidiu, esta
terça-feira e por iniciativa própria, face às notícias vindas a público sobre
surto de legionella e suas consequências, instaurar um inquérito. Tendo sido
noticiadas mortes, entendeu-se, desde logo, que a realização de autópsia e de
perícias médico-legais eram essenciais para a investigação em curso”.
“Uma vez obtidos esses elementos, o Ministério Público foi, igualmente,
informado de que os corpos já haviam sido entregues às famílias”, explica a
nota. Assim, o MP decidiu ordenar o encaminhamento dos corpos para o INMLCF,
apesar de “consciente da sensibilidade da situação”, mas lamentando “o ocorrido
bem como o sofrimento que daí resultou para os familiares das vítimas”.
O Ministro da Saúde lamenta o sucedido e diz que “terá havido um problema
ao nível do diálogo” entre os diversos departamentos, mas sustenta que o
Ministério Público tem de fazer o seu trabalho.
É verdade que, desde 2014, todos os médicos, seja do setor público, seja do
setor privado, estão obrigados a emitir certificados de óbito eletronicamente
através do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito, mais conhecido pelo
acrónimo SICO. A finalidade do sistema é permitir uma melhoria da qualidade e
do rigor da informação, através da articulação entre as diversas entidades
envolvidas no processo de certificação de óbitos.
No entanto, ao fim de três anos, o sistema está longe de estar a ser usado
em todas as suas potencialidades. E é precisamente isso que explica a razão por
que o MP deu ordens à PSP para que recolhesse os corpos das vítimas de legionella
enquanto decorria o velório. Com efeito, o MP tem acesso às certidões de óbito,
mas o que se passa é que alguns magistrados ainda preferem trabalhar com papel
e aquele sistema é pouco utilizado. É uma questão de mentalidade, procedimentos
e formação.
Não vale a pena embandeirar a descoordenação do Estado a vários níveis, que
existe em muitos aspetos e não apenas neste, nem utilizar o incidente como arma
de arremesso político-partidário, como não vale vir o Ministro do Ambiente ou outro
membro do Governo aduzir o vazio legal nesta ou naquela matéria: a negligência
é penalizável à face da nossa lei penal, qualquer que seja o setor em causa. Aquando
do surto da legionella em Vila Franca de Xira, assacavam-se responsabilidades
às entidades privadas, que não solicitavam as vistorias necessárias nem cumpriam
o mínimo de requisitos; agora é ao Estado, porque se trata de hospital público.
Mas o problema não se resolve com a definição dum mínimo de biocidas a inserir
nos tanques, nem num mínimo de inspeções nem com mais um ou dois SICO.
Os privados
falham, o Estado falha. Quanto mais e melhor fizerem em termos legislativos será
de saudar, quanto mais e melhor se fizer em termos de inspeção e correção será
de aplaudir. Porém, quando se falha, há que ter a humildade suficiente de
reconhecer erros, pedir desculpa, investigar e responsabilizar. Há sempre lei,
nem que seja contra a negligência e pela vigilância.
***
A irrupção
da PSP nos velórios é um ato chocante e até violento e a posse de mandato judicial
ou do Ministério Público não desagrava a iniquidade do ato. Os familiares dos
falecidos merecem respeito e que lhes seja propiciada a tranquilidade possível.
Não tenho
motivos para duvidar da essencialidade das autópsias para a validade das
investigações em curso sobre o surto de legionella, mas em tese, pelo menos, é
lícito duvidar da sua pertinência, dado que os hospitais conhecem os
procedimentos e não foram previamente advertidos para este acautelamento. Ou então,
terão de ser responsabilizados por facilitismo. Irão sê-lo? Depois, se as
autopsias revelarem a sua inanidade na investigação que fará o MP?
Arrepende-se, pede desculpa, indemniza ou refugia-se no seu poder absoluto de
que o serviço do tribunal se sobrepõe a todo o serviço? É que eu já ouvi disso
no outro milénio! Um Digno Agente do MP (era assim que se dizia) queria interpor-se à minha
frente numa Conservatória do Registo Civil para ser atendido alegando que o
serviço do tribunal se sobrepõe a todo o serviço.
Porém, as
autoridades deveriam ter acautelado a surpresa da intervenção e a índole invasiva
da sua entrada no velório. Porque a decisão fora tomada tardiamente, chamavam
de parte alguém da família e combinavam uma forma discreta da transferência dos
cadáveres com a compostura que a dignidade postula. Tinham de evitar ao máximo
o espetáculo e o ensacamento das pessoas. Não se brinca com os vivos nem com a
memória dos mortos, sobretudo se ainda fresca.
Pretender
transportar o cadáver em saco de plástico significa a coisificação do cadáver. E,
por mais higiénico que se mostre o método, não deixa de ultrajar um cadáver que
representa uma pessoa autoindefensável. E, mesmo que a representação seja – e é
– biodegradável, não deixa de significar para os familiares e para a comunidade
um património que representa, por um lado, o prolongamento da vida do
antepassado nos presentes e, por outro, uma perda de uma certa parte de cada um
dos familiares com a perda do ente querido. Repare-se que, para os gregos e
para os romanos, os “Familiares” eram deuses – a par dos deuses “Lares” – e,
como tais, eram venerados. Por outro lado, eram considerados “pessoas”, pelo
que lhes colocavam na boca do cadáver a moeda para o pagamento do óbolo ao barqueiro
que os fazia atravessar o grande Lago. É a crença na vida para lá da morte! Para
os judeus, os mortos eram considerados como tendo sido recebidos no seio de Pai
Abraão, onde gozavam da beatitude. O cristianismo venera os cadáveres dos
defuntos rezando à sua volta, consigo e por si; emolduram-nos com velas acesas
e coroas de flores; aspergem-nos com água benta e, em celebrações solenes,
incensam-nos e até cantam nos funerais, se as famílias pedirem ou concordarem. E,
se o cadáver não está presente em certas celebrações exequiais, colocam em seu
lugar a “essa”, o “catafalco” ou, ao menos, o pano que
os cobre e aqui os representa – também emoldurado de
velas, flores, orações, cânticos, aspersão com água benta e eventualmente
incenso. É a crença na imortalidade, a fé na Ressurreição dos mortos, a
esperança na vida eterna!
Esta é a
“pietas” greco-romana, a crença judaico-cristã
na Ressurreição e na imortalidade. Este, mesmo para os não crentes, é um ato
civilizacional e cultural. Esta é a piedade análoga ao respeito e amor filiais
para com o pai e/ou para com a mãe. Em certa medida, o antepassado é “pai” ou “mãe”,
pelo menos cultural, dos familiares sobrevivos, como, obviamente, estes são
seus filhos ou filhas, pelo menos, culturais. E não é lícito aos poderes
quebrarem, de ânimo leve, esta relação paterno-filial.
No caso
vertente, os hospitais dizem ter cumprido os trâmites legais; o Ministério
Público diz não ter conhecimento do caso das certidões. A ser verdade, o MP deveria
ter confrontado, antes de mais, os hospitais em causa, os primeiros responsáveis
pela saída das pessoas tornadas cadáver e, só depois, tomar atitudes rodeadas
de segurança judiciária e de discrição suficiente junto das famílias, evitando
ao máximo o espetáculo e a má disposição.
Não é
apenas o Parlamento e o Governo que precisam de ser escrutinados e criticados. O
poder judiciário, mesmo que as suas decisões (e,
destas, só as transitadas em julgado)
se sobreponham às das demais autoridades, não pode comportar-se como dono e
senhor absoluto da lei, dos factos e das pessoas. Deve sempre e em todo o lugar
usar da prudência, discrição e eficiência; e usar a força, apenas quando absolutamente
necessário – se quer merecer o respeito e a confiança.
2017.11.08 – Louro
de Carvalho
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