segunda-feira, 27 de novembro de 2017

O meu primeiro discurso tipicamente político

Não, o dia 26 de novembro de 1989 não foi o dia do meu primeiro ato político. Na verdade, sempre me preocupei com a sorte da coletividade e me ocupei dela à minha medida e segundo a minha condição. Até, ainda no tempo de Salazar escrevi, a pedido, uma carta ao Ministro das Obras Públicas a rogar uma estrada para duas aldeias não minhas e que eu não conhecia. E recordo-me de que tive de concluir a carta-pedido com a fórmula de despedida em uso “Deus guarde Vossa Excelência”.
Também se conta que um dia o Presidente da Junta de Freguesia da então freguesia de Albardo, do concelho da Guarda, recebera um ofício do Presidente da Câmara, que no fim se despedia escrevendo “Deus guarde Vossa Excelência, O Presidente da Câmara Municipal”. E o Presidente da Junta, na resposta, rematava vingando-se: “Deus albarde Vossa Excelência, O Presidente da Junta de Freguesia”.
Quanto a mim, sempre me interessei pela pólis, porém, quase nunca aliado a um partido político. E reagia quando me queriam conotar com algum. Por outro lado, nas funções públicas que desempenhei durante anos, quer na qualidade de professor (e dirigente escolar) quer na qualidade de eclesiástico, entendia que devia intervir muito e de muitas maneiras, mas, a nível partidário, sempre como um artigo indefinido masculino singular. Obviamente que ninguém é ingénuo e o meu próprio silêncio muitas vezes era enervantemente político e duro.
Já neste século fiz dois mandatos de deputado municipal com estatuto de independente, mas sob uma bandeira partidária, não desdizendo muito do que pensava antanho, embora sem me atrelar ao partido em questões de princípio.
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Entretanto, chegou o dia 26 de novembro em ano de eleições autárquicas. Andava agastado com o Presidente da Câmara por causa da estrada municipal que ligava Vila da Ponte a Sernancelhe. Era preciso alargá-la, retificá-la e alterar-lhe o traçado alegadamente para fora do povoado. Ironicamente viria através de terrenos hortícolas desembocar na rua principal atrás da igreja paroquial e, dado o perfil transversal previsto. tinha de entrar no adro da igreja. Como a desembocadura era sobre uma curva dentro da povoação, a Junta de Freguesia também não gostava da solução encontrada pela Câmara Municipal. As soluções alternativas que apresentávamos eram rejeitadas por onerosas, o que não era verdade, dado que terrenos alagadiços implicavam despesa igual à das alternativas. Até diziam que queríamos uma ponte aérea (todas as pontes são aéreas; as “pontes” subterrâneas são túneis). Ora, tinham de fazer ponte qualquer que fosse o sítio aonde viesse desembocar. Dizia-se que a EDP não deixava passar em terrenos seus. Nunca tal lhe fora pedido. E, quando foi abordada, sempre mostrou sentido de cooperação.
O prelado diocesano, tendo recebido o pároco e a Junta de Freguesia, parecia opor-se à solução camarária (e disse-o diante de quem estava no terreno quando foi à visita pastoral), até que o edil o instruiu no sentido de aceitar, aduzindo que a Igreja saía com vantagem. Tive que desmentir tal promessa perante o prelado diocesano a régua e esquadro e fazendo contas. Convém, entretanto, por justiça e verdade, referir que o prelado, veio em minha defesa pública e só não veio à paróquia porque lhe garantir que isso não era necessário e podia desnecessariamente produzir efeito perverso.
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Quando conversei amigavelmente com o Presidente, como era nosso hábito, alertando para a gravidade da questão, pareceu ouvir-me e respondeu que havia ainda tempo, pois o caso estava em estudo. Porém, quando se falava numa data de início de obra, escrevi-lhe e a resposta não me agradou, por deselegante. Ao falar com alguém conhecedor do perfil do autarca-mor, fui avisado de que era uma questão política e que ele ganhava todas as questões políticas. Aí eu jurei a mim mesmo tudo fazer para impedir que tal projeto não fosse por diante. E não foi.
Avistei-me com o edil, que se disponibilizava a deixar-me trazer a peça principal do projeto para a entregar no dia seguinte, o que me não interessava por ser extenso e não ser ágil. Lá consegui que me desse certidão da parte que me interessava – em texto. E parti ao diálogo com as entidades que pudessem ajudar-me.
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Eis que soube que o arcebispo, no dia 25, numa visita pastoral, a um mensário regional porfiara o apoio ao autarca. Então, aproveitei o dia 26, domingo, e resolvi participar abertamente numa visita do Governador Civil ao concelho a pretexto duma exposição em homenagem a Aquilino Ribeiro, promovida pela direção da associação jornalística local, de que mais tarde fui vice-presidente. Sabia que a visita era de apoio à candidatura do principal opositor à Câmara Municipal, que me garantira que a questão da estrada não constava da candidatura, o que para mim era vantajoso, pois dava-me liberdade de intervenção sem misturar alhos com bugalhos. Mas, naquele dia, já estava por tudo.
Como o Governador Civil não chegou a tempo útil de abrir a exposição e ela ser apreciada pelo público naquele dia, a direção da associação fez a abertura informal. E eu por ali fiquei, enquanto os dirigentes, deixando ali duas funcionárias, se deslocaram à Ponte do Abade onde era suposto ser recebida a autoridade distrital.
Estava a fumar um cigarro junto ao edifício onde estava patente a exposição, quando dum carro sai um senhor com motorista a perguntar onde era a exposição e disse-me que era o Governador Civil, que eu não conhecia por que ainda tinha sido nomeado há pouco tempo. Disse-lhe que era ali, mas que tinha uma enorme multidão à sua espera em Ponte do Abade. Não me fiz rogado quando sugeriu a minha companhia. Ele tinha passado na Ponte do Abade pela única estrada que, vindo de Viseu, dava acesso a Sernancelhe. Só que, porque, dado que a estrada Vila da Ponte-Sernancelhe estava interrompida por terem começado as obras de retificação e alargamento, passou na parte do concelho de Aguiar da Beira (Ponte do Abade é a famosa terra separada/unida pelo Távora que pertence a duas freguesias, dois concelhos, dois distritos, duas dioceses), a multidão estava longe e era de noite. Assim, nem a multidão o viu nem ele à multidão.
Retornados à Ponte do Abade, ainda ouvi os altifalantes a lamentar o sucedido e a dar ordem de dispersão à multidão. Saí da viatura do Governador e levantei os braços e bradei: É o Governador Civil!
Lá se reorganizou a multidão, subimos à Cunha, Arnas (aqui o Governador foi recebido na escola), Sarzeda, onde o Governador foi recebido no edifício que iria ser a sede da Junta de Freguesia, em Sernancelhe na sede da predita. Exposição. Descemos à Vila da Ponte onde discursaria o Presidente da Junta, o candidato à Câmara e o Governador. Como a alocução do Presidente da Junta foi interrompida por um indivíduo que não gostou da jornada, suprimiram-se os discursos e subimos à Lapa para um beberete na Casa das Trutas.
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Na Lapa, fiz questão de pedir a palavra, o que estava combinado com os organizadores, mas sem papéis, e disse algo como o que segue (repetindo aqui o essencial da minha intervenção):
“Duvidei de devia ou não usar da palavra aqui na Lapa, pois, não solicitei jurisdição ao Senhor Padre Vieira. Porém, lembrei-me de que nesta casa quem tem jurisdição é o Senhor Luís. Como ele aqui está, autoriza.
Acompanhei com gosto e sentido do dever esta jornada de V. Ex.cias pelo concelho de Sernancelhe. E respeito os poderes porque todo o poder vem de Deus, mas critico o pode e não o sirvo, porque muitas vezes o poder é abusivo e tirânico. Todavia, V. Ex.cias fizeram bem em dar volta por Sernancelhe. É um concelho como os outros com as suas virtualidades, que merece ser conhecido e atendido. E mais do que visto com os olhos é preciso que seja visto com os pés, pois só assim é que entrará nas rotas do progresso e do bem-estar.
Mas o concelho tem carências. E a carência mais dramática que hoje nele vemos é que não tem um fio condutor do seu desenvolvimento. Tudo se faz de forma avulsa, como calha. Não tem um fio condutor, se calhar nunca o teve. E se o teve ou, por hipótese ainda, o tem, está partido.
Se o não tem, há que lho colocar; e, se o tem e está partido, cabe a V. Ex.cias emendá-lo ou substituí-lo, Cabe, pois, a V. Ex.cias decidir emendar ou substituir esse fio condutor. Talvez seja melhor substituí-lo que emendá-lo, mas V. Ex.cias decidirão. Cabe-vos essa responsabilidade. E nós cá estamos para colaborar.”.  
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Obviamente que foi o primeiro discurso tipicamente político que proferi. Foi de improviso, sem papéis. E deu o seu resultado. No dia seguinte, já se boatava que o indígena era político. Por uma questão de lealdade, quis avisar do facto um padre amigo, que sabia não gostar da minha intervenção se a conhecesse. A amizade acima de tudo!
Os boateiros esqueciam as vezes em que eu falava com o edil e seus cooperadores. Teve que ser. Não abusei. E a estrada não se fez como estava previsto, mas de outro modo: mais tratável, mais airosa.
Mas o novo ciclo político iniciado em 1989 vai longo demais… As mudanças refrescam.

2017.11.26 – Louro de Carvalho 

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